Trincheiras indígenas: viagens de um contador de histórias

Mestiço, criado na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, local de conflitos, só assumiu sua identidade aos 25. Artista, encontrou-se na literatura e é autor premiado. Vive em SP, onde diz cumprir uma missão – mas sonha voltar a sua terra. Relato de Cristino Wapichana a Angela Pappiani, na coluna Trincheiras Indígenas nas Cidades

Por Angela Pappiani, no Outras Palavras

Cristino Pereira dos Santos nasceu no município de Normandia, no estado de Roraima, nos extensos campos do lavrado que se estendem até a divisa com a Venezuela e Guiana. Essa é mais uma região de fronteira onde as populações indígenas desconhecem os limites entre os países, onde mantiveram suas aldeias e formas tradicionais de ocupação ao longo de séculos. Nos últimos 50 anos, principalmente, com o movimento de ocupação incentivado por governos e forças militares e que beneficiou a regularização de terras em nome de fazendeiros, grandes companhias, grileiros, mineradoras e garimpeiros, essas populações enfrentaram, e ainda enfrentam, conflitos e perdas irreparáveis. A disputa pelas terras planas e irrigadas dessa fronteira norte mobilizou principalmente os grandes produtores de arroz que se recusaram a sair mesmo depois da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2005, numa briga que dividiu muitas comunidades indígenas, principalmente onde casamentos e interesses econômicos marcavam as famílias.

Essa porção do território brasileiro abriga mais de 25 mil indígenas das etnias Wapichana, Ingarikó, Patamona, Makuxi, Taurepang e Ingarikó que sofrem ainda hoje com invasões de garimpeiros e ações do governo e empresariado local que tentam, por bem ou por mal, reverter as conquistas dessa população indígena.

A mãe de Cristino saiu da comunidade Araçá da Serra quando se casou com um não indígena, mas manteve forte ligação com a família e os parentes da aldeia. Ela e a avó foram as grandes influências na vida do menino que se encantava com as histórias da tradição do povo Wapichana. Já adulto, vivendo em Boa Vista por conta dos estudos, Cristino assumiu o nome Cristino Wapichana, deixando para traz um tempo de conflitos com sua identidade. Vivendo atualmente em São Paulo, com atuação em vários campos da arte e comunicação e com vários livros publicados e premiados, passou a se identificar como escritor apenas partir de 2017, quando seu livro “A Boca da noite” ficou em 3º. lugar no cobiçado Prêmio Jabuti.

Ele ainda tem no currículo a Estrela de Prata do Prêmio Peter Pan 2018, do International Board on Books for Young People (IBBY); é o escritor brasileiro indicado para a Lista de Honra do IBBY 2018, recebeu o Prêmio FNLIJ 2017 na categoria Criança, foi finalista do Prêmio Jabuti 2019, recebeu menção honrosa no Concurso FNLIJ/UKA Tamoios de Textos de Escritores Indígenas em 2014 e foi vencedor do mesmo Concurso em 2007. O livro A Boca da Noite figurou no catálogo da Feira de Bolonha, na Itália – 2017, recebeu o Selo Altamente Recomendável FNLIJ 2017 e o Selo White Revens da Biblioteca de Munique – 2017. Pelo Movimento União Cultural recebeu o Prêmio Litteratudo Monteiro Lobato 2015 e a Medalha da Paz – Mahatma Gandhi 2014.

Com a palavra Cristino Wapichana:

“Eu me chamo Cristino Wapichana, nome que escolhi para identificar o meu povo. Minha comunidade de origem é Araçá da Serra, no médio rio Cotingo, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Minha mãe é Wapichana, meu pai é negro. Quando se casaram, ela saiu da comunidade e foi para o município de Normandia, mas nunca perdemos o contato com a comunidade. Esse nome, Normandia, é alusivo à Normandia da França, pois dizem, e eu não sei se é um fato histórico mesmo, que aquele famoso prisioneiro fugitivo Pappilon apareceu ali, no norte de Roraima, vindo da Venezuela.

