Acusado de matar líder, fazendeiro ameaça com armas e drones no Tocantins, contam camponeses

Em 2018, o grileiro Paulo Freitas conseguiu expulsar famílias que acampam em Palmeirante; hoje ele intimida as famílias obrigadas a atravessar a fazenda; em 2010, ele tentou atropelar um agente da CPT na frente de policiais e de uma oficial de justiça

Por Luiza Sansão, em De Olho nos Ruralistas

— Meu maior sonho é retornar para a minha terra, com meus companheiros, todos. A gente voltar para as nossas casas, para a normalidade. Plantar, criar, tirar nosso próprio alimento. Ver todo mundo tranquilo, como era antigamente. Pra mim é uma questão de honra. E eu espero, com fé em Deus, que a gente consiga voltar e ter direito, como ser humano, ao nosso pedaço de terra. É importante pra todos que vivem da terra, que tiram seu sustento dela.

As palavras são de Lindomar Pereira de Souza, 40 anos, que viveu com a companheira e os três filhos por dez anos em um terreno no interior de uma fazenda improdutiva no município de Palmeirante (TO). “A gente produzia, tinha plantio, tinha tudo o que quem mora na zona rural precisa ter”, conta, saudoso, sobre um passado cada vez mais distante.

Sobre o presente, a definição do lavrador contrasta: “muito sofrido”. Há três anos, a sua e outras dezoito famílias foram expulsas do terreno de 203 alqueires entre as Fazendas Freitas e Bonito. Eles formam a Comunidade Gabriel Filho — nome que homenageia o companheiro Gabriel Vicentes de Souza Filho, assassinado em 16 de outubro de 2010 no acampamento.

O acusado pelo assassinato, com dois pistoleiros, é o grileiro Paulo de Freitas, o mesmo que, em 2018, despejou as famílias, por meio de uma liminar de reintegração de posse. O crime aconteceu quando Gabriel Filho, à época um líder da comunidade, exigiu que Freitas e seus homens devolvessem o facão que haviam tomado de outra lavradora do acampamento.

SOLTO, FAZENDEIRO ANDA COM CAPANGAS E ESPINGARDA PARA INTIMIDAR

As famílias despejadas em 2018 vivem hoje precariamente acampadas na Fazenda Bonito, área de 52 alqueires que já era ocupada por sete famílias.

Para intimidá-las, Freitas utiliza as velhas e também novas práticas violentas que são marcas profundas da história do país, para fazer os trabalhadores desistirem do sonho de ter seu pedaço de terra para lavrar e viver. Jagunços postam-se, armados, nas estradas por onde os camponeses circulam, com intimidações e ameaças, por vezes, silenciosas — outras, explícitas.

“Querendo ou não, a gente tem que passar por dentro da fazenda”, diz Lindomar. “A estrada é por dentro, passa pela sede. Na semana passada mesmo, quando um companheiro estava passando por lá, estavam Paulo Freitas e mais dois, que saíram da caminhonete, cada um com uma espingarda. Não falaram nada com ele, mas só de sair da caminhonete e ir pra beira da estrada com espingarda na mão…”. O camponês completa: “A gente só passa mesmo porque tem que passar”.

Em outra ocasião, quando passava com companheiros, ouviu um jagunço dizer a outro: “É aquele ali”. Apontando para Lindomar, que entendeu bem o recado e fez um registro de ocorrência, sob a orientação da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A CPT acompanha a comunidade desde que Gabriel Filho foi assassinado, em 2010.

Quando o acampamento era “bem na beira da estrada”, os jagunços faziam rondas noturnas intimidatórias. “Eles vigiavam nós à noite, com lanternas”, recorda Lindomar. “Eles vinham a pé pela estrada alumiando, focavam nos barracos”. Por causa dessas luzes, há oito meses, as famílias se mudaram da beira da estrada.

Mesmo assim, a intimidação continua, só que agora de uma forma mais “moderna”. Por meio de um drone que vigia as famílias à noite, tirando o sono da comunidade, sobrevoando as frágeis moradias erguidas com lonas, sacos de nylon popularmente chamados de bags pelos lavradores, varas de pau-a-pique e suor. “É uma vez por semana, às vezes duas”, conta o camponês. “A gente vê e já comenta: ‘a nossa estrela tá rodando baixa’”.

