As mulheres sofrem com elevados níveis de pobreza de tempo. Entrevista especial com Luana Simões Pinheiro

A desigual divisão do trabalho doméstico e de cuidados é o grande nó a ser desatado para que as sociedades possam alcançar uma maior igualdade de gênero, diz a socióloga

Por: Ricardo Machado, em IHU On-Line

Os distintos grupos sociais que compõem a sociedade são atingidos de formas desiguais pela crise sanitária de Covid-19. Se, de um lado, a pandemia colocou uma lupa sobre as desigualdades sociais que atingem o Brasil, de outro, ela também acentuou a assimetria existente entre homens e mulheres no que diz respeito ao número de horas trabalhadas. Com o fechamento das instituições de educação e de cuidado, o trabalho que era realizado por outras esferas da sociedade causou um “impacto em termos de ampliação das jornadas de trabalho reprodutivo”, especialmente entre as mulheres, diz Luana Simões Pinheiro.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a socióloga reflete sobre esses efeitos na rotina e na vida das mulheres. “Estas consequências envolvem menor disponibilidade para entrada no mercado de trabalho, inserção mais precária no mercado, menor renda e maior dificuldade para ocupar postos de poder e decisão. Implicam também em menores possibilidades de participação na vida política, em particular na política institucional, bem como menores possibilidades de acesso a bens e serviços de lazer, educação e cultura”, explica.

Com rotinas exaustivas, pontua, “as mulheres sofrem com o que se convencionou chamar de elevados níveis de pobreza de tempo, o que amplia também suas chances de adoecimento físico e mental. O trabalho doméstico e de cuidados não remunerado é permanente e não se encerra quando a louça do final do dia é lavada e guardada e quando as crianças dormem. A carga mental deste trabalho, o planejamento, a organização se dão durante todo o dia e demandam um conjunto de habilidades que exaurem aquelas que se responsabilizam por este trabalho”.

Luana Simões Pinheiro é doutora e mestra em Sociologia pela Universidade de Brasília – UnB e graduada em Economia pela mesma instituição. É técnica de pesquisa e planejamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, no Distrito Federal.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual foi o impacto da pandemia sobre a visibilidade do trabalho doméstico, principalmente aquele realizado pelas mulheres?

Luana Simões Pinheiro – O trabalho doméstico sempre foi visível. Os resultados desse trabalho, seja em termos dos cuidados com a casa ou com as pessoas que nela habitam, são concretos e visíveis. A casa limpa, a comida na mesa, as roupas lavadas, as crianças cuidadas são resultado desse trabalho que podemos ver todos os dias. No entanto, ele tem sido historicamente invisibilizado, como se fosse um trabalho magicamente realizado por mulheres que teriam nascido com tais habilidades, não demandando qualificações especiais para ser efetivado e, assim, não “merecendo” reconhecimento social ou econômico pela sociedade.

A pandemia, contudo, permitiu que um grupo da sociedade entendesse que este não é um trabalho mágico, mas, ao contrário, um trabalho que demanda muito de quem o realiza, seja em termos de tempo investido, de organização, de saúde e habilidades física, mental e emocional.

No momento em que os serviços públicos e privados de cuidados (especialmente de crianças) foram fechados no início da pandemia e as famílias tiveram que absorver de volta este pouco do trabalho de cuidados que era compartilhado com o Estado ou com o mercado, o tamanho e a relevância do trabalho de cuidados e doméstico realizado de forma não remunerada ganhou concretude para quem não o “percebia”. No entanto, não é possível saber o quanto dessa percepção se mantém com o passar do tempo e o retorno das atividades escolares ou o quanto isso tem sido visto como uma questão a merecer mais atenção do Estado.

IHU On-Line – Durante a pandemia uma série de serviços de Estado – como escola, creches, programas de ocupação para idosos – ficaram suspensos devido à necessidade de distanciamento social. Como isso tudo acentuou ainda mais a carga de trabalho doméstico? Que alternativas sanitariamente seguras temos diante deste contexto?

