O retorno da fome ao Brasil está no centro de interesses econômicos e políticos. Entrevista especial com Maria Emília Lisboa Pacheco

Uma conjugação de fatores levou o país de volta ao Mapa da Fome, com milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e sem perspectiva de melhora

Por: João Vitor Santos, em IHU On-Line

Não obstante os impactos causados pela crise sanitária global da Covid-19, o Brasil assistiu nos últimos anos a uma escalada no desmonte de políticas públicas que visavam garantir uma alimentação acessível e saudável. O cenário passa pela omissão do governo federal em “cumprir a obrigação constitucional de respeitar, proteger, promover e prover o Direito Humano à Alimentação Adequada – DHAA e de reconhecer o princípio da dignidade da pessoa humana”, o que, segundo Maria Emília Lisboa Pacheco, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, “escancara a gravidade do contexto que vivemos com recorrente violação de direitos”.

Isso tudo é, também, reflexo da impossibilidade de participação da sociedade civil em órgãos do governo que deveriam, por dever constitucional, zelar pela saúde alimentar da população. “Vamos lembrar também que existiam estruturas administrativas e espaços de participação e controle social em conselhos, orientados por objetivos específicos que contemplavam pautas da agricultura familiar, como o Ministério de Desenvolvimento Agrário, posteriormente extinto, e o Ministério do Desenvolvimento Social transformado em Ministério da Cidadania com o esvaziamento de suas antigas secretarias voltadas ao combate à fome”, pondera a entrevistada.

No centro de toda esta problemática, a concentração fundiária e o ininterrupto processo de uma política colonial. “Não realizamos uma verdadeira Reforma Agrária no país. São tempos sem limites, que requerem a mobilização da sociedade para barrar esses processos que aprofundam a situação de insegurança alimentar e a fome”, complementa.

Maria Emília Lisboa Pacheco é assessora da ONG FASE – Solidariedade e Educação. Integrante dos Núcleos Executivos da Articulação Nacional de Agroecologia – ANA e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No Brasil, 19 milhões passaram fome no fim de 2020, segundo dados da Rede Penssan. Como analisar os retrocessos do Brasil, que culminaram na volta ao Mapa da Fome? Qual o peso da pandemia nesse recuo?

Maria Emília Lisboa Pacheco – A indignidade do flagelo da fome é expressão do conjunto das medidas neoliberais adotadas pelo Estado brasileiro. Assistimos a uma escalada autoritária e de negacionismos.

A Emenda Constitucional n.º 95 de 2016, conhecida como “teto dos gastos”, já deixava antever que haveria um desmonte das políticas sociais. O Sistema Único de Saúde – SUS, o Sistema Único de Assistência Social – Suas e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Sisan foram diretamente afetados. A antirreforma trabalhista e a antirreforma previdenciária retiraram a proteção social de milhares de trabalhadores e trabalhadoras. A expansão da fronteira agrícola do agronegócio, o aumento das áreas de mineração, desmatamento e incêndios criminosos geram conflitos socioambientais, criminalização e violência contra lideranças de movimentos sociais no campo, na floresta, aprofundam as desigualdades, gerando mais pobreza e fome.

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil da Rede Penssan mostra o agravamento do cenário. Como fome e pobreza são fenômenos que se relacionam, revelam um Brasil em situação de profunda vulnerabilidade com a pandemia do coronavírus associada à pandemia da fome.

Desde 2018, os indicadores já mostravam 13,5 milhões de pessoas em extrema pobreza. O desemprego, a informalidade e o desalento não pararam de crescer desde o golpe de 2016. Há uma conjugação de fatores que explica então a escala ascendente da fome.

O processo de desestruturação do Sisan foi acelerado no atual governo com a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea, que foi reconhecido pelo relator do Direito Humano à Alimentação – Olivier de Schutter – em 2009, como inspiração para o debate da participação social em outros países. A Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Decreto nº 7.272 de 2010) que regulamenta a Lei nº 11.346 de 2006, está praticamente paralisada e seus programas ou foram desfigurados ou não contam com o orçamento necessário.

