Violência sim, força policial não: o massacre do Jacarezinho e a (des)obediência do braço armado do Estado. Por Francélio Ângelo de Oliveira

Especial para Combate Racismo Ambiental

É sabido que as operações policiais nas periferias das grandes cidades brasileiras são realizadas com uso de força e aparato bélico desproporcional. Essas medidas vêm dizimando a população mais pobre nos territórios em que a presença do Estado ocorre por meio de ações coercitivas, em detrimento de intervenções que de fato atenuem as desvantagens históricas às quais foram submetidas essas parcelas da população.

A letalidade das intervenções policiais vem aumentando drasticamente nos últimos anos. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020), as mortes provocadas por intervenções policiais aumentaram 6% no primeiro semestre de 2020 em comparação ao mesmo período do ano anterior. Em termos absoluto temos a triste marca de 3.181 vidas dizimadas apenas nos seis primeiros meses do ano de 2020 em ações policiais, majoritariamente nas periferias das capitais brasileiras. Para termos um comparativo do que esses índices representam, a letalidade policial no Brasil é cinco vezes maior que nos Estados Unidos. Nessa direção, só a cidade do Rio de Janeiro ultrapassa as mortes provocadas pela polícia norte-americana.

O fenômeno da recorrente violência presente na cotidianidade das comunidades periféricas acaba construindo um amálgama entre as instâncias violência-população-espacialidade que passa a compor o imaginário coletivo e normalizar as diversas formas de hostilidade ali presentes como se fossem parte integrante desses lugares.

O afrouxamento da truculência policial pode ser compreendido como uma política, ou modo de responder às demandas sociais utilizada pelo atual Governo Federal que vem manifestando ao longo de seu mandato a admiração pelo modus operandi utilizado por governos ditatoriais. Nesse sentido, não é difícil encontrarmos as marcas do autoritarismo expressas nos discursos, nas intenções, no modo de governar, nos decretos, nas instituições e, em especial, no sistema policial.

Essa linha de atuação política pode ser vista de maneira nítida no instante em que a Presidência da República envia ao Congresso Nacional um projeto de lei que determina as normas que valem para militares e membros de forças de segurança quando estiverem atuando em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). O projeto visa legitimar a truculência e a letalidade policial em ações operacionalizadas sobretudo nas periferias, conglomerados urbanos e favelas de grandes cidades do Brasil.

Cabe destacar a impossibilidade de analisar a violência do Estado destinada aos mais pobres sem levar em consideração a questão racial. Não podemos nos esquecer que as bases da formação social do Brasil se assentam sobre a escravidão. Mais que um modo de produção econômico, a prática escravista significa uma relação social de desumanização para a parcela escravizada e de privilégios ao grupo opressor. Tal relação de desigualdade “fez de raça e cor marcadores de diferenças fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia muito estrita.” (SCHWARCZ, 2019, p. 27-28).

Esse passado de violência e desigualdade materializado por meio da escravização de milhões de mulheres e de homens negros espalhados pelo mundo, comercializados como mão de obra estruturante ao avanço do processo colonial, se inscreveu nas tramas sociais ao longo da nossa história. Mas é preciso considerar que a dinâmica de cada tempo histórico demandou novas formas de escravidão alinhadas com as mudanças ideológicas, modos de vidas e relações sociais.

Assim, o elemento que garante a permanência da herança escravista em interface com as mudanças que marcam a atualidade é o que chama de “reminiscências condutoras”. Ou seja, são condutos de memórias que produzem subjetividades marcadas por determinações históricas e culturais. Esses construtos “sócio imaginários” são obscurecidos pelos discursos de igualdade de oportunidades e pela suposta possibilidade de ascensão dos indivíduos. Porém, na prática, se concretizam numa dinâmica de perpetuação de concentração de riquezas nas mãos dos mesmos grupos. Nesse ciclo de opressão o lugar destinado à população negra brasileira permanece impondo condições de violência e desigualdade. Nas palavras de Sousa (2017),

Como ela [ralé de novos escravos] é estigmatizada e ninguém quer sequer chegar perto dela […], a escola e a saúde, por exemplo, que se destinam a ela são aviltadas. A insegurança pública crônica, já que a ausência de oportunidades reais manda uma parte dessa classe para o crime – no homem a figura típica é o bandido, enquanto para a mulher é a prostituta –, decorre desse abandono. Afinal, existem aqueles entre os excluídos que não querem se identificar com o ‘pobre otário’ que trabalha por migalhas para ser ‘tapete de bacana’. Tudo, enfim, que identificamos com os grandes problemas brasileiros – como, além dos elencados acima, a ‘baixa produtividade’ do trabalhador brasileiro – tem relação com esse abandono [e violência estrutural, acrescente-se] secular (SOUZA, 2017, p. 105).

