Trabalhadores despejados no norte do Paraná aguardam pela desapropriação de fazenda improdutiva ligada a Usina denunciada por trabalho escravo. O processo expõe obstáculos para a reforma agrária.
Por Alessandra Monterastelli, em Carta Maior / CPT
Roberto* diz que não quer, assim como outros agricultores, desistir da Fazenda Palheta, antigo acampamento Ester Fernandes – localizado na cidade de Alvorada do Sul, Paraná. “A gente vai se organizar e vai voltar a lutar. Mas agora tá perigoso”. Ele conta que estão todos à espera da vacina, para que a mobilização pela ocupação não seja um risco de contaminação para as famílias.
No final de 2019, 43 famílias (cerca de 200 pessoas) foram despejadas de um assentamento na Fazenda Palheta, propriedade do Grupo Atalla, ligado ao setor sucroalcooleiro. A ação ocorreu apenas 5 meses antes do início da pandemia. No mesmo ano, em abril, um longo processo contra o grupo, que envolvia trabalho escravo, foi arquivado. Essas histórias se entrelaçam e atravessam, de alguma forma, a vida de dezenas de trabalhadores. Alguns deles, despejados de uma terra que tornaram produtiva, ainda aguardam uma resposta da justiça .
Em outubro de 2019, o juiz Helder José Anunziato, da Vara Cível de Bela Vista do Paraíso, no norte do Paraná, pediu a identificação individual de cada agricultor que ocupava a Fazenda Palheta, localizada no município de Alvorada do Sul; caso eles não desocupassem imediatamente o imóvel, deveriam pagar uma multa diária de 2.000 reais e responderiam por crime de desobediência. Foi assim que, naquele mesmo mês, cerca de 150 trabalhadores tiveram que deixar suas casas.
“Quando tiraram a gente de lá, já estávamos estabelecidos”, conta Caique*, que vivia no acampamento Ester Fernandes – como foi chamada a ocupação na Fazenda Palheta – desde 2009. Caíque conta que sua filha pequena perdeu a criação de “bichinhos”. “Nós plantavamos mandioca, verdura e criavamos pequenos animais. Empurraram nossas casas, perdemos nossas criações, que foram abandonadas ou vendidas baratinho”, conta. Mostrando uma conta de luz da Copel (Companhia Paranaense de Energia) em seu nome, datada de julho de 2019 e endereçada ao acampamento Ester Fernandes, ele questiona como, depois de 10 anos em que tudo parecia levar ao reconhecimento do acampamento pela justiça, sua história naquele terreno terminou com o despejo.
O terreno de 8,16 hectares (pequena fração do imóvel, que tem 720 hectares no total) era habitado por agricultores ligados à Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag). O mandado para despejo da área em 2019 não foi o primeiro, mas o último de muitos que iniciaram junto com o processo, em 2009. Um ano antes, em 2008, após uma vistoria detalhada da área, o INCRA determinou que a Fazenda Palheta era improdutiva por não cumprir suas funções sociais e que deveria ser destinada à reforma agrária para a criação de um assentamento – unidade agrícola reconhecida pelo Incra onde antes originalmente existia um imóvel rural de um proprietário.
Paralelo ao processo de despejo, a Ação Civil Pública por danos morais coletivos
No mesmo ano de 2008, após diversas denúncias de insalubridade no trabalho dentro de fazendas localizadas ao norte do Paraná, o Ministério Público do Trabalho decidiu abrir uma Ação Civil Pública contra a Usina Central do Paraná, propriedade do Grupo Atalla que, um ano mais tarde, pediria pelo despejo na Fazenda Palheta. A Usina anexava quase 32 mil hectares distribuídos em 24 fazendas destinadas principalmente a produção de cana entre os municípios de Porecatu, Centenário do Sul, Florestópolis, Guaraci, Jaguapitã, Miraselva e Alvorada do Sul – onde se localiza a Fazenda Palheta.
Naquele ano, foram resgatados cerca de 228 trabalhadores em situação de trabalho análogo à escravidão pelo Grupo Móvel do MPT, em imóveis da Usina Central do Paraná. Segundo o Mapa de Conflitos elaborado pela Fundação Oswaldo Cruz, vistorias feitas na época relataram o desrespeito de leis trabalhistas nas fazendas e na Usina, como ausência de programa de redução de acidentes de trabalho, inexistência de instalações sanitárias, trabalho em condições degradantes, em oficinas sem ventilação e iluminação apropriadas; não fornecimento de água potável, obrigação de trabalho aos domingos sem compensação, atrasos no pagamento de salários, não concessão de férias e descontos salariais sem autorização dos trabalhadores, que também precisavam custear seus materiais de trabalho.