Luana Simões Pinheiro – A divisão desigual do trabalho doméstico e de cuidados não remunerado entre homens e mulheres é uma constante em todo o mundo. Ainda que tenha se alterado em alguma medida ao longo dos anos, as mulheres seguem dedicando mais horas a essas atividades do que os homens, mesmo em países conhecidos por serem mais igualitários em relação a gênero. Os dados de 2019 mostram que as mulheres, no Brasil, alocam 21,7 horas semanais em trabalho reprodutivo, valor que é praticamente o dobro daquele alocado pelos homens (11 horas).

Trabalho doméstico e de cuidados
É importante dizer que, no Brasil, o trabalho doméstico e de cuidados é realizado basicamente no âmbito das famílias, seja o trabalho de cuidado dos domicílios, seja de pessoas dependentes em algum grau (ou não), como crianças, idosos ou pessoas com deficiência. No caso dos serviços de creche, que atendem as crianças com maior grau de dependência, ainda não há obrigatoriedade de oferta de serviços pelo Estado. No caso dos cuidados de idosos, não apenas a Constituição Federal, quanto os demais normativos da área (Estatuto do Idoso, Política Nacional do Idoso) definem que o cuidado de idosos deve ser ofertado pelas famílias de forma principal e apenas subsidiariamente por outras esferas. Nesse sentido, ainda se entende que o cuidado é uma responsabilidade familiar, sendo ele pouco compartilhado com Estado ou mercado, reproduzindo-se um entendimento que coloca sobre as famílias – e nelas, sobre as mulheres – o peso pela realização deste trabalho e todos os impactos decorrentes das duplas e triplas jornadas daí decorrentes.

A oferta de serviços pelo Estado ou pelo mercado para cuidado de crianças e idosos ainda que limitada e absolutamente insuficiente representa, nesse sentido, um passo adiante no compartilhamento do trabalho de cuidados, reduzindo o tempo das mulheres dedicado a essas atividades. Quando a pandemia e as medidas de isolamento social adotadas para contê-la fecharam as creches, escolas, atividades de contraturno ou de cuidados de idosos, isso significou devolver às famílias (ou seja, às mulheres) o trabalho de cuidados que estava sendo realizado por outras esferas da sociedade. Nesse sentido, o impacto em termos de ampliação das jornadas de trabalho reprodutivo foi significativo. Estudos realizados em outros países evidenciam que essa ampliação se deu tanto para homens quanto para mulheres, mas com muito mais intensidade para as mulheres, o que tem levado também a aumentos de problemas de saúde mental.

Uma importante medida para garantir que estes serviços permanecessem abertos durante a pandemia seria a vacinação prioritária dos grupos que trabalham nestas instituições, uma vez que lidam diariamente com um conjunto de pessoas e famílias sobre as quais não possuem informações acerca da qualidade de isolamento social. Além, claro, da adoção de medidas de segurança sanitárias comprovadamente eficazes na prevenção da disseminação do vírus, como adoção de equipamentos de proteção individual adequados (máscaras do tipo PFF2) fornecidos pelos empregadores, ventilação e distanciamento social. Não seria adequado, em qualquer hipótese, retomar estas atividades sem garantir a segurança tanto das pessoas que frequentam os serviços quanto dos trabalhadores – em grande maioria mulheres – que neles exercem suas atividades profissionais.

IHU On-Line – Que dimensões da desigualdade brasileira, inclusive de gênero, se tornam ainda mais evidentes nesse período de pandemia?

Luana Simões Pinheiro – As desigualdades de gênero, raça e classe foram muito evidenciadas durante a pandemia. Nenhuma destas desigualdades foi criada pela pandemia, uma vez que a sociedade brasileira se estruturou sobre elas, mas foram aprofundadas durante todo o processo pandêmico pelo qual temos passado.

Os indicadores mostram que os impactos diferenciados se dão desde a contaminação e a mortalidade pelo vírus, passando pelos efeitos no mercado de trabalho, na violência e nas jornadas de trabalho reprodutivo. São as pessoas de mais baixa renda e negras as que mais se contaminam e morrem pelo vírus, não por questões biológicas, mas em função de determinantes sociais das condições de saúde destes grupos sociais que envolvem questões como: maior presença em postos de trabalho precários e informais, grande presença em trabalhos considerados essenciais, menor acesso estrutural aos serviços de saúde (que podem levar a uma subnotificação de possíveis comorbidades ou maior dificuldade de controle das comorbidades que tornam a contaminação pela Covid mais severa), menor acesso a serviços de saneamento básico adequados, maior dificuldade de manter isolamento e distanciamento sociais adequados, entre outras questões.

