Fome, estômago e consciência da superexploração

Na rotina de “N” e “V”, duas catadoras de latinhas e mantenedoras de suas famílias, um retrato do trabalho (e das desigualdades) no país. O que há por trás do abismo entre os que consomem e os que sobrevivem à espera de descartes?

Por Roberta Trespadini*, em Outras Palavras

A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago.
(Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo)

1. A realidade concreta tal qual ela é, independente dos nossos desejos

O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor nos meus estudos, pode ser formulado resumidamente assim: na produção social da sua vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas de consciência determinadas socialmente. O modo de produção da vida material condiciona em geral o processo de vida social, político e espiritual. […]Assim como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se pode julgar tão pouco uma época tal de transformação pela sua consciência, mas, pelo contrário, deve-se explicar a esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças sociais produtivas e as relações de produção.

(Karl Marx, Prefácio Contribuição à crítica da Economia Política)

“N” tem 63 anos e vive em sua casa com esposo e filho. “V”, sua companheira de trabalho e amiga da vida, vizinha de bairro e acompanhante histórica de mais de 12 anos de caminhadas pelos bairros, tem 58 e vive com mais 13 pessoas. Duas mulheres negras, batalhadoras, que empurram o carinho de construção vazio, na ida, e com aproximadamente uns 12 a 13 kg, na volta, quando o giro pelos ditos bairros nobres, é bom.

Estas duas mulheres saem de suas casas as duas da madrugada, caminham por aproximadamente 3h até sua parada inicial de trabalho do dia – um bairro que fica há aproximadamente 20km de onde moram –, entre subidas, descidas, avenidas longas e vielas ao longo do percurso.

No bairro dos descartes que serão transformados em sustento por N. e V. – o mais populoso da ilha dos sonhos – estas trabalhadoras, ao longo da manhã, integram a paisagem de um urbanismo que resulta repleto de arranha-céus e, quando é possível antever, ver, conviver, algo de humanidade entre suas ruas.

Chegam entre às 5 e 5h30 da manhã, sentam, fazem seu lanchinho de forma socializada e esperam a descida dos lixos presentes nos mais de 100 edifícios e casas que compõem parte das ruas em que transitam. Junto com elas, registram-se outros e outras tantas trabalhadoras no mesmo ofício, sem necessidade de disputar território, afinal, tem latinha, garrafa pet, misturada a tudo quanto é tipo de material descartado, para todos e todas.

No último movimento que fizemos de encontrar-dialogar-cuidar um pouco que seja desses homens e dessas mulheres, em um perímetro de aproximadamente 2 km em linha reta, do que vai da praia ao bairro, encontramos 14 trabalhadores e trabalhadoras na mesma condição. Por ser o bairro mais populoso, é também um espetáculo de produção de lixos sem separação, sem preocupação, apenas “jogados fora”.

Das 6h às 10h da manhã, N. e V. se esbarram, voltam a se separar, até que concluem a jornada do dia. Entre 10h30 e 11h rumam de volta para casa, em um sol cuja sensação térmica beira 40 graus ou mais.

Chegam entre às 12h ou 13h. E começam o processo do cuidado da família. Somente após terem terminado os afazeres é que juntam, reflexivas, o acumulado da semana, para verem o quanto receberão em troca de todo o esforço físico, mental e afetivo presentes na jornada diária de trabalho não pago em sua totalidade, cujo preço a receber depende de uma tal oferta e procura ministrada pelo senhor mercado.

Faça chuva ou faça sol, precisam, ao longo da semana, ter feito um trabalho básico de contas: 1 latinha tem um peso aproximado de 15g. É necessário um mínimo de 67 latinhas para chegar a 1kg. Para chegar a 1 tonelada de latinhas, será necessário achar, retirar do lixo, amassar, carregar, separar e entregar para a central de reciclagem um total de 6.700 latinhas.

Em cada viagem, carregando a mão o carrinho de ferro oxidado pelo tempo, cada uma destas mulheres transporta, aproximadamente, 200 latinhas. Mas, se o dia for para lá de bom, e o corpo não estiver tão maltratado do dia anterior, chegam a 300. Na semana, trabalhando ao menos 4 dos 7 dias sempre necessários, cujo debate de dia útil merece uma reflexão posterior, colhem as sementes artificiais de alumínio, resultado do progresso técnico e da ideia de civilização do século XXI, que voltarão a ser matéria-prima da indústria no período seguinte: a bauxita.