Desde o início de sua vida, Roberto é ligado à Usina Central do Paraná. Ele não foi um dos trabalhadores resgatados, pois saiu antes da fazenda; mesmo assim, vivenciou situações de exploração do trabalho e trabalho análogo à escravidão. “Me criei dentro da fazenda Santa Polônia, dos Atalla, em Florestópolis. Meu pai trabalhava há anos nessa fazenda antes de eu nascer”. Diz se recordar de, quando pequeno, ver os irmãos mais velhos indo cortar cana usando chinelo de dedo, carregando marmitas para consumir no campo. “Eles chegavam a atrasar o pagamento em 4 meses. Lembro de comer mandioca no almoço e na janta; quando tinha pacote de arroz, era repartido entre as famílias, porque o pagamento não vinha no final do mês”, conta. O relatório da Fiocruz atesta que esses atrasos “prejudicaram não somente o comércio local, visto que os comerciantes dependiam dos gastos realizados pelos trabalhadores no município, como também levou as famílias ao estado de penúria e desespero, muitas tendo passado fome no período”.
Em 2007, um ano antes do início da Ação Civil, Roberto fez uma das últimas safras de cana para a fazenda Santa Nídia, também da Usina. “Eu percebia que tinha algo errado. Depois que fiquei sabendo das normas de segurança do trabalho, percebi que lá não tinha nenhuma”. Ele conta que logo em seguida foi para São Paulo, “caçar melhora”; trabalhou em plantações de laranja e na Céu Azul Alimentos. Seu pai trabalhou mais de 30 anos nas fazendas pertencentes ao Grupo Atalla. “Quando ele se aposentou, precisou ir na justiça para receber o que lhe era devido. Com os Atalla você só ganhava se entrasse na justiça”. Segundo ele, seu pai deveria ter recebido 150 mil reais, mas recebeu apenas 40 mil.
Roberto lembra que os agricultores que trabalhavam nas fazendas nunca tiveram contato direto com os proprietários, que contratavam “administradores” para vistoriar as fazendas em seu nome. “Uma vez só passou um carro chique na fazenda, daí um cara lá falou que era o dono. Um tal de Jorge Atalla”, conta. As fazendas eram anexadas por setor e cada setor tinha um chefe. Além do administrador, cada fazenda tinha também um “fiscal geral”. Os chefes e administradores costumavam arrumar briga com os trabalhadores por “coisa boba”, como uma manga do pomar comida por um funcionário. “Colocavam a pessoa na ‘missa do facão’, como chamavam, e mandavam embora, sem direito a nada. Ai, a pessoa tinha que entrar na justiça”. Mas quem entrava na justiça, segundo ele, corria risco de morte.
Roberto conta da presença de jagunços na fazenda e que um deles, em particular, era temido pelos trabalhadores. “A gente escutava histórias de que ele trabalhava com uma carreta; se ele ficava sabendo de alguém que entrasse na justiça e essa pessoa moscasse na beira da pista, ele atropelava”. Roberto diz que os episódios envolvendo jagunços começaram a diminuir após a Ação movida pelo MPT em 2008. Contatados pela reportagem através de diversas ligações telefônicas e dois e-mails, os representantes da Usina Central do Paraná e do Grupo Atalla não se manifestaram sobre os fatos narrados; ao serem questionados, os funcionários repassaram a ligação para representantes da área jurídica, que não quiseram atender ao telefone.
Amigo de infância de Roberto, Antonio cresceu junto com ele na Fazenda Santa Polonia. Ele conta que, quando criança, via filhos de outras famílias maiores passarem fome: “Lembro das freiras da Pastoral da Criança indo buscar os menores desnutridos na fazenda”. Criado junto aos seus irmãos pelo pai, lembra dele trabalhando muito, chegando em casa tarde. “Era só um dia de descanso na semana. Trabalho direto aos domingos. Ficávamos meses sem receber o pagamento”, conta. “Eles davam algumas ferramentas, mas muitas tínhamos que comprar e usávamos o calçado que tínhamos para trabalhar. Comíamos na plantação mesmo, em qualquer lugar”, lembra. Antônio conta que a situação começou a melhorar após as fiscalizações do poder público a partir de 2008, que culminaram na Ação Cívil Pública. Ainda assim, ele deixou a Usina devido ao atraso nos salários e foi trabalhar em criações de frango, em Rolândia, também no norte do Paraná.