É preciso sempre lembrar que o direito humano à alimentação adequada significa ficar livre da fome e ter também a garantia de uma alimentação saudável. Não podemos dissociar essa dupla dimensão. O crescimento da obesidade e do sobrepeso no país mostram também a outra face da insegurança alimentar. A mudança do perfil nutricional em consequência do aumento do consumo dos produtos alimentícios ultraprocessados produzidos pela indústria de alimentos tem gerado as doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, hipertensão arterial, cânceres, doenças respiratórias, que correspondem a um alto índice de óbitos no país.

Mas a defesa da vida com a garantia do direito humano à alimentação adequada não faz parte da agenda do atual governo. Sua omissão em cumprir a obrigação constitucional de respeitar, proteger, promover e prover o Direito Humano à Alimentação Adequada – DHAA e de reconhecer o princípio da dignidade da pessoa humana escancara a gravidade do contexto que vivemos, com recorrente violação de direitos. A conquista cidadã da inclusão deste direito no art. 6º de nossa Constituição, em 2010, é ignorada.

Em 21 de abril deste ano, foi protocolada no STF uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF com pedido de Medida Cautelar, como parte da luta de resistência de movimentos, organizações sociais e partidos políticos, propondo a adoção de medidas para equacionar ou ao menos minimizar o brutal aumento da fome no país.

IHU On-Line – Qual é o perfil das pessoas que hoje sentem o flagelo da fome no Brasil?

Maria Emília Lisboa Pacheco – Os resultados das pesquisas sobre Insegurança Alimentar têm revelado as desigualdades. Os piores índices estão na região Norte e Nordeste, na área rural, entre as mulheres e também na população negra. Eles evidenciam as desigualdades regionais, o caráter estrutural do racismo e a expressão de um estado patriarcal.

As análises desagregadas por segmento da população seguramente explicitarão mais os dados em tempos de pandemia. A fome entre as populações em situação de rua, por exemplo, tem aumentado a olhos vistos.

O estudo da Rede Penssan mostra o impacto dos retrocessos no acesso à água como indicador da severa situação de insegurança alimentar, o que seguramente se reflete nos indicadores da fome no Nordeste.

Na área rural e sobretudo na região Norte, estão a revelar o contexto de reconversão do mercado de terras e o cercamento das populações tradicionais, sobretudo no Cerrado e na Amazônia. No contexto das múltiplas crises pós 2008, a pressão sobre o controle das terras e de bens da natureza como a água e biodiversidade, nas chamadas zonas com reservas de terras, aumentou consideravelmente, seja para uso produtivo, seja como ativo financeiro. O Brasil é visto como uma dessas áreas de fronteira agrícola. As chamadas soluções climáticas baseadas na natureza, que enfocam as florestas e ecossistemas como principais estoques de carbono para o combate à crise climática, intensificam ainda mais a disputa por reservas de terra e a especulação imobiliária.

Dos 16,5 milhões de hectares convertidos pela agropecuária no Brasil nos últimos 10 anos, 12 milhões de hectares foram com soja. Com a flexibilização da legislação agrária e ambiental com propostas de normativas de legalização da grilagem de terras, estão em risco mais de 60 milhões de hectares de terras públicas.

As populações do campo e da floresta da Amazônia e do Cerrado, onde se concentra a maior parte das terras da União, são especialmente ameaçadas e vivem maior pressão no acesso aos bens da natureza e produção de seus alimentos. A realização de estudos de caso, a partir dos dados do levantamento da Rede Penssan, contribuirá para responder concretamente sobre o perfil das pessoas que vivem nas regiões com os maiores índices de insegurança alimentar grave.

IHU On-Line – Analistas apontam que, se não fosse o Auxílio Emergencial, os indicadores sobre a fome seriam ainda piores. Que cenário podemos projetar agora com a redução dos benefícios e até com o fim do pagamento?

