por Raquel Torres, em Outra Saúde
O MÊS MAIS LETAL
O Brasil teve ontem 3.950 mortes por covid-19 registradas em 24 horas, segundo o consórcio de imprensa. O mês de março terminou como o mais letal de toda a pandemia no país, com 66,8 mil óbitos ao todo. É algo sem precedentes: março teve nada menos que um quinto de todas as mortes pela doença no país. Em fevereiro foram 30,4 mil registros, ou menos de metade do observado agora. Para se ter uma ideia, o segundo pior mês da pandeia foi julho do ano passado, com 32,9 mil vidas perdidas.
O mais assustador é o crescimento vertiginoso: a última semana teve 20,8 mil mortes, quase um terço de todos os registros do mês. Em 10 de março, o Brasil teve pela primeira vez mais de duas mil mortes em 24 horas e, apenas duas semanas depois, beiramos as quatro mil. Nesse curto período, média móvel diária foi de 1.645 para 2.971.
Hoje, são 19 as capitais do país com mais de 90% de ocupação das UTIs – mesmo que 520 leitos tenham sido criados desde a semana passada. O levantamento foi feito pela Folha, que diz ainda que cinco dessas cidades estão sem nenhuma vaga disponível: Porto Alegre, Curitiba, Porto Velho, Campo Grande e Rio Branco. No Acre não foram criados leitos extras: faltam médicos. Nos outros estados, os doentes crescem muito mais do que a oferta de atendimento. No Paraná, por exemplo, a abertura de 113 novas vagas não evitou que quase 500 pessoas continuem na fila. O mesmo aconteceu em Santa Catarina, onde são 363 pacientes aguardando por vaga. E na capital do Rio Grande do Sul, apesar do colapso, o prefeito tentou reabrir comércio, bares e restaurantes nos fins de semana… Mas foi barrado pela Justiça.
O prefeito de Mongaguá, pequena cidade do litoral de SP com cerca de 50 mil habitantes, chorou copiosamente em uma transmissão ao vivo. “A minha família a vida inteira foi comércio, sou comerciante desde os nove anos de idade, meu pai era comerciante e meu irmão era comerciante. Como eu queria sair dessa live hoje aqui e dizer assim: ‘eu quebrei, o meu comércio quebrou’, sabe por quê? Nós já quebramos, e com vida conseguimos dar a volta por cima, e isso não vou ouvir mais deles, porque com essa doença eles perderam a vida”, disse Márcio Melo Gomes, cujo vídeo viralizou.
QUEM É PRIORITÁRIO?
A Câmara aprovou ontem o texto-base de um projeto que inclui várias categorias entre os grupos prioritários para a vacinação. Profissionais como coveiros, garis, taxistas e mototaxistas, trabalhadores de farmácia, agentes de segurança pública e privada e oficiais de justiça, entre outros, passam a ter prioridade na vacinação. Não se sabe quantas pessoas a mais essa adição significaria.
Em paralelo a isso, o próprio governo federal decidiu antecipar a vacinação de militares e agentes de segurança que atuem no combate direto à covid-19, em atividades como fiscalização do distanciamento social, atendimento ou transporte de pacientes e ações de vacinação. Como parte das forças de segurança, eles já faziam parte dos grupos prioritários, mas atrás de outras pessoas, como os idosos com mais de 60 anos. A nova orientação foi definida na terça e informada ontem a governadores, que pressionavam por uma orientação quanto a isso – os secretários locais vinham relatando forte pressão por essa mudança, temendo eventuais motins de agentes da linha de frente, diz o Estadão.
Governadores também têm proposto por conta própria mudanças na ordem, contrariando o plano nacional. Em ao menos seis estados, os gestores decidiram antecipar a imunização de professores e policiais. Em São Paulo, João Doria (PSDB) anunciou que essas pessoas começariam a receber vacinas agora em abril, antes de se completar a vacinação dos idosos e de pessoas com comorbidades. No caso dos trabalhadores da educação, talvez o plano de Doria não se conclua. Isso porque o número de doses disponibilizadas (350 mil) só seria suficiente para alcançar aqueles com mais de 47 anos, e o sindicato dos professores da rede estadual entrou com um pedido na Justiça para que todos sejam vacinados.
As mudanças são controversas, já que o plano federal tenciona cobrir os grupos que têm maior risco de desenvolver doença grave e morrer. Na CNN, a sanitarista Ligia Bahia critica a decisão do governo do Rio de priorizar policiais: “Como se o Rio fosse vacinar primeiro um policial jovem, e deixar a mãe dele, que tem doença pulmonar crônica obstrutiva, atrás do filho. Não faz sentido em termos epidemiológicos, porque o objetivo da vacinação é diminuir a mortalidade, não é aumentar a popularidade de determinados políticos”, avalia.