Segundo Roberto, havia um funcionário da Usina no dia do despejo da Fazenda Palheta, em 2019, munido de um “revólver cromado”, o qual usava para fazer sinal ao trator que passava por cima da plantação, destruindo-a. Caique lamentou que essa não foi a primeira vez que pessoas armadas foram ameaçá-los dentro do assentamento, fato que ele diz ter presenciado diversas vezes nos 10 anos de processo relativo à desapropriação da Fazenda Palheta.
A manifestação do Incra e as dificuldades para a reforma agráriaDe 2009 a 2014, o processo da Fazenda Palheta foi marcado por sucessivas ordens judiciais de desocupação, com uso de força policial. A fazenda era, depois, reocupada. Em 2014, após a juíza substituta Stephanie Assis Pinto de Oliveira determinar o despejo com identificação dos ocupantes para a aplicação de punições judiciais, o Major Valdir Carvalho de Souza, Coordenador Especial de Mediação dos Conflitos da Terra, interveio no processo para afirmar que “a reintegração com evidente questão social” não poderia se efetivar sem determinação do Incra, que deveria propor uma negociação ou realocar as pessoas em outro assentamento. Carvalho de Souza argumentou no processo que a Constituição Federal deveria ser rigorosamente seguida nestes casos, levando em conta o respeito à dignidade humana, prevalência dos direitos humanos, construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a função social da propriedade e lembrou que, caso a logística material e humana não fosse levada em conta, o desalojamento das pessoas de forma imediata levaria a prolongação da questão.
Caíque conta que questionou, no dia do despejo, por que os estavam tirando do terreno, mas o policial não respondeu. Disse apenas que a ordem era que eles saíssem. “Alguns foram para a cidade pagar aluguel, outros foram para o acampamento na Água da Mata, em Bela Vista”, conta Caíque, que se divide entre o acampamento em Bela Vista e a casa da mãe. “Viviamos do que plantávamos e vendíamos na cidade também. Não precisávamos trabalhar fora, nem que o governo desse cesta básica. Vivíamos bem. Depois que saímos de lá ficou muito difícil”, desabafa. “Queria que as autoridades entendessem o nosso objetivo. Nosso sonho de ter um pedaço de terra para produzir. Iríamos gerar muita renda pro município, ia ser muito bom”, lamenta.
O Incra se manifestou em 2014 e reforçou que o imóvel descumpria sua função social antes de sua ocupação pela Contag e que portanto a única solução seria sua desapropriação para a reforma agrária. O superintendente do Incra no Paraná na época, Nilton Bezerra Guedes, alertou que o Grupo Atalla, proprietário da Usina Central do Paraná, possuía muitos outros imóveis improdutivos. Um ano mais tarde, em 2015, um novo relatório do Incra comprovaria que das 24 fazendas pertencentes ao Grupo, 7 eram improdutivas – somando quase 11 mil hectares.
Diante desses fatos, a juíza substituta Stephanie de Oliveira decidiu pela entrada do Incra no processo, o que o transferiria obrigatoriamente para a esfera federal naquele ano de 2014. Em seguida, o Grupo Atalla recorreu para pedir que o Incra não entrasse na ação e teve seu pedido acatado pelo juiz original do caso, Helder Anunziato.
A demora do processo judicial da Fazenda Palheta foi explicado pelo próprio superintendente do Incra, Nilton Guedes, em seu testemunho no processo, quando escreveu que era costume do Grupo Atalla entrar com pedido de suspensão dos processos administrativos (realizados na esfera da administração pública, não indo para o judiciário), para assim judicializar as desapropriações decididas pelo Incra, levando-as para a justiça estadual do Paraná. Essa “judicialização da reforma agrária”, segundo ele, atrasa a obtenção de imóveis por até “dezenas de anos”.