Maria Emília Lisboa Pacheco – No ano passado, na primeira fase do Auxílio Emergencial, o governo previa um recurso bem menor do que foi aprovado, graças à pressão do movimento sindical e dos movimentos sociais. É importante registrar que o Inquérito da Rede Penssan foi realizado quando o Auxílio Emergencial, em 2020, estava em seu quarto mês de redução à metade do valor inicial, R$ 300,00 para a maioria e R$ 600,00 para as mães solo, montantes já insuficientes para superar as condições de insegurança alimentar das famílias.

A nova redução dos valores atualmente estabelecidos, variando de R$ 150/mês para quem mora sozinho, R$ 250 para quem mora com a família e R$ 375 para mulheres chefes de família, não cobre a cesta básica. Os dados da Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, realizada pelo Dieese, indicaram que, em janeiro deste ano, os preços do conjunto de alimentos básicos, durante um mês, aumentaram em 13 capitais pesquisadas e estão acima de R$ 600,00.

O maior valor do benefício de 2021 é um pouco mais da metade do Auxílio Emergencial disponibilizado para a população em 2020 – R$ 600 e de R$ 1.200 para mulheres chefes de família. A redução desses valores em lugar de reajustá-los está na contramão do que seria necessário para enfrentar a fome. Com os novos critérios há também redução de cerca de 22 milhões de pessoas e além disso não serão abertos novos cadastros. A previsão é um cenário mais crítico ainda.

IHU On-Line – Olhando para o passado, o que fez o Brasil deixar o Mapa da Fome? E por que essa saída não foi sustentada por mais tempo?

Maria Emília Lisboa Pacheco – No passado houve valorização do salário mínimo, o aumento de emprego. Vamos lembrar também que existiam estruturas administrativas e espaços de participação e controle social em conselhos, orientados por objetivos específicos que contemplavam pautas da agricultura familiar, como o Ministério de Desenvolvimento Agrário, posteriormente extinto, e o Ministério do Desenvolvimento Social transformado em Ministério da Cidadania com o esvaziamento de suas antigas secretarias voltadas ao combate à fome.

É importante destacar que, além criação do Programa de Transferência de Renda como o Bolsa Família, outros programas da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (2006) articulados com a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (2012) favoreceram também a saída do Brasil do Mapa da Fome.

Um estudo dos pesquisadores da UFRGS Catia Grisa e Sergio Schneider [1] chama de terceira geração de políticas públicas, a partir da década de 2000, aquelas pautadas na construção social de mercados para a segurança alimentar e nutricional e sustentabilidade ambiental. Aqui se inserem os programas de compras públicas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar – Pnae, aperfeiçoado nesse período, com abrangência maior e definição de 30% de compra de alimentos da agricultura familiar e comunidades tradicionais, assim como o inovador Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, e o Programa de Preço Mínimo para os Produtos da Sociobiodiversidade – PGPMBio.

Foram também instituídas modalidades de crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf para atender aos agricultores agroecológicos e às mulheres; editais públicos de Assistência Técnica de Extensão Rural com base em princípios agroecológicos, favorecendo os agricultores e as agricultoras familiares. Importante destacar ainda a iniciativa de um Programa de Organização Produtiva para as Mulheres.

A mobilização da Articulação Semiárido Brasileiro – ASA, que reúne centenas de organizações sociais nas comunidades, mostrou sua capacidade organizativa e de mobilização para a elaboração de um novo paradigma de convivência com o semiárido, com a visão sobre estoque de água, terra e semente. Esta proposta transformou-se em política pública através de dois programas: Um Milhão de Cisternas e Uma Terra e Duas Águas. Foram construídas 1,3 milhão de cisternas de água para consumo humano e 200 mil cisternas para produção.

Nas cidades, foram incentivados e apoiados os equipamentos de alimentação, como restaurantes populares, cozinhas comunitárias e experiências de agricultura urbana.