Em junho de 2020 o Ministro da Justiça “Edson Fachin” expediu uma liminar suspendendo operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro. Trata-se da “Tutela provisória incidental na medida cautelar na arguição de descumprimento de preceito fundamental 635 Rio de Janeiro”, atendendo ao requerimento do Partido Socialista Brasileiro – PSB. A medida estabelece que,

“I) sob pena de responsabilização civil e criminal, não se realizem operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a epidemia do COVID-19, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – responsável pelo controle externo da atividade policial; e II) que, nos casos extraordinários de realização dessas operações durante a pandemia, sejam adotados cuidados excepcionais, devidamente identificados por escrito pela autoridade competente, para não colocar em risco ainda maior população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária.” [1]

A desobediência à Corte Suprema é algo emblemático não apenas pelo descumprimento de uma medida judicial, mas por ter sido um ato de desautorização do mais alta patamar da Justiça Brasileira abrindo espaço para pensarmos sobre as forças que atuam acima do judiciário, colocando em xeque a tão conhecida ideia de “autonomia” dos três poderes. Mas, quais serias as forças ocultas que submetem as instituições do Estado? De onde partiriam?

Engels (1975), em seus escritos, explicita o caráter conciliador do Estado ao mesmo tempo em que denuncia que os dispositivos estatais estão comprometidos com os interesses da classe dominante. No Manifesto do Partido Comunista Marx e Engels revelam o quanto o Estado burguês se encontra embricado com os interesses da burguesia de seu tempo histórico ao dizerem que “o poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia” (MARX; ENGELS, 1998, p. 12).

Engels nos apresenta a intenção do Estado de arrefecer os ânimos da contradição inerente à relação opositora das classes sociais produzidas pela própria dinâmica do modo de produção capitalista. Entretanto, distante da ideia de um Estado neutro e detentor de um interesse originalmente voltado à promoção do bem estar social tendo como premissa a igualdade e equidade ao conjunto dos indivíduos, a máquina estatal tem um lado que não é outro senão o da classe dominante.

Assim, a história da humanidade nos mostra que é, em grande medida, permeada pela luta de classes. Nesse sentido, no processo de escravidão o Estado foi instrumento dos senhores e não dos escravizados. Do mesmo modo, nos sistemas feudais o Estado operou do lado da nobreza, defendendo suas demandas e interesses. No modo de produção capitalista, em todas as suas facetas, o Estado vem se comprometendo com a garantia e perpetuação dos benefícios e privilégios da burguesia, seja ela empresarial ou mais recentemente a chamada elite financeira. No trecho a seguir Engels nos revela que,

Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida. Assim, o Estado antigo foi, sobretudo, o Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado (ENGELS, 1975, p. 193).

Assim, a ofensiva neoliberal que submete e sacrifica a vida do planeta em função dos ditames da lógica do mercado segue marginalizando pobres e negros e eliminando àqueles que não se enquadram nessa estrutura cuja contradição e desigualdade são instâncias fundantes. Portanto, precisamos urgentemente barrar o avanço das políticas neoliberais sob pena de ameaça a vida a cada avanço e consolidação do modo de vida produzida pela lógica neoliberal.

 Um horizonte a ser perseguido rumo à superação dessa sociabilidade reside no processo de conscientização, organização e luta dos trabalhadores, sem perder de vista que a luta da população negra, mulheres, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, entre outros grupos não hegemônicos, são expressões da luta dos trabalhadores e por isso se inserem no lado explorado da luta de classe.  

Referências

BUENO, S. et al. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Centauro, 2002.

ENGELS, F. Del socialismo utopico al socialismo científico. In: MARX, K; ENGELS, F. Obras escojidas. Versión de Editorial Progreso. Cubierta de César Bobis. Tomo II. Madrid: Editorial Ayuso, 1975.

MARX, K.; ENGELS, F. O manifesto do partido comunista. São Paulo: Cortez, 1998.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

*Francélio Ângelo de Oliveira – Doutor em Educação. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará-IFCE – Área de Currículo e Estudos Aplicados ao Ensino e Aprendizagem.

Nota:

[1] Brasil – STF – Tutela Provisória Incidental na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 Rio de Janeiro

Imagem: Policiais carregam corpo durante operação na favela do Jacarezinho. Foto: Ricardo Moraes /Reuters

Comments (1)

  1. Excelente tema! Não é de hoje que esse assunto é discutido mas, infelizmente, ele continua sendo um tema tão atual em nossa sociedade. Posicionar-se contra o racismo não é ser “mimizeto”.
    Precisamos de políticas públicas que auxiliem no combate à violência usando critérios que não sejam a cor da pele.

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