Gabriel Brito*, do Correio da Cidadania
O ministro do STF Luiz Edson Fachin declarou a nulidade das condenações de Lula pelo ex-juiz e atual consultor empresarial Sérgio Moro na vara de Curitiba, em processos relacionados à Operação Lava Jato, e acendeu um enorme pavio no país que passou da marca das 2.000 mortes por dia pelo novo coronavírus. No dia seguinte, a votação de suspeição de Sergio Moro pelo mesmo STF foi adiada, de forma que o ex-presidente reaparece com seus direitos políticos e evita-se o cheiro de impunidade geral com a possível anulação de diversos vereditos da Operação.
Isso não quer dizer que Lula esteja livre de condenações, mas apenas que seu caso terminará em vara do Distrito Federal, e só poderá haver condenação após decisão da última instância ou do STF. Basicamente, será tratado como os demais réus da Operação, que aparentemente nunca julgará os amigos Michel Temer e Aécio Neves (este último acaba de ganhar a presidência de uma comissão na Câmara dos Deputados, em seu silencioso, porém confortável, ostracismo).
O choque
No dia seguinte Lula veio a público e, em uma hora e meia de discurso à imprensa, colocou o país inteiro debaixo do braço. Fez questão de se dizer injustiçado, mas disposto a estabelecer bases cordiais para disputas políticas. Atacou a absurda sabotagem do governo federal e nomeadamente Bolsonaro no trato da pandemia. Deu recados contundentes para as Forças Armadas e o “deus mercado”.
O impacto foi monumental. As redes de mentira bolsonaristas calaram-se. A mídia empresarial em boa parte capitulou a mensagem. Desde a noite de terça, a Globo se esmera em desconectar sua imagem de assessoria de imprensa acrítica da Lava Jato. O discurso da suposta polarização de “extremos perigosos” entre bolsonarismo e esquerda subiu no telhado. A repercussão internacional é inequívoca: ao contrário do que se dá desde Temer, o mundo voltou a prestar atenção no Brasil sem desprezo.
Bolsonaro imediatamente sentiu o baque e logo promoveu evento no Planalto, no qual apareceu de máscara e discursou a favor das vacinas. Até seu filho que acabou de comprar mansão falou em “dezenas de milhões de vacinas nos próximos meses”. Claro, a natureza do escorpião falou mais alto e o veneno das mentiras e desinformações voltou a ser inoculado: o presidente receitou seus remédios sem eficácia e o filhote não foi capaz de especificar números de doses aplicadas, uma vez que o plano de imunização é um fiasco e o Ministério da Saúde ocupado por um general que ia mandar vacinas para o Amazonas, mas acabou mandando-as ao Amapá, diminui suas previsões de aplicação a cada atualização.
O Congresso não ficou atrás e avançou nos debates da PEC Emergencial, que autorizaria gastos de 44 bilhões de reais para remunerar as camadas mais vulneráveis da população nesta nova explosão do coronavírus no Brasil.
Luta e conciliação de classes
Nada parece ponto sem nó. Enquanto Sérgio Moro acumula dólares no exterior no exato nicho de mercado que abriu com suas investigações comprovadamente alinhadas a uma agenda política e econômica externa, o Brasil vai empilhando cadáveres, dia após dia. O cansaço e o ódio ao bloco neofascista de aventureiros absolutamente incapazes de executar qualquer tarefa que um Estado exige se acumulam.
Daniel Silveira, o policial fanfarrão que acumulou mais de 60 infrações administrativas na Polícia, segue preso após desfiar ofensas e ameaças ao STF, mais especificamente ao ministro Alexandre de Moraes. Gilmar Mendes ligou a metralhadora na direção de Sérgio Moro em sua atuação de juiz/promotor no caso Lula.
Como dito acima, o ritmo da vacinação é ridículo. De acordo com o demógrafo e economista José Eustáquio Diniz Alves, terminaremos março com 300.000 mortos e a continuar com este nível de gestão, 500.000 em setembro. Vale lembrar que Diniz previra 40 mil mortes até o fim do primeiro semestre de 2020 caso o Brasil tivesse uma gestão ruim da pandemia. E o país de Bolsonaro foi capaz de terminar junho com 59 mil mortes.
Isolado internacionalmente e sem vacina, finalmente os donos do país se tocam de que não dá mais. Foi a isso que conduziram a sociedade com o delírio do antipetismo, afinal. Ou começa-se o conserto ou em algum momento as convulsões sociais serão absolutamente inevitáveis. A resiliência política do maior partido de massas da história do Brasil parece ser reconhecida por uma institucionalidade que não foi capaz de entregar nada ao povo, só aos mercados, nesses últimos 5 anos.
Notável o esforço de diversos atores políticos midiáticos em desconstruir a ideia de “extrema esquerda perigosa” com a qual contaminaram o país. Afinal, a lista de ideólogos e agitadores da extrema-direita com passagem por esse espectro midiático “moderado” é extensa (cabe observar que ainda há enorme parcela da mídia fanatizada pelo antipetismo e que claramente merece ser classificada como de extrema-direita).
Finalmente, apareceram analistas dispostos a debater honestamente as posições históricas do PT e suas práticas reais. Um partido de centro-esquerda com posições que a cultura política enquadra como socialdemocrata e trabalhista, não mais que isso.
Faz-se o movimento também porque é preciso desassociar a imagem dos liberais ao governo de recorte nazistoide e sua catástrofe ainda em marcha. Para tal, é necessário baixar os decibéis da retórica do ódio anticomunista que, no final das contas, só a extrema direita capitalizou (poderia ser diferente?).