Esses programas foram extintos, a exemplo do Programa de Organização Produtiva das Mulheres, enquanto outros foram desfigurados em sua concepção inicial, como o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA. Outros ainda tiveram redução de benefícios, como o Programa Bolsa Família, que em dezembro de 2020 contava com uma “fila de espera” de mais de 2,1 milhões de famílias. No Nordeste, os Programas Um Milhão de Cisternas e Uma Terra e Duas Águas encontram-se praticamente paralisados, pois o número de construção dos equipamentos desabou no ano de 2020.

Durante a pandemia, a proposta do Projeto de Lei 735 com Medidas emergenciais de amparo aos agricultores familiares do Brasil para mitigar os impactos socioeconômicos da Covid-19 teve 14 artigos vetados pelo presidente, de um total de 16 na Lei 14.048, sancionada em 24 de agosto passado. Uma rejeição praticamente integral, mostrando o Executivo violando direitos e andando na contramão das urgências e emergências da agricultura familiar. As propostas, que incluíam auxílio emergencial, fomento para produção de alimentos, crédito, seguro agrícola, compra pública de alimentos, foram fruto da articulação dos movimentos sociais que construíram uma plataforma em diálogo com organizações, redes, articulações da sociedade civil e parlamentares comprometidos com a justiça social, direitos humanos e a soberania alimentar.

IHU On-Line – No início do atual governo, foi extinto o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea. O que essa medida representou e, nesse contexto de Brasil pandêmico, de que forma esse colegiado poderia contribuir para mitigar a fome?

Maria Emília Lisboa Pacheco – A imposição do silêncio à participação e controle social das políticas públicas com a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea afasta-nos da democracia.

Em sua curta história, de 2003 a 2018, o Consea ecoou as vozes da cidadania do campo, da floresta, das águas e da cidade. Com a composição de 2/3 de representantes da sociedade civil, mostrou o sentido da representação de uma sociedade pluriétnica. Como espaço de concertação intersetorial entre estruturas de governo e sociedade tornou público o caráter multidimensional da questão alimentar como política de Estado e o necessário investimento público em políticas e programas de vários ministérios para garantir o DHAA. Contribuiu ativamente para a aprovação da Lei 11.346 de setembro de 2006, que estabeleceu definições, princípios, diretrizes e objetivos da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

Entre seus legados, além dos programas mencionados acima, o Consea influenciou na elaboração do Guia Alimentar da População Brasileira, hoje reconhecido em muitos países pela inovação da classificação dos alimentos. Realizou mesas de controvérsias sobre temas de interesse da sociedade, como os impactos dos agrotóxicos, de Organismos Geneticamente Modificados – OGMs e a questão da Reforma Agrária, da demarcação dos territórios indígenas e quilombolas.

A elaboração de propostas de política de agricultura urbana e de abastecimento alimentar colocou na pauta o desafio de construir a interação entre o direito à cidade e a questão alimentar. O Consea também dedicou atenção sobre o papel de regulação do estado com relação à publicidade de alimentos para crianças, e rotulagem nutricional, que se relacionam com o controle da obesidade.

Após a extinção do Consea, permanecemos na resistência. Constituímos um coletivo de organizações da sociedade civil, movimentos sociais, redes e fóruns, que está ativo, realizando um processo de mobilização da Conferência Nacional Popular, por Direitos, Democracia, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Incidimos junto ao Congresso Nacional, elaboramos posicionamentos de denúncia, aprofundamos debates de vários temas em atividades virtuais e participamos em campanhas na defesa da retomada de programas como o PAA e pela execução do Pnae. No início da pandemia divulgamos um documento com denúncias e propostas: Garantir o direito à alimentação e combater a fome em tempos de coronavírus: a vida e a dignidade humana em primeiro lugar! E, recentemente, realizamos um Ato Manifesto: Enfrentar a fome com a força de nossas lutas .

