O bilionário esquema secreto de compra de apoio parlamentar do governo Bolsonaro

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

O PLANILHÃO DO GOVERNO

O governo Bolsonaro criou um esquema secreto que usa recursos públicos para aumentar e cimentar sua base de apoio no Congresso Nacional. Segundo o repórter Breno Pires, do Estadão, pelo menos R$ 3 bilhões foram direcionados a 285 parlamentares que passaram a escolher redutos eleitorais como o destino da aplicação desse dinheiro, em troca do apoio à eleição de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para a Câmara e o Senado. Lira segura mais de cem pedidos de impeachment contra o presidente. Pacheco segurou o quanto pôde a abertura da CPI da Pandemia.

A descoberta do jornal está bem documentada: foram analisados 101 ofícios enviados por deputados e senadores ao Ministério do Desenvolvimento Regional e órgãos vinculados à pasta. Os documentos mostram que eles indicavam onde usar os recursos – caracterizados por alguns como “cotas” pessoais. 

Tudo isso aconteceu violando as regras orçamentárias. Anualmente, cada um dos 513 deputados e 81 senadores têm direito de indicar R$ 16 milhões em emendas parlamentares. Metade desse dinheiro precisa ir para a Saúde, e os R$ 8 milhões restantes podem ser direcionados livremente. No “planilhão” do governo, os aliados ganharam muito, mas muito mais do que esse limite anual. 

O senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), por exemplo, determinou a aplicação de R$ 277 milhões de verbas públicas do Ministério do Desenvolvimento Regional. “Ele precisaria de 34 anos no Senado para conseguir indicar esse montante por meio da tradicional emenda parlamentar individual”, compara Breno Pires. Já o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), manejou R$ 114 milhões.

Na prática, funciona assim: primeiro são definidos os valores que cada parlamentar aliado tem direito a enviar a suas bases. Depois, o congressista pode optar se indica o repasse por meio de um convênio do Ministério do Desenvolvimento Regional ou se direciona o dinheiro para órgãos vinculados à pasta. O caminho preferido tem sido o repasse à Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf) – que, não por acaso, é controlada pelo Centrão

“No caso da Codevasf, os repasses do governo federal podem chegar na ponta mais rapidamente, porque a estatal pode executar diretamente serviços como obras e compra de máquinas, com regras menos restritivas para licitação, por exemplo, do que aquelas previstas para um ministério”, explica Pires. E continua: “Como a estatal é controlada por apadrinhados de lideranças políticas, o controle do uso do dinheiro pelos parlamentares é mantido até a execução da obra ou da compra. Assim, a definição de quais serão os beneficiados finais caberá aos próprios parlamentares, que exercem influência nas superintendências regionais da empresa”.

Como era de se esperar, o esquema subverte completamente a racionalidade do gasto público. Libera dinheiro para novas obras, deixando outras que estão em andamento a ver navios. Os recursos vão para cidades governadas por parentes dos congressistas, ou nas quais eles têm interesses eleitorais ao invés de serem distribuídos segundo critérios econômicos e sociais. E as escolhas dos parlamentares também são bizarras: boa parte do orçamento secreto foi destinado à compra de tratores e equipamentos agrícolas por preços até 259% acima dos valores de referência fixados pelo governo. Nesse sentido, o esquema foi batizado de “tratoraço”.

“Na prática, a origem do novo esquema está no discurso de Bolsonaro de não distribuir cargos, sob o argumento de não lotear o primeiro escalão do governo. De um jeito ou de outro, a moeda de troca se deu por meio da transferência do controle de bilhões de reais do orçamento ao Congresso. Tudo a portas fechadas, longe do olhar dos eleitores”, resume Breno Pires. Por tudo isso, e esquema está sendo comparado com o mensalão e com o escândalo dos Anões do Orçamento.

PARA ISSO, SERVIU

O ex-chanceler Ernesto Araújo pode ter atrapalhado as negociações entre Brasil e China por insumos e vacinas, mas  mobilizou a diplomacia brasileira para conseguir cloroquina da Índia, mostra a Folha. Em telegramas obtidos pelo jornal, ele pede “sensibilizar o governo indiano para a urgência da liberação da exportação”. Foi em abril de 2020, quando o governo indiano limitara a exportação do medicamento. Na época, a OMS já tinha interrompido os ensaios clínicos com a cloroquina, e associações médicas tinham alertado para a ineficácia e os possíveis efeitos colaterais.

