Morre Nancy Prado, matriarca da luta caiçara na Juréia (SP)

Em oito décadas, marcadas por sucessivas ações pelo despejamento de sua comunidade, sua força e coragem se tornaram símbolos de resistência

Por ISA

“O que a matou foi terem destruído a casa dos meninos, porque você pode perceber, depois disso mamãe nunca foi alegre como antes. E na noite antes de ter o AVC ela falou que aquilo que fizeram com as casinhas deles acabou com ela” — Glória do Prado Carneiro, filha mais velha de Nancy.

Nancy Prado, matriarca da comunidade tradicional caiçara do Rio Verde e Grajauna, morreu na última quarta-feira (12/5) aos 84 anos, após complicações em decorrência de uma série de AVCs.

Nancy, junto de seu marido Onésio, representam as famílias caiçaras que conseguiram resistir em seu território desde a criação da Estação Ecológica Juréia-Itatins, em 1986, e sucessivas investidas para que o deixassem.

Nascida em 25 de julho de 1936 na comunidade Rio Verde, em território tradicional caiçara na Mata Atlântica, Nancy ali cresceu, criou seus 10 filhos, seus 23 netos, seus 13 bisnetos e viveu com muita força e alegria semeando o viver caiçara em íntima relação com a natureza ao seu redor.

Karina Ferro, sua neta de coração, escreveu:
“Ela amava a vida. Amava pescar de linha, catar camarão e siri, tirar marisco. Amava plantar roça em mutirão. Amava fazer farinha e beiju. Amava comer banana assada no café, batata doce e taiá, abacate com farinha branca. Amava fazer pirão cozido. Amava cuidar das suas cebolinhas, da manjerona, do pé de limão, que esse ano deu fruitinha. Amava ver sua casa cheia, ouvir aquela perereca de fala na cozinha e ter que fazer mais uma garrafada de café, porque aquela outra acabou antes mesmo do coador esfriar. Amava sentar do lado do fogão enquanto esperava a comida cozinhar. Amava ver os casais rodando na sala e reparar no toque da viola em dia de baile. Ela amava os dias de baile! Amava lembrar as histórias dos antigos e contar tudo com os mínimos detalhes de uma memória infalível. Amava falar sobre a casa de seus pais, sobre a sua infância, sobre os viajantes que passaram. Amava ensinar versos e cantar para as crianças. Ela amava brincar com as crianças! Amava curar com sua fé, suas rezas e sua sabedoria das plantas do mato. Em tudo que ela fazia, havia amor.”

Nas oito décadas vividas, Nancy viu o lugar onde ela e sua família viviam livremente se tornar palco de projetos de empreendimentos imobiliários turísticos, de construção de usinas nucleares e de Unidade de Conservação de Proteção Integral, a Estação Ecológica Juréia-Itatins, que se concretizou em 1986.

O que parecia uma solução para as outras ameaças, acabou sendo a maior delas. A promessa de preservação da natureza se transformou na criminalização e expulsão de sua família do lugar onde sempre viveram seus pais, avós, e gerações anteriores (saiba mais).

Em meio a tantas mudanças, Nancy viu sua comunidade enfrentar todas essas pressões com muita resiliência: organizaram-se na União dos Moradores da Jureia (UMJ); construíram a ECJ, Escola Caiçara da Jureia, na comunidade Cachoeira do Guilherme, onde começaram a estudar muitos de seus netos; criaram a Associação dos Jovens da Juréia (AJJ), que fortalece a cultura caiçara junto aos jovens, com projetos que envolvem, por exemplo, a produção de instrumentos musicais e artesanatos de caxeta (Criqué Caiçara); e continuaram celebrando no território tradicional o dia de São João e outros tantos festejos ao som da viola, da rabeca e do pandeiro dos bailes de Fandango; dentre tantas outras formas de resistir.

Mesmo com toda resistência para poder permanecer em seu lugar ancestral, Nancy viu a mesma escola caiçara ruir e seus amigos, vizinhos e seus próprios filhos indo embora, sem qualquer indenização, expulsos pelo cansaço e criminalizados pelos modos de fazer, viver e manejar a floresta atlântica.