“Todo esse universo, a cosmologia ancestral, sempre esteve muito presente em minha vida”

Minha avó sempre foi muito presente na minha vida, assim como tios e primos. Nossa casa na cidade era a base da comunidade. A parentada toda que ia resolver documentos, negócios, ficavam ou passavam pela nossa casa.

O que marcou muito minha infância foram as histórias que mamãe contava de nosso lugar, nossa comunidade. Tinha umas pedras que andavam, tinha pássaros, grandes e pretos que atacavam à noite, que comiam gente. Precisava fechar bem a casa, usar pimenta, queimar casco de jabuti para espantá-los. Eles faziam muito barulho do lado de fora e se a gente saísse, era comido, primeiro os olhos… Eram histórias terríveis. Há um ser chamado Kanaimã ou Kanaimé, que em português é conhecido como Rabudo, que faz parte de uma entidade espiritual ruim, que mata pessoas. É uma história milenar que continua ainda matando os indígenas. Um culpa o outro: foi Macuxi, não, foi Wapichana, foi Patamona, foi Ingaricó. Mas muitas vezes o Rabudo está dentro de casa, muitas vezes é um pajé ruim. Todo esse universo, a cosmologia ancestral, sempre esteve muito presente em minha vida. Quando vou para a comunidade, tenho que ir de moto, porque é longe da cidade. Então fico olhando, muito ativo, esses lugares que são de origem das histórias.

Boa Vista, capital de Roraima sempre foi uma cidade pequena. Quando mudamos para lá eu tinha uns 12 ou 13 anos, e a cidade tinha uns 30 ou 50 mil habitantes. Era uma cidade pacata, parada, mas o povo sempre foi muito preconceituoso. Quando falavam de índio, era como se fosse uma classe inferior de gente, preguiçoso, enrolado, safado, bandido, em quem não se podia confiar. No entanto, os empregados domésticos eram indígenas, todos.

Sempre me identifiquei com a minha etnia, mas a gente vivia escondido. Eu me lembro que saía na porrada quando ia para a escola e me chamavam de índio, marcava encontro lá fora e brigava. Só porque eu era indígena, achavam que podiam me humilhar, me bater. Isso sempre foi muito forte, até hoje ainda é, nas pessoas, no governo… Eu só fui me identificar mesmo como Wapichana quando já tinha 25 anos. Eu me escondi por muito tempo, ficava na minha, não falava nunca sobre isso.

Essa situação complicada com garimpo em Roraima, que hoje é notícia na mídia, é muito antiga, existe desde a década de 1970. Mas só ficou pior nas décadas de 1980 e 90. A cidade ficou muito violenta, o aeroporto se tornou o mais movimentado do país, tinha congestionamento de aeronaves. Havia mortes todos os dias. A gente morava num bairro chamado Liberdade e nesse bairro tinha dois bares, os mais conhecidos, o Baiano e o Julio Iglesias. Todas as noites tinha festa e bebedeira, e todas as noites morria gente de tiro. Eram garimpeiros, normalmente nordestinos, que foram atrás do ouro e que são os mesmos que estão lá agora. Desviaram o rio Mucajaí com máquinas, para trabalhar no leito. Era um rio lindo, grande, estragaram o rio, agora é só barro.

“Eu só fui me identificar mesmo como Wapichana quando já tinha 25 anos. Eu me escondi por muito tempo…”

No início dos anos 2000 eu não conseguia ficar mais lá. Terminei o curso técnico em música e queria fazer faculdade de música, que não tinha. Eu precisava sair, para qualquer outro lugar. Comecei também a entender a situação política e vi a sujeira, a nojeira que é. Queria sair daquele lugar. Ainda mais que iam pessoas aqui do Sudeste que se achavam o máximo quando chegavam lá, num lugar pequeno, comparado com uma capital como o Rio de Janeiro ou São Paulo, onde a questão de oportunidades, de estudo, é muito diferente. Os músicos chegavam cheios de onda. Tocavam bem, é claro, mas nós não tínhamos uma escola com o potencial, com a qualidade de ensino daqui. Eu falava: ‘pô, tu é meu colega e fica de onda! Tu vem de lá porque é tão incompetente que não conseguiu competir no seu lugar, por isso veio pra cá pegar a nossa graninha. Pois eu vou sair daqui e vou ganhar a grana que você deixou lá.’