E, em meio à CPI da pandemia e depois de o Ministério da Saúde retirar do ar o documento em que recomenda o uso de hidroxicloroquina para todos os casos de covid-19, o presidente Jair Bolsonaro decidiu dar mais uma força para o falso tratamento. Ele disse que o trabalho da comissão está “um vexame” e prometeu um vídeo em que seus ministros farão apologia ao uso da droga: “Ontem [sexta-feira] retornando de Rondônia, no avião tinha alguns ministros, a gente vai fazer um vídeo na semana, os 22 ministros, todos aqueles que tomaram hidroxicloroquina vão falar ‘eu tomei’. É a alternativa no momento”. No Facebook, ele pediu aos críticos do remédio que “não encham o saco“. 

DE VOLTA ÀS RUAS

Jair Bolsonaro voltou a mobilizar sua base de apoiadores para ocuparem as ruas. Na transmissão ao vivo da última quinta-feira, ele disse que aguardava ao menos mil motos para um “passeio” por Brasília. A manifestação aconteceu no domingo, e reuniu um número próximo ao esperado pelo presidente. Tendo como parada final o Palácio da Alvorada, ele cumprimentou apoiadores sem máscara, causando aglomeração. E prometeu repetir a dose em outras cidades: “Esse passeio aqui hoje, com toda a certeza havendo convite, iremos para São Paulo, Rio de Janeiro e BH”.

Além disso, o presidente chamou seus militantes para uma manifestação em seu favor no próximo sábado. “Dia 15, pessoal, tá todo mundo convocado. (…) Vou lá pro meio da rua, com o pessoal do campo, o pessoal do agronegócio, para a tomada de Brasília.”

Pois é… o que quer que signifique a “tomada de Brasília” ela acontecerá com o apoio de um grupo de sindicatos rurais ligados à Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), como a Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja).

PELO IMPEACHMENT

Outra Saúde se uniu a outros veículos de jornalismo independente, como O Joio e O Trigo e Congresso em Foco, e resolveu se posicionar pelo impeachment de Jair Bolsonaro. Em editorial conjunto, defendemos a necessidade de investigação sobre as várias e graves acusações que pesam sobre o presidente que usa o cargo mais importante da República contra a vida humana. 

“Bolsonaro é a expressão brasileira de um tipo de populismo autoritário, mas principalmente de um grupo de ultradireita que se dedica à dilapidação das instituições mais caras à democracia. Os bolsonaristas têm como alvos permanentes o Legislativo, o Judiciário, o jornalismo, a federação, a ciência, as universidades, os sindicatos, as organizações promotoras de direitos e a independência da Polícia Federal e de outros órgãos coercitivos. Empenhados em promover a desinformação e o caos, acusam de comunistas, corruptos ou golpistas todos os que ousam criticá-los, algo que não raro se torna pretexto para odiosas perseguições, ataques e tentativas de criminalização. Na verdade, é o bolsonarismo que golpeia de maneira incessante a Constituição, incitando a quebra da ordem democrática”.

O DOBRO

O Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde (IHME) da Escola de Medicina da Universidade de Washington divulgou na semana passada novas estimativas sobre a subnotificação da covid-19 no mundo, com base no excesso de mortes. De acordo com elas, pode haver hoje 6,9 milhões de óbitos, ou mais que o dobro dos 3,2 milhões oficialmente relatadas

No Brasil, em vez de 422 mil mortes, haveria cerca de 600 mil. Mas nossa subnotificação não está entre as maiores do mundo. Aqui, a razão entre as mortes estimadas e as registradas é de 1,4; no Egito, é de nada menos que 13 (haveria lá 170 mil mortes, em vez de 13 mil); no Japão, 10,8 (seriam 108 mil mortes, e não 10 mil); na Rússia, é de 5,4 (593 mil mortes, e não 109 mil); no México, 2,8 (seriam 617 mil mortes, em vez de 217 mil); e, na Índia, 2,9 (654 mil mortes, e não as 221 mil  relatadas no momento do estudo). Segundo as estimativas, o Brasil não seria o segundo país com mais mortes por covid-19, e sim o quarto. Passariam a nossa frente o México e a Índia. 