IHU On-Line – Pensar políticas públicas para erradicação da fome passa especificamente pelo quê? Gostaria que a senhora destacasse e comentasse alguns princípios que devem ser levados em conta na concepção e desenvolvimento dessas políticas.

Maria Emília Lisboa Pacheco – O princípio basilar é reconhecer que a alimentação adequada é um direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana, como diz o art. 2º da Lei nº 11.346 de 2006, que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Sisan.

Soma-se a este o princípio da Soberania Alimentar, que não está explícito nas nossas normativas e que significa definir novos paradigmas: “direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e seu direito de decidir seu próprio sistema alimentício e produtivo. Isto coloca aqueles que produzem, distribuem e consomem alimentos no coração dos sistemas e políticas alimentares, acima das exigências dos mercados e das empresas”. Este princípio supõe também o reconhecimento e respeito aos direitos e o papel das mulheres na produção de alimentos, sua participação em todas as instâncias de tomada de decisões e manifestação contra todas as formas de violência contra as mulheres.

Reconheço também a importância de outros princípios definidos em nossa lei sobre o Sisan (art. 8º): universalidade e equidade no acesso à alimentação adequada sem qualquer espécie de discriminação; participação social na formulação, execução, monitoramento e controle das políticas e planos de Segurança Alimentar e Nutricional; transparência dos programas e ações e dos recursos públicos. Esses princípios têm sido sistematicamente negados.

E acrescento princípios na contracorrente dos sistemas alimentares dominantes: o princípio da precaução, proposto na Conferência Rio 92; princípio da consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais, como prevê a Convenção 169 da OIT, e o respeito e proteção aos bens comuns.

IHU On-Line – Na experiência da pandemia, vimos por todo o Brasil organizações ligadas à agricultura familiar promovendo ações de doações de alimentos a quem precisa. O que esse cenário revela?

Maria Emília Lisboa Pacheco – A mobilização das organizações e movimentos sociais atuando como redes de solidariedade e resistência, expressão da cidadania ativa, tem tido um papel extremamente importante para levar o alimento saudável a muitos lugares deste país.

Contrastam com a filantropia empresarial, porque essas redes têm relação direta com processos políticos mais profundos ao trazer sinais de luta pela soberania alimentar, pela democracia e pela participação social.

São ações de resistência e solidariedade. Este cenário revela a pujança das organizações sociais. Os alimentos in natura da agricultura familiar e camponesa estão chegando aos bairros populares, e também sob a forma de preparações culinárias em marmitas e cafés matinais para populações em situação de rua. Os gestos de solidariedade e de cooperação financeira, no plano comunitário, se expressam nas “vaquinhas virtuais”, em doações em rede.

A iniciativa Ação Coletiva Comida de Verdade: aprendizagem em tempos de pandemia, de abrangência nacional conduzida por uma articulação de treze organizações comprometidas com a promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional, dentre elas a Articulação Nacional de Agroecologia e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, realizou um Mapeamento de experiências de abastecimento alimentar protagonizadas por organizações da sociedade civil.

O livro Pandemia e Território, recentemente lançado pela Nova Cartografia Social da Amazônia, traz registros etnográficos e iconográficos sobre povos indígenas, cujas aldeias estão localizadas em perímetros urbanos e em seus próprios territórios identificados e demarcados, quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, comunidades de fundos e fechos de pasto, comunidades atingidas pela exploração mineral e grupos de pequenos agricultores e extrativistas. Mostra-nos que há uma economia não contabilizada da pandemia, que leva em conta o funcionamento de formas de solidariedade, de ajuda mútua e de autogestão na circulação de produtos agrícolas e extrativos, que asseguram uma maior autonomia das comunidades e contribuem para relativizar o peso das tutelas que submetem os povos e comunidades tradicionais aos mecanismos de controle ancorados em fundamentos colonialistas.

IHU On-Line – Defensora da agroecologia, a senhora enfatiza que esse é um modo de produção que tem uma resposta ainda atual para o problema da fome. Que resposta é essa e como ela consegue ir além do ato de levar comida a quem tem fome?

