Entenda como acontece o garimpo ilegal em terras indígenas na região Norte do Brasil

Exploração mineral no estado de Roraima é efetuada 100% dentro da ilegalidade e ameaça comunidades tradicionais

por Martha Raquel, em Brasil de Fato

Garimpo é o nome que se dá à exploração, mineração ou extração, manual ou mecanizada, de substâncias minerais. Na região Norte do Brasil, a prática é comum e acontece na maioria das vezes de forma ilegal e dentro de territórios indígenas.

Ivo Cípio Aureliano, indígena Macuxi e assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR), explica que, hoje, o garimpo é umas das maiores ameaças às comunidades indígenas no estado de Roraima. 

“Todos os garimpos existentes em Roraima são ilegais e estão localizados dentro das terras indígenas. A promessa de legalização dessa atividade por parte do governo Bolsonaro, por meio do Projeto de Lei 191/2021, que está no Congresso Nacional, estimulou as invasões e aumentou a cooptação de indígenas, causando vários tipos de violências”, explica o assessor jurídico do CIR. 

O garimpo sempre esteve próximo às comunidades indígenas, revela France Rodrigues, professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e autora do livro “Garimpando a sociedade roraimense: uma análise sócio política e econômica dos garimpos em Roraima”. O que mudou com o tempo, segundo a especialista, foi a forma como ele é executado. A partir de 1965, houve uma mudança nas condições de trabalho, com a inserção de novas tecnologias. 

Muitos dos locais onde estão sendo instalados os garimpos ilegais são pontos sagrados para os povos indígenas. “Isso agrava a sensação de falta de respeito com a crença indígena e o ensinamento dos mais velhos e ancestrais sobre determinados locais nos territórios (serras, igarapés, pedras)”, explica Aureliano. 

“Os pajés falam que as montanhas, os rios e as florestas não estão aguentando o que o homem branco está fazendo com a natureza. E que isso enfraquece o trabalho dos pajés, que por isso não conseguem curar o seu povo. O garimpo está destruindo cada vez mais, não só os locais sagrados, mas também toda a cultura de um povo”, completa o indígena Macuxi.

O garimpo como fato social em Roraima 

O garimpo é parte fundante da região Norte, explica a pesquisadora. Isso significa que praticamente todas as relações de Roraima, por exemplo, são explicadas ou podem ser percebidas apesar e a partir dessa atividade – para o bem e para o mal. 

“Eu diria que o garimpo é parte constituinte do processo de colonização do Brasil e da Amazônia também”, pontua. 

A garimpagem do ouro, do diamante, da borracha e todo o processo de exploração desses recursos naturais, tem uma carga transformadora da natureza. 

“Nós temos um ambiente extremamente propício, rico de minerais nobres, semi nobres, preciosos, pedras, metais, etc. Então, eu diria que é impossível não falar da região Norte quando a gente pensa como o Brasil se insere no contexto da divisão internacional do trabalho e na organização do capital no processo de fornecimento de matérias primas para o grande capital”, explica a pesquisadora do tema. 

“O garimpo impacta tudo. As plantações, a pesca, as terras e, evidentemente, os mais afetados direto e no primeiro momento são as comunidades indígenas, porque eles vivem ainda, apesar do contato com a população branca, né”, continua. 

A entrada de políticas sociais nas comunidades indígenas, como por exemplo o Bolsa Família e aposentadorias, gerou, segundo Rodrigues, uma transformação no modo de vida tradicional. A entrada das igrejas também teve um papel muito forte nessa transformação, já que houve um impacto social e cultural. Mas a chegada dos garimpeiros nessas regiões mudou todo o cenário, além de trazer consigo diversos tipos de violência. 

A manipulação como forma de avançar com o garimpo

Na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TI RSS) o CIR presenciou o aumento de pontos de garimpos ilegais e estima-se a presença de mais de 2 (dois) mil garimpeiros, com estimativa de aumento a cada dia. 

“Em uma das regiões na TI RSS, a região Raposa, surgiu um ponto de garimpo (Garimpo do Atola ou Tarame), em 2018. Vários garimpeiros chegaram nas comunidades próximas Raposa I e Raposa II, principalmente na comunidade Napoleão, e começaram a cooptar as lideranças para os apoiarem com a promessa de que os indígenas receberiam uma porcentagem”, conta  Aureliano.