Nos últimos anos, Nancy ainda teve de enfrentar com muita reza e compaixão as intervenções de guardas-parques e gestores da Fundação Florestal, que por diversas formas tentaram inibir sua rotina caiçara, como por exemplo ao negarem autorizações de roçados ou tentarem ampliar a casa núcleo de pesquisador e guarda-parque no principal acesso da casa de Nancy para a praia, caminho que ela fazia todo dia para mariscar e pegar seu peixe fresco para o almoço. Leia mais aqui.

Mais recentemente, no dia 4 de julho de 2019, dona Nancy teve o desgosto de presenciar a demolição de duas casas de morada de seus netos recém casados.

Novamente, a esperança de ver sua cultura viva em seu lugar, foi violentamente destruída pelas mãos do governo do Estado de São Paulo, quando funcionários da Fundação Florestal e a Polícia Ambiental demoliram as duas casas na comunidade tradicional caiçara do Rio Verde e Grajauna.

Uma das moradias havia sido construída justamente na tapera da antiga casa onde Nancy nasceu em 1936. Uma forma de manter viva a memória comunitária, reconhecer a sabedoria ancestral sobre o bom local para se morar e aproveitar as árvores frutíferas plantadas pelos antigos moradores. Escolha feita pelos caiçaras ao manejarem com todo cuidado e respeito o território e a natureza onde vivem.

Mesmo com tanta violência, Nancy viveu bravamente em sua comunidade até seus últimos dias. Tornou-se luz, que se espalhou por toda a Mata Atlântica e pelos corações de todos aqueles que lutam pelos direitos e pela vida dos povos e das comunidades tradicionais do Brasil, que (re)existem com seus modos de vida, conservando as florestas em pé. Que seu legado, a cultura caiçara, permaneça viva em seus filhos e netos que seguem no território caiçara, na Tapera onde “vovó Nancy” viveu com tanto amor.

Leia abaixo poema de Cleiton do Prado Carneiro, neto de Nancy, em sua homenagem:

Vó…
…onde você tá, vó ?
Tô me sentindo tão só
Que o peito chega dar nó
Quando me aperta a saudade
Porque se foi a metade
De um bem tão precioso …
Se foi o abraço gostoso
De quando a gente te via .
É que nessa poesia
Não consigo descrever
O que pra mim você é !
Mas eu tenho muita fé
Pois você é a luz divina
E sei que aí de cima,
está cuidando de nós
Até ouço sua voz
Ralhando com a criançada,
Nos fazendo dar risada,
Nos ensinando rezar.
Você sabia cuidar
De seus filhos de seus netos
Com carinho, com afeto,
E muita satisfação.
Como agora vou chegar,
e entrar na sua casinha.
E ver que ali na cozinha
Não tem mais você, vovó.
E ver o meu avô tão só , sentado ao pé do fogão, olhando a água ferver.
Sabe… Não quero nem ver…
E como fica o peito véio desse seu neto bobão?
Que parece não ter coração ,
Mas não pode ver um cantinho
E fica escondidinho
E se faz sofrer sozinho
Para não passar fraqueza
E só tenho uma certeza,
Esse coração aqui
Sente tanta saudade de ti
Que não cabe nesse peito ,
Nem to enchergando direito ,
E de tão triste que tô
O meu pranto já molhou esse papel inteirinho .
Mas saiba que aqui embaixo
Nossa luta continua
E agora é para a honra sua,
E haja o que houver
Que venha o que vier ,
Lutaremos com coragem
Porque na nossa bagagem
Tem todo o seu legado
E nas veias, sangue de Prado
E tenha a maior certeza
É de nossa natureza
A vontade de viver,
E teremos o prazer
de cuidar de quem ficou
E passar como um trator por cima de todo o mal
que o povo opressor ainda nos quer fazer !!!
E é com muito carinho que
Em nome de todos os netos
Te faço essa homenagem
Que fique vossa mensagem de força e esperança ,
Porque essa é a herança
Que você pra nós deixou .
Que a benção de nosso senhor ,
lhe acompanhe eternamente!
Não sabem o quão triste foi
escrever essa poesia,
Queria ter a alegria de poder falar com ela ,
Seria a coisa mais bela
Ver ela fazer café ,
E as vezes um cafuné ,
Aquele que só avó faz.
Por que só ela é capaz
de ser mãe duas vezes!!!
Bença vó!!!
“Homenagem à nossa avó querida ,
Nancy Prado.”

Imagem: Nancy Prado em seu território tradicional caiçara – Mauricio Pisani-El País

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ivy Wiens.

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