Ainda não foi possível denunciar essa prática “tecnológica” de ronda, segundo a advogada Lorrany Lorenço, da CPT, porque não há fotos e vídeos do drone “em ação”, já que os moradores da comunidade têm medo de serem flagrados fazendo registros do objeto voador.

Diversas denúncias em relação aos riscos corridos pelas famílias e ameaças a integrantes da comunidade, a cujos registros o De Olho nos Ruralistas teve acesso, foram encaminhadas a órgãos públicos nas esferas estadual e federal nos últimos anos.

Muitas vezes, a polícia acaba atuando de acordo com os interesses dos ruralistas. “Infelizmente, isso acontece muito”, afirma a advogada. “A gente faz as denúncias das violências que as famílias sofrem e elas acabam sendo revertidas contra elas mesmas. As polícias vão ao local por conta das denúncias feitas, mas, quando chegam ao imóvel ocupado, começam a investigar as famílias, em vez de investigar o fazendeiro. Não apenas na comunidade Gabriel Filho, mas nas outras que acompanhamos”.

COMUNIDADE REIVINDICA CRIAÇÃO DE ASSENTAMENTO DESDE 2007

Durante dez anos, de 2007 a 2017, a comunidade solicitou, com orientação da CPT, que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) realizasse a vistoria do terreno ocupado pelas famílias. Somente em 2018 a vistoria foi realizada.

“A terra é viável para criação de assentamento, mas não houve continuidade do processo porque havia ocupação do imóvel”, explica Lorrany. “O processo foi, então, suspenso pelo período de dois anos”. Ou seja, em 2020, ele deveria ter sido retomado, o que não aconteceu. “Estamos em diálogo com o Ministério Público Federal (MPF) para obrigar o Incra a retomar o processo”, afirma.

Procurado pelo observatório, o Incra respondeu que tudo está parado desde janeiro de 2019, ou seja, desde que o presidente Jair Bolsonaro tomou posse.

“Os processos de vistoria e de obtenção de imóveis rurais para reforma agrária foram suspensos em janeiro 2019 em virtude de insuficiência orçamentária”, informa a instituição. “A situação persiste e a indisponibilidade de recursos é impedimento legal para continuidade dos processos de obtenção em tramitação e a instrução de novos procedimentos sem a devida previsão orçamentária.”

O imbróglio que envolve a Fazenda Recreio I/Freitas e a Fazenda Bonito é marcado por fraude documental e briga pela posse. Uma das partes, Pedro Bringel, proprietário da Fazenda Bonito, afirma ter sido enganado por Paulo Freitas e reivindica a fazenda de volta.

Em 1999, o pai de Bringel, Pedro Martins Silva, permutou com a irmã, Lúcia Silva Martins Noleto, 50% da Fazenda Recreio por um imóvel no conjunto urbanístico, que em tese deveria ter 750 m². Quando foi efetivar o negócio, Bringel descobriu que tinha sido enganado, segundo detalha seu advogado, Elex Carvalho. A fraude mais grave ocorreu em 27 de junho de 2000, quando a assinatura de Pedro Martins Silva foi falsificada na escritura pública de compra e venda que fatiou a fazenda da família.

Com posse de documentação grilada, Freitas conseguiu liminar para reintegração de posse, em 2018. “Seis famílias, para tentar se resguardar minimamente e se manter na terra, entraram com as ações de usucapião da outra área [Fazenda Bonito]”, explica a advogada da CPT.

Diferentemente de Freitas, Bringel afirma não ter a intenção de impedir as famílias de retornarem ao terreno que ocupavam. “Recuperada a terra, o plano inicial é que ela seja vendida ao Incra para que seja distribuída entre pessoas que queiram trabalhar a terra”.

