Cooperados parceiros de empresa invadiram a entidade, em Santarém (PA), exigindo retomada de projeto de manejo da reserva extrativista; área é vizinha do assentamento onde atuam madeireiras investigadas pela PF e protegidas do ministro Ricardo Salles
Por Julia Dolce, em De Olho Nos Ruralistas
Na segunda-feira (03),o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) em Santarém (PA) foi invadido por representantes de cooperativas da Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns que exigiam a volta dos planos de manejo de madeira na área. Para o sindicato, esses agricultores estão sofrendo pressão de madeireiras interessadas em entrar na Resex por meio das cooperativas. O Ministério Público Federal (MPF) solicitou abertura de inquérito pela Polícia Federal para investigar a supeita de participação de madeireiros na invasão.
Com 680 mil hectares de floresta amazônica, a Resex é formada por 76 comunidades. Entre elas estão quarenta aldeias indígenas, de pelo menos doze etnias. Aproximadamente 8 mil indígenas vivem no território. A continuação do desenvolvimento do plano de manejo comunitário de extração de madeira havia sido autorizada pela Justiça Federal em 26 de abril, mesmo sem ter havido a consulta prévia das comunidades. O STTR e o Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) entraram na Justiça contra a extração.
Um dia após a invasão, sindicato e conselho se reuniram com representantes de três cooperativas que participaram do movimento: a Cooperativa Mista Agroextrativista do rio Inambú (Cooprunã), a Cooperativa Mista Agroextrativista do Rio Maró (Coopermaró) e a Cooperativa Mista Agroextrativista Das Comunidades e Aldeias Da Resex Tapajos Arapiuns (Cooperrios).
A reunião foi inconclusiva, porque os representantes da Cooprunã, que já atua com a extração de madeira e é formada por moradores das comunidades de Nova Canaã e Porto Rico, se retiraram antes do fim do encontro se recusando a dialogar se o sindicato não retirar a queixa na Justiça.
O presidente do STTR, Manoel Edivaldo Santos Matos, aponta que há interesse de empresas grandes, uma vez que a Resex é rodeada pela atuação de madeireiras. Entre as suspeitas está a Juá Indústria e Comércio de Madeiras Eireli, parceria da Cooprunã.
Durante a invasão, o presidente da Cooprunã, Valdemar da Silva Fernandes, defendeu que existiu, sim, consulta dos comunitários da Resex: “Na verdade houve discussão desde o começo, houve debate, houve consulta”. Fernandes disse que o conselho deliberativo da Resex ouviu representantes de todas as comunidades e alegou que a narrativa contrária alimenta um interesse do STTR em “tomar a área para dominar”.
LÍDER INDÍGENA DIZ QUE PROJETO QUER LEGITIMAR EXPLORAÇÃO POR EMPRESAS
A cacica Raquel Tupinambá, da Aldeia Surucuá, localizada dentro da Resex, diz que o manejo madeireiro comunitário é uma forma de legitimar o manejo madeireiro empresarial: “As comunidades estão incluídas, mas como força de trabalho, porque o maquinário é da empresa, o inventário é feito pela empresa. E essas empresas são ligadas a empresas maiores que já fazem a exploração há décadas”.
Ela conta que a exploração madeireira na região já acontecia desde a década de 70, sempre com as mesmas empresas e concessionárias interessadas. A Resex foi demarcada em 1998, após mobilizações das comunidades para retirar do território as empresas madeireiras Amazonex e Santa Isabel. Raquel explica que, desde então, a retirada de madeira era feita de maneira reduzida, somente para os comunitários.
“As comunidades começaram a explorar também porque era uma forma de ganhar dinheiro, mas veio uma pressão do ICMBio para que essa exploração se legalizasse”, explica. Com os planos de manejo, explica Raquel, a exploração da madeira será muito maior e voltada para empresas.