Maria Emília Lisboa Pacheco – A concepção da agroecologia como ciência, prática e movimento social compõe uma trajetória que articula, amplia e faz interagir campos do conhecimento, dentre eles a saúde e nutrição e soberania alimentar, e constrói alianças com segmentos da sociedade. Combina dimensões tecnológicas, ecológicas, sociais e políticas.

É recorrente ouvir que os sistemas alimentares dominantes e a agricultura industrial fornecem grandes volumes de alimentos nos mercados globais. Mas é fundamental entender os problemas provocados por esses sistemas. Os monocultivos intensivos no uso de insumos químicos e confinamentos de animais em escala industrial vêm à tona neste momento da pandemia. Os animais amontoados, nos quais se aplicam os pesticidas, antivirais e, mais ainda, antibióticos que aceleram a sua engorda, têm como consequência a debilitação do seu sistema imunológico, convertendo-os em criadouros de muitos dos vírus e bactérias que, depois, chegam a nós. São as chamadas zoonoses como a Covid-19.

Não é demais repetir que a degradação do solo, a contaminação da água, perda da biodiversidade, uniformização das paisagens, padronização alimentar, persistindo a fome e deficiências nutricionais e o aumento da obesidade e doenças ligadas à alimentação, assim como a pressão e expropriação de camponeses e comunidades tradicionais, estão entre as consequências da agricultura industrial. Na última década vários documentos internacionais chamaram a atenção para a encruzilhada da agricultura.

A agroecologia tem uma perspectiva emancipatória. E cada vez mais se situa no campo do debate e das práticas com o objetivo da transformação dos sistemas alimentares. Combinada com a perspectiva da soberania alimentar apresenta-se como alternativa hoje e para o futuro. Na sua dimensão social, defende as relações de igualdade, reconhecendo que as mulheres historicamente são as guardiãs da biodiversidade e dos bens comuns. Posiciona-se contra o racismo e reconhece que uma sociedade pluriétnica com diferentes formas de apropriação e uso da terra e dos bens da natureza é um componente significativo do exercício da democracia e do enfrentamento dos grandes desafios na relação entre sociedade e natureza.

Não é uma questão de escala e sim de perspectivas distintas que encarnam modos de vida, defesa da qualidade de alimentos, práticas produtivas que se relacionam com a natureza. No sistema dominante da agricultura, a natureza é vista para ser subjugada e dominada, enquanto na agroecologia está em jogo a busca da adaptação e harmonia com a natureza, considerando os fluxos de energia e de sucessão natural. Os princípios ecológicos e das relações sociais de igualdade regem a produção. É fundamental uma agricultura baseada na diversificação da produção e na variedade das paisagens agrícolas, estimulando as interações entre as espécies, ou seja, sistemas agroecológicos diversificados e adaptados aos ecossistemas de nossos biomas, respeitando os modos de vida e a relação com a natureza dos nossos povos que historicamente conservam a biodiversidade e nos oferecem uma dieta alimentar diversa que melhora a nossa saúde.

O relator da ONU sobre o direito à alimentação, Olivier de Schutter, na década de 2010, apresentou um estudo sobre o aumento da produtividade com a diversidade. A agroecologia contribui para nutrição, reduz a pobreza rural, tem formas de adaptação à mudança climática e dialoga com saberes tradicionais. Em tempos de debates acirrados sobre as mudanças climáticas é preciso aprofundar as análises a partir das experiências que nos mostram que os sistemas agroecológicos contribuem para esfriar o planeta.

IHU On-Line – A fome no Brasil é um problema histórico? Por quê? Como podemos compreender a construção desse histórico problema da fome?

Maria Emília Lisboa Pacheco – Josué de Castro em seu célebre livro Geografia da Fome – O Dilema Brasileiro: Pão ou Aço, em 1946, disse que o silenciamento sobre a fome devia-se a interesses econômicos e políticos e a preconceitos.