Cada quilo de latinha, a depender dos jogos do mercado, varia entre R$3,50 e R$5,00. Se na semana, cada uma coleta 300 x 5 dias (1500 latinhas na semana), isto as remunerará em mais ou menos R$ 22,00 por semana e quase R$90,00 no mês.

No caso das garrafas PET, a situação é ainda pior, concretamente. O preço pago pelo quilo é de aproximadamente R$1,80. O que equivale a 16 garrafas de 2,5 litros, 26 de 1 litro, ou 36 garrafas de 600 ml. Para cada kg coletado, dado o preço pago pelo mesmo, será necessário quase 3 vezes mais a coleta de plástico, do que de latinha de alumínio, para se chegar próximo à remuneração alcançada pelo material em alumínio.

Sem dúvida estas mulheres sabem, na prática, o poder das latinhas em suas rendas mensais. O que não vale, necessariamente, para aqueles e aquelas que, após consumirem o líquido de “luxo” de dentro, descartam o “lixo”, sem ter a menor ideia de que o aparente destino final, é apenas o recomeço de um processo produtivo, mediado por abusivas, desumanas, empreendedoras horas de superexploração da força de trabalho destas nada invisíveis pessoas que para viver dignamente se movimentam pelas cidades que habitam a cidade. Cavucam diariamente nossos lixos para sobreviverem ou completarem suas rendas familiares.

A realidade tal qual ela é, independente dos nossos desejos, é percebida, de forma distinta por estes dois grupos: 1) de consumidores que descartam sem preocupação com o conteúdo que consomem, menos ainda com as vidas das pessoas que aguardam o descarte; e, 2) produtores de um processo produtivo futuro, à margem do exército industrial de reservas, portanto imersos em uma vida de superexploração remunerada ainda mais abaixo do que o valor médio necessário para sobreviver em uma sociedade como a nossa.

Entre estes dois grupos habita uma semelhança: os/as trabalhadores que consomem os líquidos das latinhas são descartadores que vendem suas forças de trabalho formal ou informalmente, em sua ampla maioria. E, os/as trabalhadores catadores/as são seres sociais que dependem do consumo daqueles para terem o que catar, vender e somente depois obter uma renda mínima que os/as permita comer, viver e conviver.

2. A realidade tal qual ela precisa ser entendida: dependente, para além dos nossos desejos

Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais, ativos, como eles são condicionados por um desenvolvimento determinado de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a eles corresponde até chegar às suas formações mais amplas. A consciência nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo real de vida. Se em toda ideologia os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara obscura, é porque este fenômeno deriva do seu processo histórico de vida, da mesma maneira que a inversão dos objetos na retina deriva imediatamente do seu processo físico de vida (Marx e Engels A Ideologia Alemã)

“N.” e “D.” são expressões concretas da superexploração da força de trabalho que tem na raça, no gênero e na diferença entre bairros pobres e ricos (classes sociais) a tessitura desigual inerente à condição de produção de valor, que resultará em transferência de valor para as economias mais desenvolvidas e apropriação de parte ainda maior do valor produzido, na forma de trabalho não pago, por parte dos capitais que operam internamente1.

No afã de superexplorar como forma de remunerar os capitais de dentro e de fora, há um contínuo processo de constituir as desigualdades entre trabalhadores-consumidores; trabalhadores-empreendedores; trabalhadores-catadores; trabalhadores da fome, com fome, sem dinheiro, sem teto e, em muitos momentos, com digna raiva.

A dependência, face destituída de autonomia no capitalismo em suas diferentes fases imperialistas – do século XVIII à atualidade — define a lógica tendencial ao aumento dos/das catadoras em relação à diminuição quantitativa de determinados tipos de trabalhos formais. Estima-se que existiam aproximadamente 1 milhão de pessoas nesta condição laboral. No entanto, em tempos de pandemia, desemprego e fome em crescimento exponencial, estes números devem ter crescido abruptamente. O interessante é que este exército de trabalhadores à espera do consumo final do líquido venenoso adquirido pelo preço da saciedade do consumo pretérito, para recolher a latinha como sobra, são responsáveis por 90% do que é reciclado no país. Catam, separam, amassam, entulham e vendem a matéria-prima que será utilizada pelo setor produtivo no período seguinte.

Segundo o Anuário de reciclagem 2017-20182o nordeste e o sudeste abrigam o maior número de trabalhadores, 31% o primeiro e 41% o segundo. Do total, 72% são homens, 74% são pretos/pardos/indígenas e 71% têm entre 30 e 60 anos. 17% não têm escolaridade e 60% têm o fundamental (completo ou incompleto).

