Mesmo antes de aprovado, PL da Grilagem está destruindo a Amazônia

Ocupação irregular em áreas protegidas cresce 56% com efeito Bolsonaro e perspectiva de aprovação de projeto que vai anistiar grileiros e facilitar invasões

por Clara Roman, em ISA

Um novo estudo do Instituto Socioambiental (ISA) detecta a explosão da invasão de terras públicas (grilagem) na Amazônia e o consequente aumento do desmatamento nessas áreas entre 2018 e 2020. Segundo o levantamento, esses números mostram o impacto de projetos de lei como o PL 510/2021 e o PL 2633/2020, os “PLs da grilagem”, que poderão anistiar desmatamentos recentes e aumentar a expectativa de regularização das invasões . O estudo também comprova a relação direta entre a grilagem e a destruição da Amazônia. “Quem desmata acaba dono da terra”, afirma Antonio Oviedo, um dos pesquisadores.

Baixe aqui o estudo.

O estudo analisou os registros do Cadastro Ambiental Rural (CAR). O CAR foi criado pelo Código Florestal com o objetivo de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento. É um registro que o proprietário rural faz (autodeclaratório), obrigatório para a regularização ambiental do seu imóvel, e que deveria ser validado pelos órgãos ambientais dos Estados. O problema é que essa validação demora para acontecer e algumas vezes nunca acontece.

“É por meio do CAR que o poder público vai aferir se há alguma irregularidade ambiental na propriedade e, se tiver, compelir o proprietário a regularizar o passivo ambiental. O CAR tem finalidade ambiental, não pode ser utilizado como instrumento fundiário, para comprovar posse, propriedade ou coisas do gênero”, explica Juliana Batista, advogada do ISA.

Os objetivos do CAR foram deturpados. Os grileiros fazem o cadastro de uma área pública que não é sua para tentar comprovar “posse mansa e pacífica” – ou seja, para tentar comprovar que estão na área invadida ilegalmente e conseguir a regularização pela União. Com isso, os invasores de terras públicas tentam impedir que outros grileiros cadastrem as áreas antes. Além disso, usam esse registro como um documento “oficial” até para a comercialização ilegal dessas terras, mesmo não tendo validade. A grilagem se consolida com a posse ilegal das terras e o desmatamento da área. Derrubar a floresta para transformá-la em pasto é o principal instrumento utilizado pelos grileiros para demonstrar a posse .

Com a perspectiva de aprovação de leis que promovem a anistia de grileiros e regularizam áreas desmatadas recentemente, a corrida por terras na Amazônia só aumenta. “Está mais fácil invadir terras públicas e isso aqueceu o mercado de terras, aumentando a especulação fundiária e tornando a grilagem ainda mais rentável”, explica Oviedo.

Nas florestas públicas não destinadas no bioma, o aumento da área com sobreposição de registros do CAR foi de 29% em relação a 2018, mostra o estudo. O desmatamento nessas áreas explodiu, e quase dobrou no período, passando de 185 mil hectares para 367 mil hectares, um aumento de 98%. O desmatamento total da Amazônia segue essa tendência, com um crescimento de 47% no período, um indicativo de que a grilagem de terras públicas é uma forte indutora de desmatamento, e vice-versa.

Proprietários rurais tinham até 2014 para fazer o registro das áreas no CAR, em seguida, o governo faria a validação e “limparia” o sistema dos cadastros irregulares. Mas esse prazo passou a ser adiado indefinidamente, impedindo a validação dos Cadastros em sua totalidade. “Esse adiamento constante tirou a credibilidade do mecanismo e o CAR acabou virando um documento usado pelos próprios grileiros para a comprovação de suas terras invadidas. Foi a deturpação completa do projeto inicial”, afirma Oviedo. É importante lembrar que invasão de terras públicas é crime previsto na legislação brasileira, assim como o desmatamento sem licença ou autorização do órgão ambiental competente. Por isso, todas as atividades praticadas pelos grileiros são ilegais e criminosas. Deveriam ser objeto de reprimenda e não de regularização.

Nas Áreas Protegidas, a situação se repete: o ISA identificou um aumento de 56% dos registros de CAR dentro de Terras Indígenas, Unidades de Conservação, entre as bases do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SICAR) de 2018 e 2020, e um crescimento de 63% no desmatamento nessas mesmas áreas. Não à toa, nesse mesmo período o desmatamento total nas áreas protegidas da Amazônia cresceu 42%. A aprovação de projetos de lei estaduais que reduzem áreas protegidas, como o aprovado pela Assembleia Legislativa de Rondônia no último mês (Projeto de Lei Complementar 080/2020), que reduz duas Unidades de Conservação – a Reserva Extrativista Jaci-Paraná e o Parque Estadual de Guajará-Mirim – em 200 mil hectares, e declarações de Jair Bolsonaro, indicando que não vai demarcar nenhuma Terra Indígena em seu mandato, estimulam a corrida por essas terras que, pela Constituição, devem ser de usufruto exclusivo dos povos indígenas e áreas de proteção ambiental.