Também se verificaram impactos severos no mercado de trabalho, seja em termos de inatividade, desemprego e consequente redução da renda. Com isso, aumentam os níveis de pobreza e fome da população brasileira, especialmente de mulheres, negros e pessoas de mais baixa renda, que podem sobreviver à Covid-19, mas não necessariamente à fome que vem dos elevados níveis de desemprego e de inatividade da força de trabalho brasileira. Os impactos são múltiplos, diversos e muito desiguais entre os grupos sociais.

IHU On-Line – Quais sãs as implicações sociais do trabalho doméstico não remunerado? Quais são as consequências, digamos assim, da “porta para fora”?

Luana Simões Pinheiro – A responsabilização feminina pelo trabalho doméstico e de cuidados não remunerado produz uma série de consequências sobre a vida das mulheres. Estas consequências envolvem menor disponibilidade para entrada no mercado de trabalho (menor participação na força de trabalho), inserção mais precária no mercado (postos mais precários, jornadas menores, segmentação em ocupações específicas), menor renda e maior dificuldade para ocupar postos de poder e decisão. Implicam também em menores possibilidades de participação na vida política, em particular na política institucional, bem como menores possibilidades de acesso a bens e serviços de lazer, educação e cultura. As mulheres sofrem com o que se convencionou chamar de elevados níveis de pobreza de tempo, o que amplia também suas chances de adoecimento físico e mental. O trabalho doméstico e de cuidados não remunerado é permanente e não se encerra quando a louça do final do dia é lavada e guardada e quando as crianças dormem. A carga mental deste trabalho, o planejamento, a organização se dão durante todo o dia e demandam um conjunto de habilidades que exaurem aquelas que se responsabilizam por este trabalho.

A desigual divisão deste trabalho, portanto, é o grande nó a ser desatado para que as sociedades possam alcançar uma maior igualdade de gênero.

IHU On-Line – De que forma a dupla ou tripla jornada de trabalho de mulheres, mesmo aquelas em trabalho home office, gera impactos na vida das trabalhadoras?

Luana Simões Pinheiro – Com a pandemia e as medidas de isolamento social houve aumento da demanda por trabalho doméstico e de cuidados não remunerado (mais pessoas em casa a serem cuidadas, maior preocupação com medidas de higienização para controle da disseminação do vírus etc.), ao mesmo tempo que houve redução da oferta deste trabalho por parte do Estado, do mercado e mesmo dos arranjos comunitários que poderiam auxiliar neste compartilhamento (não se recomendava, por exemplo, que as crianças fossem deixadas com suas avós em função do maior risco para os idosos na primeira onda da pandemia).

Nesse sentido, coube especialmente às mulheres lidar com esse aumento do trabalho reprodutivo, o que levou muitas mulheres a abandonarem seus empregos. No final do segundo trimestre de 2020, apenas cerca de 47% das mulheres estavam na força de trabalho, valor mais baixo verificado desde os anos 1990 para o Brasil. Houve uma transição direta entre trabalhadoras ocupadas para a inatividade, sem que necessariamente tenham se tornado desempregadas primeiro.

Os impactos em termos de aumento das cargas de trabalho e de saúde mental foram mencionados anteriormente, valendo a pena destacar que foram tão maiores quanto menores as idades dos filhos e quanto menor a renda das famílias.

IHU On-Line – Como a senhora avalia a implementação de políticas públicas de renda básica de cidadania?

Luana Simões Pinheiro – O benefício do Auxílio Emergencial – ou políticas semelhantes – é fundamental tanto como medida de controle da pandemia (possibilitando a adoção de medidas de isolamento mais eficazes) quanto em termos de garantia de uma renda mínima que assegure a sobrevivência da população. Este benefício é especialmente importante para trabalhadores e trabalhadoras em situação de maior vulnerabilidade, precariedade e informalidade, que não poderiam contar com o Estado por meio do acesso a seguro-desemprego ou auxílio-doença, por exemplo.