Se há algo para buscar nas raízes do nosso Brasil, este algo é a condicionante do colonialismo e do escravismo nos quais foram fincadas as estruturas da dependência após nossa independência formal. Nesta, a superexploração, condição de ser do nosso metabolismo social, é a veia que permanece aberta na drenagem de nossas belezas, na forma da produção e apropriação constitutivas da riqueza mercantil. N. e D. carregam o DNA social da escravidão, dos sem terras, sem tetos e com muito sentido de dignidade manifesto na jornada de trabalho que executam sem direitos ao longo de suas vidas.

É um processo de trabalho (diverso, produtor de diferentes valores de uso e transformado em padrão desigual entre assalariados formais, trabalhadores informais, e entre estes últimos, condições as mais perversas possíveis para uma ampla maioria) orquestrado para virar processo de valorização (mais valia, trabalho não pago apropriado pelo capital antes mesmo de realizar a mercadoria na venda).

3. A economia dependente tal qual ela é: propagadora da superexploração como fonte estrutural3

O trabalho excessivo de parte empregada da classe trabalhadora engrossa as fileiras de seu exército de reserva, enquanto inversamente a forte pressão que este exerce sobre aquela, através da concorrência, compele-a ao trabalho excessivo e a sujeitar-se às exigências do capital. A condenação de uma parte da classe trabalhadora à ociosidade forçada, em virtude do trabalho excessivo de outra parte, torna-se fonte de enriquecimento individual dos capitalistas, e acelera ao mesmo tempo a produção do exército industrial de reserva numa escala correspondente ao progresso da acumulação social. (Marx, O capital, Cap. XXIII)

Entre “N.”, “D.”, os quase 40 milhões de trabalhadores sem direito no Brasil como seus pares, somados aos 30 milhões de trabalhadores formais, há um violento fio condutor comum: compõem a totalidade da superexploração da força de trabalho. E, quanto maior o exército dos de fora da formalidade, tanto mais intensa e prolongada a apropriação de parte do trabalho não pago dos e das que estão formalizados/as.

Nesse sentido, a superexploração da força de trabalho é medida concretamente pela totalidade dos trabalhos envolvidos no processo de produção em diferentes ramos produtivos de diversas partes do mundo, o grau de concorrência entre os monopólios e a relação que há entre as esferas doméstica e internacional na composição dos preços de produção e de mercado. Entre estes dois, gravita a mais valia ou práxis da exploração.

Entre a diversidade da força de trabalho e os capitais que a expropriam, espoliam e superexploram, há uma suposta mediação chamada Estado Nacional. Este, representante formal do capital, hospedeiro da fantasia organizada da democracia, liberdade e fraternidade exerce, no afã de manutenção e expansão do direito à propriedade privada, a figura coercitiva contra os e as que vendem suas forças de trabalho. É coercitivo inclusive quando cria, no consenso orquestrado pelos donos do banquete em reuniões de produção das regras violentas, leis que aniquilam, preterem, refutam o direito social, civil e comum, dada a supremacia onipotente do penal, criminal, da propriedade.

Enquanto a sociedade do espetáculo4 forjar um tipo de consciência meramente mercantil, incapaz de nos fazer interpelar a realidade para entender como a mesma funciona, a troca seguirá sendo injusta por materializar todo tipo de violência desigual. O momento atual é muito perigoso: rebaixa ainda mais os processos de formação da consciência de classe, de raça e de gênero, porque coloca no limite a sobrevivência que começa com o estômago resolvido.

O momento atual exige muita paciência no entendimento coletivo sobre a nossa recomposição como classe em si (trabalhadores de todo tipo) e classe para si (trabalhadores conscientes da superexploração, seus mecanismos estruturais e superestruturais combinados com as opressões, e as possibilidades históricas de romper com ditos mecanismos ao longo da história).

As histórias de “D” e de “N” nos remetem ao estudo do processo histórico presente na cotidianidade destes trabalhadores que para sobreviver ficam à espera de nossos descartes. Mais do que algo novo na história, o que temos é a renovação de uma perversidade contra nossos povos negros, índios e camponeses pobres. Por isso que ao olhar para as periferias verificamos muito do processo histórico violento cometido contra os povos que vivem do campo. A periferia e o campo são irmãos siameses e se encontram há mais de 500 anos sob o jugo perverso e depredador do pai monstro violador: o capital, antes comercial e bancário, agora financeiro.