Em nota sobre o caso para a reportagem, o Incra/PR, com sede em Curitiba, afirmou que a Fazenda Palheta continua uma “grande propriedade improdutiva”; o processo administrativo, que ao terminar deveria repassar o terreno para a reforma agrária por meio de decreto presidencial, está suspenso desde 2015 e assim permanece – após um pedido de anulação da Usina Central do Paraná, acatado pela 1ª Vara da Justiça Federal em Londrina (PR).
Para a defensora pública Olenka Lins e Silva Martins Rocha, do Núcleo Itinerante das Questões Fundiárias e Urbanísticas do Paraná, a judicialização dos processos não necessariamente atrasa o trâmite para a reforma agrária; mas esse atraso existe, e o Incra aponta hoje que o problema é devido a falta de financiamento pelo governo federal – o que impossibilita o procedimento de reforma agrária. “Com o tempo, nós temos percebido um sucateamento do Incra. Aqui no Paraná, por exemplo, o Incra tem deixado de prestar assistência às famílias ou empreender os procedimentos de reforma agrária, porque dizem que não há verba para que se possa efetuar desapropriações e levar a reforma agrária adiante”, conta a defensora.
O advogado do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra na região do norte paranaense, Humberto Boaventura, conta que diversas comunidades produtivas, baseadas na agricultura comunitária, foram se consolidando nos últimos 12 anos nos imóveis improdutivos do Grupo Atalla. “Hoje existem as comunidades Zilda Alves, em Florestópolis, e Fidel Castro, em Centenário do Sul, junto ao acampamento Manuel Jacinto com 150 famílias e o assentamento Herdeiros da Luta de Porecatu, com 500 famílias, ambos localizados em Porecatu” – neste último, segundo Boaventura, havia também histórico de trabalho escravo antes da ocupação. “Apesar de não organizar a ocupação da Fazenda Palheta, o MST acabou por se solidarizar com os trabalhadores do acampamento Ester Fernandes, quando ficou claro que ocorreria o despejo”, lembra Boaventura.
Segundo o advogado, a pandemia tornou o ritmo dos processos envolvendo desapropriações ainda mais lento. “Todos os processos foram judicializados”, o que significa que tornaram-se processos perante à justiça estadual, “e tem contestação por parte dos Atalla na justiça. Agora, seguem nos tribunais superiores aguardando decisão” o que, segundo ele, posterga o reconhecimento dos assentamentos e acampamentos. Boaventura classificou como “controvérsia jurídica” o fato das terras terem sido oficializadas como improdutivas pelo Incra, mas ainda assim o juiz da vara estadual pedir a reintegração de posse. Os territórios do MST seguem sofrendo ameaças de despejo mesmo com evidências similares à da Fazenda Palheta, conta Boaventura.
A conclusão da Ação Civil envolvendo trabalho escravo e a decisão do juiz sobre a Fazenda Palheta
Em 2016, a Secretária de Segurança Pública do Paraná orientou que os juízes envolvidos em casos de reintegração de posse deveriam optar pela negociação e não por despejo, para garantir a “preservação dos direitos humanos e menor impacto social possível”, segundo o documento. Ainda assim, o juiz Helder Anunziato procedeu com a reintegração de posse. Em outubro de 2019, temendo multas, criminalizações individuais e a repressão da polícia militar lá presente, os agricultores cumpriram a ordem do juiz e desocuparam a Fazenda Palheta. “Já tinham feito nosso cadastro lá no Incra. Achamos que ia dar certo, ficamos iludidos. Fomos despejados e nada de atenção pra gente, fomos cada um pra um canto. Nem o Incra respondeu porque aquilo estava acontecendo”, relembra Caique. Cerca de 5 meses depois, iniciou a pandemia de Covid-19 no Brasil.
Alguns meses antes, em abril de 2019 e paralelamente ao processo de despejo da Palheta, a Ação Civil Pública contra os irmãos Atalla foi arquivada – também passados 10 anos. Dos R$10 milhões iniciais cobrados da Usina Central do Paraná após a comprovação de trabalho análogo ao escravo em suas dependências, a justiça acabou por cobrar R$1 milhão devido a um acordo. Desses, 350 mil reais foram depositados em parcelas, enquanto o resto foi quitado por meio da doação de um terreno para a construção de uma UBS em Porecatu, que hoje está em funcionamento. Inicialmente, o imóvel estava penhorado como garantia de uma dívida bancária do Grupo Atalla, o que foi resolvido apenas durante o andamento da Ação Cívil.