Um exemplo dessa situação pode ser visto no caso das trabalhadoras domésticas remuneradas, cujos postos de trabalho encolheram em 1,5 milhão entre 2019 e 2020. Entre as trabalhadoras que permaneceram trabalhando, 2/3 delas acessaram o Auxílio Emergencial, retirando daí a possibilidade de manutenção de condições mínimas de sobrevivência. Esse setor foi não apenas dos mais impactados pela pandemia em termos de perda de postos de trabalho, mas também tem sido um dos que mais lentamente tem conseguido recuperar os postos de trabalho. Nesse sentido, o auxílio, com valor adequado, é uma importante política para evitar o aumento da pobreza e da mortalidade, seja pelo vírus, seja pela fome.

IHU On-Line – Qual o impacto da fome, um fantasma que assombra seis a cada dez famílias brasileiras, na vida das mulheres?

Luana Simões Pinheiro – A perda da dignidade e o risco permanente da morte.

IHU On-Line – No último ano o Brasil registrou uma queda 1,5 milhão na ocupação de trabalhadoras domésticas no país, efeito da pandemia. O que esse dado significa tanto para quem perdeu o emprego, quanto para quem precisou abrir mão deste tipo de serviço?

Luana Simões Pinheiro – Para quem perde o emprego significa, como mencionado anteriormente, a perda de sua fonte de renda em um cenário de instabilidade na oferta de benefícios como o Auxílio Emergencial, que passou por interrupções e redução expressiva do valor. Pode significar, portanto, o retorno ou o aprofundamento das condições de pobreza, aumento da fome e todas as consequências daí decorrentes em termos de manutenção da vida e de condições mínimas de dignidade humana.

Para quem precisou abrir mão deste tipo de serviço, num contexto de ausência do Estado, do mercado e das dificuldades de contar com redes de solidariedade femininas, significa aumento da sobrecarga de trabalho. Importante dizer, contudo, que as trabalhadoras domésticas são especialmente vulneráveis à pandemia e, portanto, também deveriam ter direito ao isolamento social e à proteção contra o vírus, sendo o trabalho entendido como essencial (e, portanto, passível de manutenção durante o período pandêmico) somente nos casos de necessidade de cuidado de pessoas dependentes, tal como defendido pela Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas – Fenatrad e pelo Ministério Público do Trabalho em Nota Conjunta 04/2020.

IHU On-Line – Qual a importância de superarmos a retórica da “mulher guerreira” e da “mãe guerreira”? Como esse tipo de discurso naturaliza uma série de violências contra as mulheres e joga para debaixo do tapete nossas profundas desigualdades?

Luana Simões Pinheiro – A retórica da “mulher guerreira”, da “mãe guerreira” reforça o estereótipo da supermulher, a mulher-maravilha que tem que dar conta de tudo: trabalho remunerado e não remunerado doméstico, cuidados com filhos e demais dependentes, e ainda o autocuidado. É uma retórica opressiva e que reproduz desigualdades de gênero ao excluir os homens do discurso, já que eles não precisam dar conta de segurar tantos “pratos ao mesmo tempo” para serem reconhecidos.

Além disso, superar essa retórica é uma forma de combater, ao mesmo tempo, o racismo e o classismo, entendendo que essa retórica reverbera de forma diferente entre as mulheres, uma vez que a chance de mulheres pobres e negras recorrerem a auxílios que aliviem a sobrecarga de trabalho, como acesso a creches e escolas, acesso a eletrodomésticos que reduzem o tempo gasto no trabalho não remunerado, acesso a profissionais que exercem a função de cuidadores (babás, enfermeiras, entre outros), é muito menor que a de mulheres brancas e de renda mais alta. E, sem acesso a essas ajudas, essa mulher terá ainda mais sobrecarga, e precisará ser ainda mais “guerreira”.

A ideia de uma “mulher guerreira”, portanto, contribui para reforçar estereótipos racistas e fixos de gênero que colocam as mulheres em um lugar em que devem ser super-humanas a partir da lógica da constante superação, como se não houvesse espaço para outras narrativas que extrapolam esse lugar. É, nesse sentido, também uma estratégia de supostamente enaltecer a luta cotidiana de mulheres que buscam superar a ausência de políticas públicas e de condições dignas de vida, eximindo, em alguma medida, o papel do Estado nesta seara.

Luana Pinheiro (Foto: Arquivo pessoal)

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