A entrada da classe trabalhadora no cenário político, reivindicando melhores condições de vida, e a contribuição pioneira e corajosa de Josué de Castro falando sobre o flagelo da fome, trouxeram à tona este tema proibido como uma questão social. O subtítulo do livro – pão ou aço – indicava a preocupação com os rumos do desenvolvimento econômico, desde os anos 1930, ao mesmo tempo que argumentava ser necessário entender historicamente o aprofundamento da miséria e da pobreza, frutos da agricultura baseada no latifúndio e nos monocultivos. Josué de Castro foi um defensor da Reforma Agrária.

Há 170 anos, o Brasil tomou uma medida que foi determinante para a histórica concentração fundiária. O imperador dom Pedro II assinou a Lei nº 601 em 18 de setembro de 1850, que ficou conhecida como Lei de Terras, de acesso à terra pela compra. No mesmo ano foi editada a Lei Eusébio de Queirós sobre o fim do tráfico negreiro. As duas leis se articulavam na imposição de barreira ao acesso à terra pelos ex-escravos para favorecer a absorção de sua mão de obra no trabalho nos latifúndios. O país oficialmente optou por ter a zona rural dividida em latifúndios, e não em pequenas propriedades.

A sociedade e o Estado têm uma dívida histórica com camponeses pobres, indígenas, ex-escravos. A concentração fundiária é um problema social, político e econômico que passa por toda a nossa história desde a Colônia. Não realizamos uma verdadeira Reforma Agrária no país.

Atualmente assistimos a um processo de reestruturação do mercado de terras, como diz a assessora da FASE, Julianna Malerba. São milhares de hectares de terra pública arrecadados pelo mercado. A Lei 13.465/17 evidencia isso. Ela altera os regimes jurídicos relacionados à regularização fundiária rural e urbana, à regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal e às regras de alienação dos imóveis da União. A lei cria mecanismos que facilitam os critérios de titulação e a antecipação da emancipação dos assentamentos para que os lotes estejam disponíveis para serem transacionados no mercado de terras. Também facilita a regularização fundiária de terras públicas e devolutas, possibilitando, inclusive, a legalização da grilagem, uma vez que amplia para 2.500 hectares o limite da área de terra devoluta passível de ser regularizada na Amazônia pelo Programa Terra Legal. Há também flexibilização das legislações ambientais e sobre direitos territoriais, como a proposta de mineração em terra indígena, em debate no Congresso Nacional.

E mais recentemente, em fevereiro, o governo criou o programa “Adote um Parque” na Amazônia, que encaminha para o fim as políticas públicas de conservação, recuperação e melhoria das Unidades de Conservação – UCs federais, orquestrando um processo de privatização.

São tempos sem limites, que requerem a mobilização da sociedade para barrar esses processos que aprofundam a situação de insegurança alimentar e a fome.

Lembremos também que vivemos os dramáticos períodos de seca no semiárido do Nordeste. A seca de 1915, descrita de forma emocionante por Rachel de Queiroz no romance histórico O Quinze, fala do primeiro campo de concentração, chamado pelos retirantes de curral do governo, porque se sentiam tratados como o gado que haviam perdido na seca, na região do Alagadiço, atual São Gerardo, no Ceará.

A articulação da proposta de Convivência com o Semiárido, conforme apresentamos acima, rompeu com a prática da indústria da seca vigente durante muito tempo na história sob a tutela das elites locais. Mas a interrupção dos programas que vinham sendo desenvolvidos representa nova ameaça às populações.

IHU On-Line – Que cenário a senhora vê para o Brasil num curto e médio prazos? Que caminhos podemos construir para mais uma vez nos distanciarmos do Mapa da Fome no mundo?

Maria Emília Lisboa Pacheco – A pandemia da Covid-19 nos obriga a reavaliar nosso relacionamento com a natureza da qual somos parte. Para enfrentar as crises existenciais da humanidade, será necessário superar essa separação e ao mesmo tempo contestar as propostas de financeirização e mercantilização crescente da natureza com o cercamento dos bens comuns e a despossessão dos povos indígenas, comunidades tradicionais e camponesas.