É no palco da história que devemos analisar o hoje com vistas a superá-lo. Quanto maior a incidência da fome, mais difícil a organização dos e das trabalhadoras, porque mais urgente é sobreviver. Em tempos assim, o melhor a fazer é voltar a estar junto, com todo o cuidado que isto sempre implicou e agora torna-se ainda mais necessário. Resolver o tema da fome que é indissociável da superexploração é revelar a relação fundante entre os/as trabalhadores do campo e da cidade, tanto no que produzem, como para quem, de que forma e com que objetivo produzem.

Um projeto nacional, democrático e popular passa, necessariamente, pela escuta dos nossos povos: das florestas, dos rios, dos campos e das cidades presentes nas partes cortadas pelos múltiplos asfaltos cimentados que dificultam os encontros. A aposta é na produção coletiva da diversidade de alimentos para o corpo, a subjetividade, os diversos ingredientes que compõem a beleza do que é o humano para além do capital. Se conseguiremos rever para poder revisar o que até então erramos, eis uma das questões fundamentais do nosso tempo que requer ver vida, onde só se respira morte.

Ainda que muitos possam crer que a consciência seja algo formada pela leitura da palavra, é na leitura/vivência do mundo, a partir da realidade concreta das múltiplas privações que retorcem o estômago, que uma parte da tomada de consciência se revela. A consciência das privações, das ausências manifestas na presença da injustiça de toda ordem, é operacionalizada pela vivência real, concreta, da superexploração. Dita consciência tende a ser insuportável.

A cotidianidade da superexploração como um dos mais fecundos e tristes forjar da consciência. Mas, a depender do teor da carência, da privação, a tomada de consciência pode ser substituída pela necessidade de superação das dores por todo tipo de droga que resolva as contorções do estômago, da alma, da vida. A fome, a falta de abrigo, de terra, de trabalho em condições dignas, resulta em uma superexperiência sobre a realidade da superexploração. O que exige, no interior da classe trabalhadora, entender a diversidade que a compõe em toda sua tessitura violenta.

É tempo de retomar o sentido de um conviver repleto de aprendizagens mútuas. É passada a hora de revisarmos nossas supostas verdades e, principalmente, ajudar os nossos e as nossas a resolverem primeiro o problema do estômago vazio ou mal alimentado. Aprender o que ainda não se sabe para, sabendo melhor, operar diferente do que até então o fizemos como classe. Um reaprender que reitera a centralidade da raça e do gênero na lógica da exploração e da opressão do capital.

Oxalá que muitos e muitas estejam, em meio às tristezas do momento atual, em tempos de revisão profunda. E que esta reaprendizagem abra passo para reconhecermos as experiências camponesas, quilombolas e indígenas presentes no cotidiano das cidades que integram a cidade, como outros rumos necessários e possíveis para além da lógica do capital.


1 Nos estudos da crítica da economia política entende-se como fundamental a diferença entre valor (produção social e histórica relacionada a apropriação por parte do capital, do trabalho excedente realizado pelos trabalhadores. E, na relação concorrencial entre capitais monopolistas, há uma contínua apropriação de parte da mais valia produzida por outro ramo, setor. No caso da guerra entre as nações, isto implica um processo contínuo de saqueio da violenta forma que assumem as condições de trabalho na América Latina, por exemplo, culminando por parte dos capitais que atuam nos nossos territórios na superexploração como mecanismo de compensação de suas perdas nas relações internacionais. Para mais detalhes sobre este tema ver a tese de doutorado de Marisa Amaral (2012): Teorias do imperialismo e da dependência: a atualização necessária ante a financeirização do capitalismo. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/12140/tde-09102012-174024/publico/MarisaSilvaAmaralVC.pdf

2 Disponível em: https://ancat.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anua%CC%81rio-da-Reciclagem.pdf

3 Sobre o debate da superexploração como mecanismo inerente, próprio, ao capitalismo dependente latino-americano, ver os textos de Outras Palavras assinados por Roberta Traspadini e Marisa Amaral.

4 Alusão ao espetacular livro de Guy Debord com o mesmo título que, posteriormente, resultou em um excelente documentário: https://www.youtube.com/watch?v=q0AJ66Rb-1o

*Educadora Popular e Professora Pesquisadora da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA). Latino-americanista, é uma estudiosa dos seguintes temas: pensamento social latino-americano, movimentos sociais e luta popular na América Latina, de uma propagadora da Teoria Marxista da Dependência

Grafitti: Mundano

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