MUITO MAIS QUE O DOBRO

Neste último país, aliás, o colapso parece longe do fim. Os óbitos diários já estão na casa dos quatro mil, mas a subnotificação pode ter crescido ainda mais.  Ashish Jha, especialista em políticas de saúde pública na Universidade Brown, acredita que o número real esteja hoje perto de 25 mil, com base na sobrecarga dos crematórios, que estão trabalhando 24 horas por dia, sete dias por semana e ainda há escassez de lenha para abastecê-los. Ele compara a situação atual com a de 2019, quando havia em média 27 mil mortes por dia no país. “Os crematórios lidam com esse nível de mortes todos os dias. Quatro mil mortes adicionais não os derrubariam. Mas os crematórios estão relatando um aumento de duas a quatro vezes na demanda normal”, diz ele. Estariam morrendo entre 55 mil e 80 mil pessoas por dia, e ele assume que metade disso pode ser relacionado a covid-19. 

Para completar, os médicos indianos têm relatado um número crescente de mucormicose, uma infecção fúngica rara, entre pacientes que tiveram covid-19. A doença afeta os seios da face, o cérebro e os pulmões e tem uma taxa de mortalidade geral alta, de 50%. Mesmo pacientes que sobrevivem podem precisar ter seus olhos removidos. A matéria da BBC explica que o problema pode ser desencadeado pelo uso de esteroides, tratamento usado para salvar a vida de pacientes com covid-19 grave. 

UMA DAS DUAS

A OMS aprovou na sexta-feira o uso emergencial da vacina da Sinopharm. Os dados entregues mostram uma eficácia global de 79% na proteção de infecções sintomáticas, mas não há muitas informações sobre pessoas com mais de 60 anos. O aval é um pré-requisito para o imunizante ser distribuído aos países atendidos pela Covax Facility, e o laboratório deve se tornar um fornecedor importante. Ainda não foi selado nenhum acordo, e não se sabe quais serão os termos da negociação. 

A autorização para a CoronaVac estava prevista para acontecer no mesmo dia, mas, segundo a OMS, surgiram dúvidas (não se sabe quais) e a entidade pediu mais dados ao laboratório Sinovac.

O QUE ACONTECEU?

As ilhas Seychelles, país que tem segundo maior percentual de pessoas totalmente vacinadas do mundo, está enfrentando um novo surto. Mais de 60% da população já tomou as duas doses de vacina, uma taxa maior que a observada em Israel (58%) e quase o dobro da dos Estados Unidos (33%). Segundo a plataforma Our World in Data, a média móvel de novos casos chegou a 150 por dia na semana passada, o que é muito para a população de menos de 100 mil habitantes. A taxa é de 1,5 mil casos por milhão – cinco vezes maior que a do Brasil ou dez vezes maior que o dos Estados Unidos no mesmo período. O número absoluto de mortes é mínimo, mas, em relação ao total da população, foram cerca de três óbitos diários para cada milhão de habitantes, ou 50% a mais que nos EUA. 

O que pode ter acontecido? A frustrante realidade é que ainda não sabemos. O aumento das curvas levantou dúvidas sobre a eficácia do imunizante da Sinopharm, o mais usado por lá (os dados dos estudos, como dissemos acima, atestam uma taxa de quase 80%). A alta também pode estar relacionada ao retorno do turismo às ilhas: após quase um ano de bloqueio, houve reabertura para viajantes de fora no dia 25 de março. Mas não há nenhuma explicação oficial sobre o problema. A OMS está trabalhando com as autoridades locais para mapear como o quadro mudou, identificando padrões e as características dos infectados. Dados do governo divulgados na semana passada mostram que, de mil casos ativos, um terço foi em pessoas que já estavam totalmente vacinadas.

Enquanto isso, o foco é achatar as curvas de novo. No dia 3 de maio, quando se registrou um recorde de 500 novas internações, foram implementadas novas medidas de bloqueio, como fechamento das escolas, restrição de horários de bares e proibição de eventos sociais e encontros com mais de quatro pessoas. 

BALANÇO DA CPI E O QUE ESPERAR

O podcast Medicina em Debate convidou nossa editora Maíra Mathias para fazer um apanhado geral da CPI da Pandemia até aqui, e comentar o que podemos esperar dos próximos depoimentos. O episódio, conduzido por Aristóteles Cardona, foi ao ar hoje, está disponível em todas as plataformas e também pode ser acessado no site do podcast.  

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