Pecuarista que atingiu Resex Chico Mendes com agrotóxicos já esteve na lista do trabalho escravo

Júlio César Moraes Nantes foi acusado de fraudar notas fiscais para fugir da reforma agrária, multado pelo Ibama e condenado a dois anos de prisão por porte ilegal de armas; MP do Acre investiga danos à reserva extrativista, vizinha de sua fazenda

Por Mariana Franco Ramos, em De Olho nos Ruralistas

O pecuarista Júlio César Moraes Nantes é o dono da Fazenda Soberana, responsável por pulverizar agrotóxicos em áreas que fazem limite com a Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes. O território fica em Xapuri (AC), a cerca de 180 km de Rio Branco. O fazendeiro tem um histórico de acusações, que incluem falsificação de documentos para obtenção de vantagens junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), multa ambiental, porte ilegal de armas e até trabalho escravo.

A suspeita de que a ação atingiu parte da unidade de conservação está sob investigação do Ministério Público do Estado do Acre (MP-AC). Conforme o órgão, moradores da Resex relataram terem sentido, por vários dias, o forte cheiro do produto, pulverizado há cerca de uma semana. A aeronave de pequeno porte utilizou a pista de pouso de Xapuri como base de operação.

Alertado por vereadores do município, o MP-AC oficiou, na terça-feira (18), o Instituto do Meio Ambiente (Imac), o Comando do Corpo de Bombeiros, a prefeitura e a Secretaria de Meio Ambiente de Xapuri para que, em razão da urgência, se manifestassem sobre o caso em 24 horas. O documento é assinado pelo promotor de Justiça Juleandro Martins de Oliveira. O MP-AC ainda não informou o resultado da consulta.

Conforme reportagem do jornal ac24horas, o fazendeiro não tinha autorização do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Acre (Idaf), órgão encarregado de fiscalizar e controlar o uso, a comercialização e o transporte de agrotóxicos, para a operação. O Idef não foi informado do plano de voo, do tipo de produto usado, nem da área georreferenciada.

LOCAL FOI PALCO DE “EMPATES” LIDERADOS POR CHICO MENDES

Com quase 1 milhão de hectares, a Resex leva o nome do sindicalista, ambientalista e líder dos seringueiros, que há 32 anos foi assassinado a tiros, na porta dos fundos de sua casa. É a maior reserva extrativista do país e abriga em torno de 2 mil famílias. Após o disparo, os agrotóxicos teriam se espalhado com o vento e atingido lavouras de subsistência e vegetação da região.

A Soberana já pertenceu ao Grupo Bordon, um dos frigoríficos incorporados pela JBS, e é remanescente do Seringal Nazaré. Ela foi palco de vários empates (manifestações que impediam a derrubada das florestas) na década de 80, antes de ser vendida para Nantes.

Famílias que vivem nas terras lutam até hoje para sobreviver da extração e da comercialização do látex e da castanha, enquanto acompanham o avanço do agronegócio.

Além do extrativismo e da agricultura de subsistência, as populações tradicionais exercem atividades como criação de pequenos e grandes animais e manejo de sistemas agroflorestais.

A Lei Estadual de Agrotóxicos (2.843/2014) não proíbe a aplicação de herbicidas via pulverização aérea, mas estabelece uma série de normas. Entre elas estão: respeitar os limites de áreas de preservação permanente e de unidades de conservação ou áreas de interesse ecológico de forma geral e observar uma distância de 1.500 metros para localidades onde existam povoados. Ainda é preciso entrar com um pedido de viabilidade ambiental junto ao Imac.

FAZENDEIRO TENTOU BURLAR DECLARAÇÃO DE IMPRODUTIVIDADE

Nantes foi multado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em R$ 633 mil, por desmatar 422 hectares de mata primária, sem autorização do órgão ambiental competente. O ato ilícito foi praticado em 2004 e a autuação ocorreu em 2007. O pecuarista chegou a pedir a prescrição da punição, mas teve seu pedido negado em 2015, pelo juiz federal Jair Araújo Facundes.

Em outubro de 2016, o Ministério Público Federal no Acre (MPF/AC) entrou com ação penal contra o fazendeiro. Ele teria fraudado notas fiscais com a finalidade de comprovar a produtividade da fazenda, que havia sido declarada improdutiva pelo Incra, para fins de desapropriação.

Segundo o procedimento investigatório criminal que antecedeu a ação, o fazendeiro alegou que utilizava a área para exploração de castanha, fator determinante para que se anulassse judicialmente a declaração de improdutividade.

As pessoas apontadas pelo denunciado como supostas compradoras da castanha negaram, em depoimentos, que as transações comerciais tenham ocorrido. A Secretaria Estadual de Fazenda informou ao MPF que a principal atividade exercida no local é a criação de bovinos para corte.

MTE ENCONTROU TRÊS TRABALHADORES EM SITUAÇÃO ANÁLOGA À ESCRAVIDÃO

Júlio César Moraes Nantes também é dono da Fazenda Floresta, localizada na zona rural de Bujari, a 20 quilômetros de Rio Branco. Em 2013, a propriedade foi uma das sete do estado incluídas na lista suja do trabalho escravo, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). O órgão encontrou, em 2009, três trabalhadores em condições análogas à escravidão.

Em março deste ano, o fazendeiro foi condenado a dois anos de reclusão por porte ilegal de arma de fogo e munições. A comunicação de flagrante foi feita pela Polícia Federal (PF) em agosto de 2020, em Rio Branco. O crime, previsto no artigo 14 do Estatuto do Desarmamento, é inafiançável, salvo quando a arma estiver no nome do agente.

O regime inicial é aberto e ele foi autorizado a recorrer em liberdade. No mês passado, porém, o Tribunal de Justiça do Acre considerou que a pena — mínima para esse tipo de delito — já foi cumprida. O pecuarista precisou apenas pagar o valor correspondente a dez dias-multa, fixadas em 1/30 do salário mínimo vigente, o que significa em torno de R$ 366.

A reportagem não conseguiu contato com Nantes ou qualquer outro representante da Fazenda Soberana.

Foto principal (Arquivo/Greenpeace): Resex Chico Mendes é um dos legados do líder seringueiro

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