As Unidades de Conservação federais foram as mais afetadas por essa corrida da grilagem. Parques e Florestas Nacionais que abrigam a maior biodiversidade do planeta são o principal alvo dos grileiros. Ao todo, os registros de CAR sobrepostos a essas áreas cresceu 54% e o desmatamento dentro desses cadastros irregulares cresceu 72%. Para as UCs de uso sustentável, como as Reservas Extrativistas, o aumento foi ainda maior, de 274% nos registros do CAR de terceiros dentro dessas áreas com um aumento no desmatamento de 243%.

Os estados de Roraima, Acre e Amazonas concentram as áreas protegidas que mais sofreram aumentos de registros do CAR. No estado de Roraima, o aumento das áreas com registro do CAR de terceiros, em sobreposição com as áreas protegidas, foi de 301% entre os anos de 2018 e 2020. Nos estados do Acre e Amazonas, o aumento foi de 153% e 147%, respectivamente. O estado do Pará também apresentou um número alto da área com registros do CAR de terceiros em sobreposição com as áreas protegidas, totalizando mais de 10 milhões de hectares.

Efeito Bolsonaro

O período da análise dimensiona o chamado “efeito Bolsonaro” sobre a política fundiária na Amazônia e a proteção das florestas, composto por uma mistura de desmonte da fiscalização ambiental, discursos contra a proteção dos povos da floresta e projetos de lei no Legislativo, que mesmo antes de aprovados animam os grileiros a agir sem medo de punição. Desde 2019, o governo federal reduziu a emissão e cobrança de multas ambientais, cortou o orçamento de controle e fiscalização ambiental, ignorou pareceres técnicos para autorizar desmatamento, orientou procuradores da Funai a desistir de ações de demarcação de terras indígenas, entre outras. O próprio discurso pró-desmatamento e críticas constantes às ações de fiscalização ambiental tiveram impacto direto no campo. Para os grileiros, tornou-se ainda mais lucrativo invadir terras públicas e derrubar a floresta com a certeza da impunidade.

Nesse cenário, o PL da grilagem é a pá de cal para impulsionar o desmatamento. Um dos casos mais emblemáticos da proposta é a regularização de áreas invadidas até dezembro de 2019. Isso significa que os responsáveis pelos incêndios florestais de 2019 que escandalizaram o mundo e que escureceram o céu de São Paulo em pleno dia serão anistiados, e ainda ganharão a posse sobre a terra desmatada. A medida entra em conflito direto com as promessas que o Bolsonaro fez durante a Cúpula do Clima na última semana, em que promete reduzir o desmatamento da Amazônia aos níveis da média registrada pelo sistema Prodes (Inpe) para os anos de 2016 a 2020, o que equivale a 8.718,6 km², até 2022.

Impacto no chão

São dezenas de casos em que o crime é amplamente documentado mas nada é feito pelas autoridades. Em Altamira, um grileiro registrou um imóvel rural com sobreposição de 98.2% a uma floresta pública não destinada. Cerca de 50% dessa área foi desmatada em maio de 2020, uma quantidade superior ao limite estabelecido no Código Florestal, e nada foi feito para impedir o crime.

Outro caso analisado pelo ISA é de um imóvel rural ilegal em Novo Progresso (PA). Foi nessa região que os fazendeiros organizaram o “Dia do Fogo” em 2019 e atearam fogo simultaneamente em extensas dimensões de mata, colaborando para a formação de uma nuvem de fumaça que viajou até São Paulo.

O fazendeiro realizou um registro do CAR totalmente sobreposto 99% a florestas públicas não destinadas. No mês de abril de 2020, ele desmatou quase a totalidade da propriedade, 87% da área do imóvel. Cerca de 2.110 hectares de floresta foram ao chão, uma riqueza inestimável em biodiversidade. Essa área é capaz de abrigar mais de 1,5 milhões de árvores com diâmetro acima de 10 cm. Um patrimônio público dilapidado pelo crime, estimulado pela própria presidência da República.

“Os resultados deste estudo mostram que é urgente a suspensão e anulação de todos os registros do CAR de terceiros em sobreposição com as áreas protegidas, incluindo a impossibilidade de que novos registros sejam inscritos nesses territórios”, aponta Oviedo. Ele conclui que é indispensável a retirada de invasores das áreas protegidas e o fortalecimento dos órgãos responsáveis pela fiscalização ambiental de forma a combater tais crimes ambientais.

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