Após a instalação da garimpagem, os impactos são cotidianos para os indígenas, explica o assessor jurídico do CIR. “Hoje tem várias máquinas chamadas de “moinho” instaladas nesse garimpo para triturar as pedras para extrair o ouro. Depois lavam o material triturado e despejam os resíduos, inclusive o mercúrio, nos igarapés e lagos que estão ali próximos”.

“Em outra região, região da Serras, os garimpeiros se instalaram próxima à comunidade PIOLHO, nas margens do Rio Kinor, precisamente no local chamado “Pedra do Sebo”, que é um porto usado pelos moradores daquela comunidade. Lideranças denunciaram que os garimpeiros estão aliciando os indígenas para os apoiar, ameaçaram de morte o Tuxaua (líder da comunidade) e outra liderança porque estavam denunciando o garimpo”, contextualiza. 

“Nos últimos dias aumentou o número de barracos de garimpeiros no local, de 06 para mais de 10. Segundo relato de uma das lideranças, os garimpeiros alegaram que não pretendem sair, inclusive já levaram motores geradores de energia, freezers e que em breve vão instalar wi-fi no local. O consumo de bebidas alcoólicas nesse local é constante, inclusive ouviram tiros com arma de fogo”, exemplifica o indígena Macuxi. 

Os garimpeiros usam da manipulação para convencer os indígenas e, assim, conseguem aliados para a extração e geram conflitos dentro das comunidades. 

“É uma triste realidade quando o indígena começa a ouvir o garimpeiro de que “o ouro vai trazer qualidade de vida para a comunidade” , ó indígena começa a mudar seu pensamento em relação ao meio ambiente, principalmente quando se fala em preservação das riquezas naturais. Na verdade, os garimpeiros iludem alguns indígenas, falando apenas sobre as vantagem de extrair os minérios. Alguns indígenas inclusive estão a favor dos garimpeiros que só querem destruir o meio ambiente, sem olhar os impactos negativos que gera”, ilustra.  

Aureliano explica que são comuns os relatos de furto de gado e outros animais das comunidades, além das ameaças, drogas e doenças. 

“Em 2020 as invasões aumentaram devido às recomendações sanitárias e a falta de ação dos órgãos de segurança pública, que alegam falta de recurso, estrutura para combater os garimpos ilegais e questões sanitárias devido à pandemia”

“Causa vários atos de violência contra a população indígena, como ameaça de morte, assassinatos, agressão física, ataque às comunidades, exploração e humilhação. 

France Rodrigues lembra sobre os impactos direcionados às mulheres e crianças. “Há também um aumento significativo de violência contra as mulheres, né? As mulheres e as crianças são afetadas não só pela questão ambiental, mas do ponto de vista social. São as mulheres mais sujeitas ao processo de violência sexual cometida pelos próprios garimpeiros”.  

“Isso tudo é parte da consequência do que a gente chama de impactos sociais e culturais da mineração e da garimpagem em terras indígenas”, completa. 

A pesquisadora afirma que há estudos que revelam os fortes impactos do mercúrio na contaminação da vida humana e do meio ambiente. “Existem trabalhos que provam que o mercúrio derramado afeta diretamente o solo, os rios, e causa danos aos seres humanos, aos peixes, à vida marinha. Esse cenário também é extremamente danoso quando a gente pensa nos animais, na vegetação”.

“O mercúrio também pode causar cânceres e doenças irreversíveis ao ser humano. Aqui ou em qualquer lugar que você tenha garimpagem, você vai encontrar esses impactos direto na natureza e consequentemente na vida das pessoas que que estão próximas”, continua.

“É uma transformação no habitat, né? O habitat mais direto. Eles vivem basicamente [os indígenas] da agricultura, da pesca, da criação de animais, então quando você tem um solo contaminado por mercúrio, se você tem um desmatamento extremamente desorganizado e ilegal como acontece pra explanação mineral – que não acontece só nos rios, você vai ter uma mudança na organização social e econômica dessas populações. Esse é um impacto muito próximo e muito direto”, coloca. 