A assessoria de imprensa do Ministério Público do Trabalho do Paraná referiu à reportagem que a duração do processo não é incomum para esse tipo de caso, dada a ampla possibilidade de recurso na justiça por parte dos réus – no caso, a Usina Central do Paraná e os irmãos Atalla. MPT/PR também informou que a Ação Cívil Pública não englobou indenizações individuais aos trabalhadores vítimas de trabalho insalubre, “que devem ser movidas individualmente na justiça”. “Os casos individuais se desenvolveram em paralelo . O MPT não tem controle sobre as indenizações”, afirmou o representante do órgão por telefone.
Quando compara sua adolescência na Fazenda Polônia, vivenciando o trabalho insalubre junto aos irmãos e sua vivência comunitária na Fazenda Palheta junto aos outros assentados, Roberto diz que a diferença é grande. “Hoje me sinto útil. Contribuo para o bem comum; via as pessoas arando a terra que queríamos fazer nossa e me sentia realizado”, conta.
Em 2019, antes do despejo, a Defensoria Pública do Estado do Paraná pediu para fazer parte do processo. A defensora Olenka Lins e Silva Martins Rocha entrou como defesa dos direitos dos vulneráveis – no caso, os agricultores do Acampamento Ester Fernandes. A defensoria pediu pelo anulamento do despejo, apontando que aquela terra estava sob interesse social e já havia sido classificada para e reforma agrária pelo Incra; mas não obteve sucesso. O juiz Helder Anunziato argumentou que as ocupações da Fazenda Palheta “só fazem com que o objetivo não seja atingido” e utilizou a lei 8629/1993, que determina que “um imóvel rural de domínio público ou particular” que tenha sido ocupado devido a “conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo em caso de reincidência”.
“A propriedade precisa cumprir sua função social. Essa deveria ser a tônica de qualquer análise constitucional, especialmente no meio rural. Mas, via de regra, não acontece na prática”, comenta a defensora Olenka Lins e Silva Martins Rocha sobre a decisão. Ela lembra que na mesma lei citada pelo juiz para a sua decisão, consta que é fundamental que a propriedade cumpra sua função social.
O juiz Helder Anunziato insistiu na desocupação com cadastro dos ocupantes para futuras represálias e pediu pelo desligamento da energia elétrica no acampamento, apesar da promotora Ana Maria de Oliveira Santos, que estava fazendo o inventário das famílias, alertar que a falta de luz era inapropriada pela quantidade de crianças e idosos.
“Nós defendemos que nenhuma reintegração de posse, na pandemia ou não, seja cumprida sem que haja um plano para a realocação das pessoas”, argumenta Olenka. “Não podemos imaginar que as pessoas sejam retiradas de um local onde residiam e tiravam seu sustento pra irem pra rua. Isso fere todos os princípios constitucionais possíveis, como o direito à moradia e à dignidade da pessoa humana”, conclui.
Olenka Lins e Silva pontua que, para além das questões judiciais, o investimento em políticas sociais não tem sido feito pelo poder público. “Esse desmonte dos órgãos responsáveis pelas políticas sociais tem ocorrido de maneira avassaladora nos últimos anos”, alerta. “Isso vem de muito antes da pandemia. Nunca se tem verba e recurso para políticas públicas sociais sejam levadas adiante”, relata. Segundo ela, a pandemia deveria ter sido o momento de se pensar em outras possibilidades que pudessem acolher a demanda por moradia, o que não ocorreu. “O que falta, e sempre faltou, é o planejamento por parte do poder público para que se possa colocar em prática as políticas públicas sociais, nesse caso de moradia e habitação”, conclui.
Em setembro de 2020, os trabalhadores despejados se reuniram e fundaram a Associação de Produtores Rurais do Acampamento Ester Fernandes. O processo continua correndo na Vara Cível de Bela Vista, mas a desapropriação por terra improdutiva está bloqueada; hoje, a Associação tenta um pedido de Usucapião, pelos 10 anos em que os trabalhadores estiveram no acampamento produzindo. Eles seguem na justiça para que possam retornar à Fazenda Palheta.
Esta reportagem foi produzida com o apoio de uma bolsa da Thomson Reuters Foundation.
** A pedido dos trabalhadores, seus nomes foram alterados.