Um problema é que, devido ao seu grau de exposição ao vírus, certos trabalhadores podem de fato acabar tendo seu risco de adoecimento e morte aumentados. Só que o Brasil não tem dados sobre como a covid-19 afeta cada categoria. Pela natureza das ocupações e dos locais de trabalho, podemos imaginar que motoristas de ônibus e funcionários de supermercados, por exemplo, estejam mais expostos a risco do que muitos outros. Mas não há números, o que faz com que a definição de categorias profissionais prioritárias seja feita meio no escuro, sem critérios epidemiológicos irrefutáveis.
Na falta desses números, é interessante olhar para o levantamento feito pelo Lagom Data sobre os setores da economia em que os desligamentos por morte mais aumentaram em 2020, com base em dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados).
O setor de vigilância e segurança privada foi o pior, com 51% maior mortes do que no ano anterior. No transporte de cargas, o crescimento foi de 46% – em ambos, o aumento foi maior até do que no setor hospitalar, que teve um crescimento de 42%. Construção e transporte público tiveram quase 40% de aumento também.
Vale frisar que nenhuma conclusão muito sólida pode ser tirada a partir desses dados, porque há várias limitações: eles só incluem trabalhadores com carteira assinada, não levam em conta aumento ou redução nas contratações e, claro, nem todas as mortes são por covid-19. Mas não deixam de ser um ponto de partida para pensar a vulnerabilidade de trabalhadores na pandemia.
DIFÍCIL MELHORAR
O Brasil aumentou a velocidade da vacinação, saindo de 293 mil doses aplicadas no dia 20 de março para 592 mil na última terça. Mas isso ainda é muito menos do que a promessa do ministro Marcelo Queiroga de conseguir em breve um milhão de doses administradas por dia…
E mais: em abril, quando era prevista a entrega de 47,3 milhões de doses, só devem chegar 25,5 milhões. Pouco mais da metade. A mudança foi anunciada ontem por Queiroga, que disse não poder assumir responsabilidade pelo cronograma. “Não posso me comprometer com a pontualidade de entrega. Posso me comprometer com os acordos de aquisição. Dois dos laboratórios são nacionais e há atrasos nas entregas dos dois, o Instituto Butantan e a Fiocruz. Perguntem se eles não têm apoio do Ministério da Saúde. Esse cronograma está sujeito a atrasos nas entregas. Estamos empenhados na antecipação de vacinas. Recursos, têm, faltam as vacinas”.
A TODO VAPOR
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tirou o dia ontem para defender a mudança nas regras que autorizam a compra de vacinas pelo setor privado. Como sabemos, ele quer dar sinal verde ao desrespeito à fila composta pelos mais vulneráveis definida pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) ao liberar os empresários da obrigação de repasse integral ao SUS das doses adquiridas enquanto a vacinação dos grupos prioritários estiver acontecendo.
Mas, segundo Lira, isso não é furar a fila porque “na guerra, vale tudo para salvar vidas” – como se o chavão rebatesse a crítica. E também não há conflito entre interesses privados e públicos porque, de acordo com ele, “o Ministério já tem contratualizado mais de 500 milhões de doses”. Sim… As doses que dependem do cumprimento de cronogramas, algo que não está acontecendo, como vimos. Ah, ele também disse que a lei com as regras que agora se quer mudar foi aprovada pelo Legislativo “há dois ou três meses” quando, na verdade, isso aconteceu há 30 dias.
Além de palavras, o dia de ontem foi marcado por ação. Deputados apresentaram um requerimento para que o projeto de lei em questão – 948/21, de autoria de Hildo Rocha (MDB-MA) – fosse votado em regime de urgência. Mas houve muita resistência e a votação foi adiada para a semana que vem.
O PL provocou um certo escândalo porque além do fura-fila, também previa que a Viúva ficasse com a conta. Coube à deputada Celina Leão (PP-DF) apresentar um substitutivo ao PL retirando o artigo que previa abatimento integral, no imposto de renda, da quantia que os empresários gastarão na aquisição de imunizantes.
A parlamentar incluiu no projeto regras para que as empresas possam adquirir as vacinas. Elas deverão optar por doar ao SUS a mesma quantidade que vão utilizar. Ou então vacinar gratuitamente não apenas seus funcionários, mas também os familiares deles, até o primeiro grau.
Segundo a coluna de Mônica Bergamo, Lira apoiará o substitutivo. Mas caberá ao plenário decidir que texto prevalecerá – já que a aprovação parece ser certa, pelo menos na Câmara. Ainda de acordo com a coluna, a resistência tende a ser maior no Senado – onde a proposta também conta com apoio do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco.