Precisamos reconstruir as políticas que foram destruídas e criar novas políticas, a exemplo, de uma Política de Abastecimento Alimentar. Precisamos dialogar com a sociedade sobre a relação entre a alimentação saudável, baseada na diversidade de nossas culturas alimentares, e a promoção da saúde que supõe a defesa da Reforma Agrária e dos direitos territoriais como uma exigência de hoje para o futuro e não como uma questão do passado.

O rápido declínio da biodiversidade e a ocorrência das mudanças climáticas estão a requerer a proteção efetiva dos sistemas de gestão e produção praticados pelos povos indígenas, comunidades tradicionais e camponesas, incluindo seus direitos e sistemas de posse. Significa estabelecer a conexão entre esferas de defesa dos direitos humanos e quem lida com questões ambientais, de biodiversidade e clima, para estabelecer políticas e instituições intersetoriais capazes de enfrentar os desafios atuais.

Precisamos de programas de alimentação saudável que estimulem os circuitos curtos de mercado, com feiras, pontos de venda nos bairros populares e outras iniciativas que favoreçam com preços justos, o apoio à agricultura urbana, assim como equipamentos de alimentação popular, relacionando o direito humano à alimentação com o direito à cidade.

A Articulação Nacional de Agroecologia identificou, em levantamento no ano passado, cerca de 700 iniciativas de políticas públicas municipais em várias regiões do país que articulam agroecologia e segurança alimentar e nutricional. Um potencial importante para dinamizar os intercâmbios, debates e propostas junto ao poder local.

Em meio a tanta adversidade, lembremos da aprovação recentemente, no plano internacional, de instrumentos de direitos humanos, como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, das Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais. Mesmo com a abstenção do Brasil, este documento oferece uma oportunidade para reinterpretar os principais instrumentos da legislação ambiental e climática e para avançar na proteção das comunidades locais como guardiãs dos ecossistemas.

Em tempos de debate da Reforma Tributária, é preciso considerar também que os cofres públicos deixam de arrecadar bilhões por ano com a isenção de impostos de venenos agrícolas. O Tribunal de Contas da União – TCU estimou, no período de 2011 a 2016, apenas com a renúncia de PIS/Cofins, relativa à alíquota zero para agrotóxicos, um total de R$ 6.850 bilhões de reais, segundo a organização Terra de Direitos, que participa como Amicus Curiae da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.553, que questiona isenções tributárias aos agrotóxicos.

Outro exemplo que podemos mencionar sobre os impactos negativos nos cofres públicos são os incentivos da ordem de 3,8 bilhões anuais para Indústria de Bebidas Açucaradas. Já há evidências suficientes sobre a relação entre o consumo destas bebidas e a epidemia da obesidade e das doenças crônicas não transmissíveis, como câncer, diabetes e hipertensão, responsáveis por 74% das mortes no país. A campanha Bebida Açucarada – se faz mal à saúde tem que ter mais imposto – da Aliança pela Alimentação Saudável – é um alerta e um convite para o debate sobre justiça social e fiscal.

O sistema tributário brasileiro reforça desigualdades, uma vez que os mais pobres pagam muito mais impostos proporcionalmente que pessoas com rendas muito altas. Além dos desequilíbrios do sistema tributário, existe uma grande quantidade de impostos que simplesmente não são pagos. Uma reforma tributária precisa exercer a função redistributiva para reduzir os níveis de pobreza.

Nota:
[1] Catia Grisa e Sergio Schneider, “Três gerações de políticas públicas para a agricultura familiar e formas de interação entre sociedade e estado no Brasil” in Rev. Econ. Sociol. Rural vol.52 supl.1 Brasília 2014. (Nota da entrevistada)

Maria Emília L Pacheco (Foto: Arquivo pessoal)

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