A advogada da CPT endossa a fraude de Freitas. “Paulo de Freitas não tem direito”, defende. “Ele nunca trabalhou na área, ele veio do Paraná, adquiriu esses imóveis de forma fraudulenta, não deu destinação social à terra. Quem dava destinação social à terra eram as famílias e, por isso, elas têm direito a ocupar esse imóvel e ter esse imóvel regularizado para elas”.

APÓS ONZE ANOS, FAZENDEIRO AINDA NÃO FOI JULGADO PELO ASSASSINATO

Paulo de Freitas foi denunciado ao Tribunal do Júri pela morte de Gabriel Filho, mas o processo está parado, sem julgamento. Sua defesa entrou com um recurso e espera-se uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (TJ-TO). Os tiros disparados por Freitas, segunda a denúncia, ocorreram há quase onze anos.

O assassinato foi o ápice de um período em que as ameaças contra a comunidade que vivia na área eram frequentes. “Naquela semana de outubro de 2010, as ameaças se intensificaram”, recorda o o agente da CPT, Edmundo Rodrigues Costa, também ameaçado pelo fazendeiro. “Freitas andava armado lá, intimidando, ameaçando. Por várias vezes, ele chegou a abordar pessoas da comunidade dentro da área. Paulo de Freitas é um cara extremamente perigoso, sangue frio, que não tem respeito pelo ser humano”.

No dia 16 de outubro de 2010, Gabriel Filho havia ido a Palmeirante e, quando retornou, soube que um facão, instrumento de trabalho, tinha sido arrancado de uma companheira da comunidade por Freitas e seus pistoleiros.

“Foi uma situação muito tensa, muito triste”, lembra Costa. “Gabriel era uma pessoa muito calma, muito tranquila, que tinha o sonho de ser assentado naquela área, que, após seu assassinato, passou a se chamar Gabriel Filho”.

Pouco depois do assassinato, Freitas se mudou para o Japão, mas vendo a lentidão da Justiça, retornou ao Brasil — e à fazenda, empenhando-se para remover de lá as famílias que, durante sua ausência, continuaram garantindo a função social do lugar, conforme determina a lei.

FREITAS AMEAÇOU ATROPELAR AGENTE DA CPT NA FRENTE DE POLICIAIS

As violências atribuídas a Freitas são diversas, começaram muito antes do assassinato e continuaram acontecendo, inclusive contra a CPT. O agente Edmundo Rodrigues Costa e  o advogado Silvano Lima Rezende contaram à reportagem que já vinham recebendo ameaças do fazendeiro.

Em agosto de 2010, ao acompanhar um dos cumprimentos de reintegração de posse na área, Rezende recebeu ameaças diretas de Freitas — inclusive diante dos policiais que atuavam na operação. Nove anos depois, quando a comunidade foi obrigado a retirar seus pertences dos barraco, Costa foi acompanhar.

Enquanto acontecia a reintegração, vinha já um trator atrás, contratado pelo Paulo de Freitas, destruindo as casas das famílias. Costa começou a filmar a destruição dessa casa. Furioso, o fazendeiro jogou o carro contra o agente da CPT, na presença da oficial de justiça e de policiais militares.

“Falei com a polícia na hora que ele tinha tentado me matar”, afirma o agente. “A polícia ficou meio perdida. Depois de muita luta e conversa ele foi conduzido para a delegacia de Araguaína, fizemos a denúncia contra ele”. Ele reclama que o delegado não qualificou como ameaça de morte, apenas ameaça.

Sem ter sido, até hoje, intimado para depor à Justiça sobre o fato, Costa soube que uma das testemunhas, que estava com Freitas no carro, afirmou, em seu depoimento, que o carro havia avançado realmente na direção de Costa. Mas que não tinha sido intencional, porque “ele estava de sandália e pisou no acelerador sem querer”. O detalhe é que, nesse dia, Freitas calçava botinas, como mostram gravações e fotos.

A reportagem enviou a Paulo de Freitas, por meio de seu advogado, Carlos Eurípedes Gouveia Aguiar, questionamentos acerca de todos esses fatos. Embora tenha afirmado que responderia a todas as perguntas, não houve retorno.

Foto Principal (Thomas Brauer/CPT): camponeses da comunidade Gabriel Filho foram expulsos em 2018 

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