Ela acrescenta que com o manejo, a madeira só poderá sair da Resex em formato de tora. “Então se tiver uma ponte caindo na comunidade não poderemos usar essa madeira”. Para a cacica, doutoranda em Antropologia Social na Universidade de Brasília (UnB), o processo de criar o plano de manejo na Resex faz parte de um discurso colonial que não ouve as comunidades e considera que os indígenas são “pobres” e “precisam de desenvolvimento”. “Os parentes acabam comprando essa ideia em vez de entender que nós vivemos, tradicionalmente, de outra forma”.
Raquel conversou com a reportagem na sexta-feira, quatro dias após a decisão da Justiça Federal, durante o ato de encerramento do Acampamento Terra Livre (ATL) em Santarém. A manifestação reuniu representantes indígenas para denunciar, principalmente, as ameaças trazidas pelo manejo madeireiro na Resex. No mesmo dia, o desembargador federal Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1), suspendeu a decisão.
A suspensão acolheu a argumentação do STTR e do Cita, que apontavam a necessidade de escutar as comunidades, com base na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. A convenção prevê a obrigatoriedade de consulta prévia, livre e informada aos povos tradicionais para qualquer atividade em seus territórios.
Não foi a primeira vez que as organizações entraram na justiça contra o plano de manejo: uma liminar concedida em novembro de 2020 já respondia às demandas do STTR e do Cita, interrompendo a realização de uma série de reuniões procedimentais sobre os planos de manejo, organizadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
MADEIREIRA PARCEIRA DE COOPERATIVA TEM VÁRIAS MULTAS AMBIENTAIS
Entre as suspeitas de aliciar os moradores da Resex está a principal empresa transportadora da cooperativa Cooprunã, a Juá Indústria e Comércio de Madeiras Eireli, instalada na comunidade de Tabocoal, no Planalto Santareno. O sindicato acredita que ela esteja envolvida nas pressões.
Em entrevista concedida durante a invasão, o presidente da Cooprunã indicou a empresa como principal compradora da madeira extraída pelos comunitários. “Ela paga essa madeira e o valor é dividido entre vários fundos”, afirmou Fernandes. “Tem um que é o fundo de apoio comunitário, que repassa 15% para todas as comunidades da Resex”.
Somente nos últimos cinco anos a madeireira Juá colecionou cinco multas ambientais no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que somam R$ 150 mil. O dono da empresa, Clebio de Andrade Guedes, também é proprietário da madeireira Sabugy Madeiras Ltda e das transportadoras de madeira Tapajós Transportes e Logística Ltda e Paxiuba Indústria, Comércio e Exportações de Madeira Ltda.
A madeireira Sabugy soma R$ 1,483 milhão em multas no Ibama, e já teve sua sede em Santarém embargada pelo órgão em 2016, por infração da flora.
A Cooprunã teve uma carga de toras apreendida pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) em julho do ano passado, segundo a cooperativa, por um erro operacional de preenchimento referente ao transporte da madeira. “Eles não querem dialogar com a gente, de jeito nenhum, e isso aumenta nossa suspeita de que há madeireiras por trás”, afirmou Matos.
ASSENTAMENTO VIZINHO FOI DOMINADO POR MADEIREIRAS
O presidente do STTR afirma existir um crescente movimento de cooptação de líderes das comunidades por parte de empresas na região do Baixo Amazonas. “O cenário é uma espécie de consórcio de madeireiras, mineradoras, do agronegócio”, explica. “Eles usam da bondade e humildade das comunidades para tirar toda a riqueza e deixar o povo sem nada”.
Matos elencou casos de territórios próximos da Resex que, ao desenvolverem planos de manejo, acabaram permitindo a entrada de madeireiras. É o caso, em gleba vizinha da Resex, do Projeto de Assentamento Agroextrativista (Paex) Aruã. O presidente do STTR afirma que, em março, recebeu representantes da Associação que organiza a exploração madeireira no Paex. “O que aconteceu por lá é que as madeireiras já retiraram praticamente toda a madeira, e o povo não sabe nem como sobreviver”, revela.