“Nenhum país do mundo permitiu isso. Nem a rainha da Inglaterra se vacinou antes das pessoas que estavam antes dela na fila”, criticou o deputado federal e ex-ministro da saúde, Alexandre Padilha (PT-SP). “Estão trocando o PNI pelo Plano Meu Pirão Primeiro”, resumiu o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
Detalhe: o ministro da saúde, que deveria defender os critérios do PNI, afirmou que recebe “com muita satisfação” o projeto.
ENQUANTO ISSO, EM MINAS…
A cuidadora de idosos suspeita de ter aplicado supostas vacinas contra a covid-19 em um grupo de empresários foi presa ontem pela Polícia Federal. A prisão foi em flagrante, após os policiais acharem seringas e unidades de soro fisiológico em sua casa. Ela foi encaminhada à penitenciária Estêvão Pinto, em Belo Horizonte. Segundo o Estadão, a linha de investigação que tem mais força é a de que as vacinas são falsas, e não a de que foram importadas ilegalmente. Nesse sentido, os donos da viação Saritur, Robson e Rômulo Lessa, teriam sido enganados…
MESMA TECLA
O comitê de combate à pandemia se reuniu pela primeira vez ontem. Apesar de coordenar a iniciativa, Jair Bolsonaro não estava presente na coletiva de imprensa feita após a reunião. Mas nem por isso deixou de falar. Logo depois, durante o anúncio do pagamento da nova rodada do auxílio emergencial, ocasião que seria perfeita para defender o isolamento, o presidente fez o contrário. Sem máscara.
“Tínhamos e temos dois inimigos, o vírus e o desemprego. É uma realidade. Não é ficando em casa que vamos solucionar este problema”, disse. E emendou: “O apelo que a gente faz aqui é que esta política de lockdown seja revista”.
Minutos antes, em outro andar do Palácio do Planalto, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), havia defendido o “alinhamento da comunicação social do governo, da assessoria de imprensa da Presidência” para a uniformização do discurso. “Que é necessário se vacinar, usar máscara, higienizar as mãos. Que é necessário o distanciamento social de modo a prevenirmos o aumento da doença no nosso país”, afirmou.
O ministro Marcelo Queiroga deu mais uma demonstração de ambiguidade. Segundo ele, é necessário evitar a adoção de “medidas extremas”, como o lockdown. “Até porque a população não adere”, voltou a repetir. Mas defendeu o distanciamento durante a Semana Santa. “No feriado, não pode haver aglomerações desnecessárias. É importante usar máscara, manter o isolamento. É importante fazer isso. Medidas extremas não são desejadas. Então vamos fazer isso”.
Ele anunciou que vai apresentar, em breve, um protocolo nacional para o funcionamento dos transportes públicos urbanos.
AUMENTO DA REJEIÇÃO
O PoderData captou um aumento na rejeição de Jair Bolsonaro: há duas semanas, a taxa era de 54%, agora chegou a 59%. A pesquisa foi realizada entre segunda e quarta-feira e também captou uma diminuição entre aqueles que não opinam: eram 14%, agora são 8%. Uma pequena parte deles migrou para o lado de Bolsonaro, contudo: os que aprovam o governo eram 32% há duas semanas e agora são 33%,.
31 DE MARÇO
Jair Bolsonaro não respeitou o critério da antiguidade no Exército, mas acabou escolhendo o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira como novo comandante das Forças Armadas – o mesmo que, em entrevista ao Correio Braziliense, apontou a possibilidade de uma terceira onda de covid-19 no país e defendeu o isolamento social. A escolha teria sido chancelada por Eduardo Villas Bôas.
Na Marinha também não houve respeito à fila e o indicado foi o almirante de esquadra Almir Garnier, atual secretário-geral do Ministério da Defesa.
Na Aeronáutica assumirá o brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior, que demonstra nas redes sociais ser afinado ao governo, compartilhando mensagens ligadas a grupos de direita.
Ao apresentar a cúpula ontem, no dia em que se completaram 57 anos do golpe militar, o novo ministro da Defesa, Braga Netto, disse que a data deveria ser “celebrada”.
A escalada autoritária de Bolsonaro foi objeto de uma crítica velada por parte de cinco presidenciáveis encabeçados pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta. Subscrevem junto com ele uma carta que não menciona o nome do presidente Ciro Gomes, João Amoedo e João Doria, Luciano Huck.
Já a oposição (PSB, PDT, PT, PSOL, PCdoB, Rede e Unidade Popular) divulgou uma nota conjunta em que afirma que Bolsonaro ameaça a democracia ao tentar cooptar as polícias e politizar as Forças Armadas.