A pesquisadora explica que o mercúrio impacta o organismo mais lentamente e que os filhos de pessoas contaminadas que vão sofrer de forma mais radical esse efeito. 

“Já essa transformação social e econômica, ela já acontece no primeiro momento em que os garimpeiros chegam na beira do rio, né? Onde eles ficam com escavadeiras, com toda a tecnologia que eles têm acesso hoje. Eles escavam as beiras dos rios, eles removem, mudam direcionamento das águas. Então, consequentemente, eles tão tirando os peixes e a vida marinha daquele território que é fundamental para o equilíbrio”, pontua. 

Como transformação direta desse processo social e ambiental, há o impacto irreversível, uma vez que algumas atividades extrativistas não permitem que a região se recomponha e se recupere. 

“Hoje, o Tepequém – que foi uma das primeiras áreas de garimpagem em Roraima, tem uma área turística. Você tem lá crateras ainda abertas, que hoje chamam o Lago Esmeralda. E o que é o Lago Esmeralda? É uma grande cratera cavada pelos garimpeiros há muitos anos e que até hoje não há como escoar a água. Com as chuvas, se criou o lago, que hoje é visto como turístico”, explica. 

“Aos poucos, a região está tentando se recompor, esse algo hoje tem alguns peixes, mas não como deveria ser, é uma adaptação. E essa transformação da região causou muitas mudanças no estilo de vida das populações da época e de hoje em dia”, finaliza a pesquisadora.

Onde ocorre o garimpo? 

Rodrigues explica que os garimpeiros brasileiros se tornaram referência para os países vizinhos quando o assunto é onde encontrar os minérios. Além das tecnologias de mapeamento, quem trabalha com a atividade garimpeira no Brasil acaba desenvolvendo um saber empírico. 

“O trabalho prático traz um conhecimento único sobre regiões, técnicas e tudo que envolve a atividade garimpeira. Não à toa, garimpeiros de toda a América do Sul – seja da Guiana Francesa, do Suriname ou da Venezuela, que são regiões de grande potencial de minérios -, se espelham nas experiências da região Norte do Brasil. E dependendo das condições políticas e econômicas, do valor desse mineral no mercado internacional, algumas regiões se tornam muito mais atrativas, né?”, esclarece a pesquisadora. Para ela, a explicação é muito mais do que técnica, é política.

Aureliano lembra que a situação de garimpo na TI RSS é muito preocupante, já que nos últimos anos os pontos de garimpo ilegal aumentaram nas áreas Raposa II, Wixi, Araçá da Serra, Mari Mari, Rio Kinor, Rio Maú, Mero, Mato Grosso, Mutum, Água Fria, Caju, Serra Verde, Flexal, Mina Seca, Rio Cotingo e Comunidade Piolho.

“Sobre a Cachoeira do Urucá (próximo à Cachoeira do mesmo nome, que teve repercussão na mídia nacional), localizada na região das Serras, TI RSS, no município de Uiramutã, lideranças informaram que há presença de garimpeiros na cabeceira do igarapé, fazendo várias perfurações nas Serras, isso causa a erosão e assoreamento do igarapé quando chove”, exemplifica o assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima.

Relatório lista ações diárias do garimpo contra comunidades indígenas

O estudo Cicatrizes na floresta: evolução do garimpo ilegal na TI Yanomami em 2020 produzido pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) e Associação Wanasseduume Ye’kwana (SEDUUME) traz um relatório produzido por indígenas da região, já em tempos de pandemia da COVID-19, que ilustra, em detalhes, como o garimpo na TIY não só vem impactando o meio físico, mas também tem afetado diretamente a rotina das comunidades que vivem nas margens do rio Uraricoera. 

1. A intensa movimentação de embarcações no rio para abastecimento do garimpo;

2. A circulação constante de helicópteros e aeronaves utilizando pistas de pouso oficiais e/ou clandestinas, igualmente servindo para a logística de abastecimento aos núcleos garimpeiros;

3. A cobrança de pedágio por garimpeiros que controlam determinada parte do rio em desfavor de indígenas e não indígenas;

4. A contaminação das águas, tornadas impróprias para o consumo das comunidades que ali vivem e transitam; a acumulação de lixo ao longo do rio;

5. A atuação de balsas e o consequente assoreamento dos rios; a movimentação de quadriciclos no interior da Terra Indígena, abrindo estradas de lama onde antes corriam trilhas utilizadas por indígenas no interior da floresta, deteriorando locais sagrados e impactando a fauna e flora; a existência de acampamentos ‘perenes’ de não indígenas no interior da Terra Indígena; entre outros.