Assumir que os governos Lula foram conciliadores e tolerantes à direita política, inclusive absorvendo nomes como José de Alencar e Henrique Meirelles em seus mandatos, é um retorno à razão. Deixar claro que o petismo nada tem de similar a um governo que mente todo dia, debocha da morte das pessoas e trabalha pelo armamento de sua militância de racistas, machistas e fascistas é reconstruir as pontes que ajudaram a destruir.
Pois a Operação Lava Jato, como definiu André Singer em seu livro “As contradições do lulismo”, “é uma operação ao mesmo tempo republicana e discricionária”. Usou de pressupostos corretos para abrir caminho a um impeachment fraudulento de um partido que a direita tradicional não conseguia bater nas urnas. O cálculo, claro, era que tudo terminaria com o PSDB no governo federal. Saiu pela culatra e o país entrou numa rota suicida de dissolução de si mesmo.
A condenação de Lula sempre foi acima de tudo luta (e ódio) de classes. Trata-se do principal líder da história da classe trabalhadora brasileira e do único partido fundado nas bases populares da sociedade que chegou a eleger um presidente. O alvo sempre foi todo o campo popular. O mesmo discurso de ódio e mentiras sempre foi aplicado à exaustão contra sindicatos e movimentos sociais. Até o termo “república sindicalista” usado na preparação do golpe militar de 1964 fora reabilitado pela “imprensa democrática”.
Tentou-se emplacar a narrativa de que justo de um setor não-burguês, organizado em torno de um projeto de sociedade não oligárquico, veio o “maior caso de corrupção da história”.
As fraudes políticas do udenismo, de 1964 e de 1989 se repetiram. Os resultados, para as massas, também se repetiram: rebaixamento de direitos e salários, aumento da exploração do trabalho, horizonte de vida precarizado; oligarquias assaltando o Estado e economia desindustrializada, desnacionalizada e dependente em níveis intoleráveis.
Para o andar de cima, qualquer avanço da vida material das massas é tratado, de fato, como “ameaça comunista”. O limitado progresso visto no início deste século logo foi cobrado com juros e correção monetária. O pouco que foi conquistado pelos de baixo foi enfaticamente retirado. Mais uma vez: foi luta de classes acima de tudo. Assim, “combate à corrupção” é apenas a única retórica possível de uma elite ainda escravista, racista, segregacionista, ecocida e genocida. Essa, sim, mostrou um caráter extremista em relação ao tecido social.
Pois de 2016 para cá, foi tudo para o capital, nada para o trabalho. O Brasil foi embolsado por uma pequena casta de capitalistas que fazem do país, suas empresas e recursos naturais meros ativos financeiros da jogatina internacional dos mercados, da tal “elite globalista”, da qual o sociopata não menos fascistóide Paulo Guedes faz parte. Lembremos que o ministro da “Economia” (“Fazenda” é um termo sofisticado demais para os anões que sequestraram o país) já evocou o AI-5 e tudo. Não está onde está por casualidade.
Contra a “polarização”, só o impeachment
Para além do discurso ensaiado de quem sonha com uma alternativa da direita supostamente moderada, existe um perigo real de polarização cega, passional e relativamente vazia de avanços concretos.
De um lado, um projeto bandido e nazista disposto a ir para o tudo ou nada – porque o bolsonarismo é refém do caos e da histeria permanentes como método de governança, articula mafiosos de baixo calão e já mostrou seus traços golpistas. De outro, uma esquerda que “não fez acontecer” quando tinha 80% de aprovação e agora volta com ideias requentadas, pra não dizer vagas.
Claro, Lula ao falar das cadeias produtivas do setor de óleo e gás ganha ares divinos diante da idiotia privatizante que destruiu dezenas de milhões de empregos e, literalmente, vende petróleo a preço de guaraná Dolly para depois comprar combustível em dólar dos EUA. Mas de modo geral se trata de um projeto socioeconômico similar ao de seu mandato em condições muito menos favoráveis de reprodução.
Não à toa o ex-presidente é obrigado a fazer declarações confrontativas ao mercado e defender o papel do Estado como organizador da economia, indutor de crescimento e protagonista de políticas públicas.
E parece que não há nada que nos evite essa centrifugação de energias políticas e militantes daqui até 2022. O único antídoto parece um movimento pesado de impeachment e criminalização de Bolsonaro e seu núcleo central. Motivos não faltam, pois como já demonstrou esse estudo da Faculdade de Saúde da USP o presidente deliberadamente trabalhou em favor da morte. Necropolítica e seu descarte de corpos não rentáveis, rapidamente substituíveis na enorme massa desempregada, são fatos no capitalismo em desencanto.
Isso significa que a esquerda e a direita que se diz moderada deveriam apertar as mãos, lutar seriamente pela eliminação política do bolsonarismo e jogar limpo em 2022, aceitando que quem ganhar, ganhou.
Mas a gente parece andar em círculos: essa direita moderada que sempre vendeu o ódio e passa o trator privatista enquanto a República derrete, por acaso, sabe jogar limpo?
Além do mais, se dispõe a enfrentar os militares, diante de sua tenebrosa participação política recente? Poderá abrir mão de sua política de uma nota só e recuar parcialmente, em especial a respeito do teto de gastos, que diante de toda a embocadura econômica só poderá diminuir os investimentos (que chama de gastos) sociais ano após ano? Poderá entender os trabalhadores como sujeitos de direitos e proteção social ou sustentará absurdos como desvincular juridicamente entregadores e motoristas de aplicativos das empresas que extraem lucro de seu trabalho?
Difícil imaginar convivência pacífica de longo prazo com os representantes de uma casta que só sabe ganhar roubado (e exige em excesso), que nunca fez nada de bom para o povo brasileiro e nos retorna à condição de fazendão agrário-financeiro tipo século 19.
É no meio disso tudo que tá aí que Lula reemerge como salvador da pátria.
*Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.