Em 2015, após um movimento conjunto entre o STTR e os assentados, as famílias conseguiram o contrato de concessão de direito real de uso da terra no Paex Aruã, e criaram a Associação Intercomunitária das Comunidades de São Francisco, São Raimundo, São Luís e Novo Paraíso. Nos últimos anos, a associação, segundo Matos, “mudou de rumo”, e negociou contratos com as madeireiras Mundo Verde, LN Guerra e Rondobel Indústria e Comércio de Madeiras, uma das maiores do Pará.
“Houve conflito porque uma parte das comunidades não apoiou esse movimento e ficou de fora”, explica Matos. “Depois de um tempo a outra parte também entrou na justiça contra as empresas porque estavam em desacordo com o plano de utilização da área”.
A reunião entre o STTR e representantes da associação do PAEX Aruã, em março, teve como pauta central a maior apreensão de madeira da história do país, a Operação Handroanthus da Polícia Federal (PF). A operação apreendeu o equivalente a 43 mil toras de madeira. A associação pediu que o sindicato pressionasse a PF pela liberação de parte das toras apreendidas na operação, argumentando que teriam sido extraídas legalmente dentro do Paex. O sindicato se recusou. A reportagem entrou em contato com o presidente da associação, mas não obteve resposta.
SALLES VISITOU MADEIREIRAS ACUSADAS DE RETIRADA ILEGAL
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, decidiu intervir pessoalmente em favor das madeireiras de Santarém e região. Em fevereiro, foi deflagrada a operação da Polícia Federal Handroanthus GLO pela Polícia Federal. Salles se posicionou contrário à operação e se reuniu com madeireiros em Santarém entre o fim de março e o início de abril, criticando publicamente o então superintendente da PF, Alexandre Saraiva, responsável pela operação.
Saraiva foi exonerado na semana seguinte, após entregar uma notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal (STF) apontando que Salles dificultou a fiscalização ambiental, e atuou para obstruir a operação da PF.
Em reportagens publicadas na semana passada, a Agência Pública e a Revista Istoé expuseram que a PF e o Ministério Público Federal (MPF) investigam a ligação entre Salles e integrantes da família de Walter Dacroce. As investigações apontam que Dacroce, considerado um grileiro profissional, serve como uma espécie de agente que localiza terras devolutas e viabiliza a grilagem por meio de parentes, abrindo caminhos para a exploração madeireira de empresas parceiras da família, como a madeireira Rondobel.
A Rondobel, segundo as reportagens, é responsável pela extração da maior parte da madeira apreendida pela PF na Handroanthus. A empresa possui vinte autos de infração registrados no Ibama, de 2001 a 2018. De acordo com as multas, os valores das multas chegam a R$ 8,37 milhões. Em nota pública divulgada em 19 de abril, a Rondobel afirma que “atua rigorosamente dentro da lei”.
Em março de 2020, o De Olho Nos Ruralistas, em reportagem publicada no The Intercept, revelou que os diretores da Rondobel integram a Associação das Indústrias Exportadoras de Madeiras do Pará (Aimex), que fez lobby para acabar com a necessidade da autorização de exportação de cargas de madeiras retiradas das florestas brasileiras pelo Ibama. A madeireira Juá, ligada à Cooprunã, também integra a Aimex.
O Cita aponta indícios de que a madeira apreendida na Handroanthus tem origem na própria Resex TapajósArapiuns, e que uma extração desse porte só é possível por meio de um esquema para esquentar madeira, ou seja, fraudes nos documentos obrigatórios para transporte de madeira. A coordenadora da organização, a líder indígena Auricélia Arapiun, pede que a PF também investigue a atuação e pressão das madeireiras na Resex.
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Foto Principal (Julia Dolce): manifestação no Acampamento Terra Livre alertou para ameaças em Resex