O Estado como incentivador do garimpo ilegal 

“Nós temos um Estado propositadamente feito, pensado e arquitetado pra que ele não faça esse processo do papel do Estado que é fiscalizar e  punir. Muito pelo contrário, né? Nós temos um presidente e um ministro do meio ambiente que favorecem e estimulam a ilegalidade da exploração mineral”, explica a professora da UFRR. 

“Há um lobby que favorece os grandes, que financia os grandes ou compra parlamentares das mais diversas vertentes, né? São políticos eleitos pelo povo mas que são pagos pra que aprovem leis que sejam favoráveis a esse processo de exploração em terras indígenas. Aqui [em Roraima] a gente temos algumas referências, como por exemplo Romero Jucá”, segue.

Em outubro de 2020 a Polícia Federal apreendeu na casa do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) uma pedra que suspeita ser uma pepita de ouro durante uma operação sobre supostos desvios na Saúde. Na mesma ocasião, o senador foi flagrado com R$ 33 mil na cueca.

“A ausência de um estado comprometido com a preservação ambiental ela é tão danosa quanto o mercúrio para nossa vida”, diz pesquisadora 

Ela explica que apesar de serem os garimpeiros a fazerem o esse processo inicial de exploração, o interesse maior vem das grandes mineradoras. Para entrar em alguns garimpos de áreas indígenas é preciso de recursos e esses investimentos geralmente vem do lobby financiado pelas mineradoras.

“Eles fazem esse processo inicial e depois vêm as mineradoras, como já aconteceu no Pará e outras regiões”, completa a pesquisadora.

Auto-organização para preservação

Após várias denúncias e a falta de ação efetiva por parte do Estado Brasileiro de combater essa prática ilícita, os povos indígenas começaram a se organizar para fazer a vigilância nos territórios. 

Hoje existem mais de 300 Agentes Indígenas de Monitoramento e Vigilância Territorial, denominado Grupo de Proteção e Vigilância Territorial Indígena (GPVITI) que fazem o monitoramento das TI, inclusive com a construção de “Postos de Vigilância” ou “Barreiras de Fiscalização”. 

A atuação mostra resultado. Em abril de 2020, as lideranças com apoio do GPVITI retiram balsas instaladas pelos garimpeiros no Rio Cotingo na TI RSS.

“Hoje as comunidades estão construindo suas barreiras de vigilância em pontos estratégicos, com objetivo de impedir a entrada de pessoas não autorizadas nos territórios. Além disso, há a formação de Agentes Territoriais e Ambientais Indígenas, e Operadores Indígenas de Direito, com objetivo de relatar as invasões e encaminhar as denúncias às autoridades estatais”, explica Aureliano.

Segundo o assessor do CIR, há receio de que isso possa agravar as ameaças contra os indígenas que atuam nas barreiras e que fazem a vigilância do território.

Para a professora da UFRR, é importantíssimo que o combate ao garimpo ilegal em terras indígenas seja uma pauta de toda a sociedade brasileira.

“É fundamental que a sociedade civil barre toda e qualquer tentativa de legalização das atividades minerais e exija, cobre e, se for o caso, até denunciar nos  mecanismos internacionais a ausência do Estado brasileiro no processo de preservação não só da natureza, mas também das populações tradicionais”, explica Rodrigues.

“Elas fazem parte da nossa história, esses povos são fundantes do nosso ‘Eu’ aqui, né? O ‘Eu’, que eu digo, o nosso ser identitário, roraimense. Principalmente por meio da cultura e de todo o seu cabedal cultural e social que eles mantém ainda. Apesar de todas as transformações, elas ajudam no equilíbrio da natureza e também no equilíbrio social, né?”, finaliza a pesquisadora sobre garimpo e comunidades indígenas.

Edição: Vinícius Segalla

Garimpeiros com a caneta, mangueira de água usada na escavação da terra em garimpo na região do Rio Mucajaí (RR) – Daniel Marenco

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