Comecei a fazer trabalho com a arte, composição, participei de festivais. Fiz sete músicas na minha história e cinco ganharam prêmios, festivais. Aí comecei a ficar conhecido. Trabalhei com indígenas em Boa Vista, trabalho social, com canto coral. Aí assumi o nome Wapichana. Conheci o escritor Daniel Munduruku em 2006 através de contato que o SESC de Roraima fez. Ele explicou que tinha o Encontro de Escritores Indígenas no Rio de Janeiro e que precisava de ajuda. Eu estava a fim de sair, de estudar, fazer outras coisas. Pedi demissão e saí fora, nem fui atrás de indenização trabalhista. Trabalhei então na organização do encontro de escritores, a partir de 2008 eu me efetivei e fiz a produção até 2014. Em 2014 mudei para SP e cá estamos.

“Mas o grande choque foi em relação às pessoas. Lá na minha terra ainda se acreditava muito na palavra, e aqui não”

A música não deu certo na minha vida, não adianta tu estudar 10 horas por dia e ganhar 200, 300 contos no final de semana. Exige muito e não dá para sobreviver. O caminho que encontrei foi escrever. Essa foi a grande descoberta na minha vida, na minha história. Passei pelo cinema também. Estudei direção cinematográfica. É encantador, mas a escrita foi o que me fez pisar no chão, onde senti que podia investir todas as minhas potencialidades artísticas. Esse é o meu caminho.

Depois, parei com o cinema, me tornei contador de histórias, talvez volte a mexer com cinema de novo, vamos ver o que vai acontecer. Conto história para ganhar o pão, toco para ganhar o pão, mas é a escrita que vai me deixar na história.

Quando eu cheguei no Rio de Janeiro, fiquei admirado com os prédios, achava incrível a construção, conhecia o assunto porque trabalhei de pedreiro. Eu ia olhando para cima o tempo inteiro, olhando os prédios. Assim como acho incrível o avião passando, uma coisa extraordinária. Mas o grande choque foi em relação às pessoas. Lá na minha terra ainda se acreditava muito na palavra, e aqui não. Vi muita gente enrolando as pessoas, me davam conselhos para eu me dar bem. Aí eu falava: cara, não sou bandido não, não faço esse tipo de coisa. Vim de um povo de palavra, de uma mãe e de um pai que me deram condições de ganhar a vida honestamente, de um jeito bonito, não sei passar a perna nos outros. Jamais vou fazer isso. O tal jeitinho brasileiro, de tirar vantagem de tudo, esse foi um choque terrível. Porque gente tem defeito, não importa se é indígena, branco, preto, amarelo, é gente. Não brigo para vender artesanato, por causa de evento, para estar numa mesa.

“… consegui entender que a história tem uma alma, que ela se entrega quando ela te deseja como você a deseja…”

Quando entendi o quanto essas pessoas me sugavam a energia, expulsei essas pessoas da minha vida. Aí fiquei livre para escrever. Por isso veio o “A boca da noite”, uma história magnífica, que um menino espiritual me contou. Depois que me livrei de influências ruins, consegui entender que a história tem uma alma, que ela se entrega quando ela te deseja como você a deseja, ela é uma entidade que quando quer se materializar, procura alguém com nível espiritual que se encaixe com ela, há um namoro, é bonito isso.

Parei de fazer produção de eventos e segui sozinho. Me tornei uma pessoa livre. Passei 30 anos na Igreja Batista Regular e aí também, um dia, Jesus me salvou dessa igreja e comecei a entender, a colocar de fato em prática a arte, essa coisa tão linda, magnífica, a literatura, a escrita, a música, a contação de história. Hoje eu sou um ser livre do jugo, não sou cristão, não tenho nada a ver com Cristo, com judeu, com inglês. Sou o que sou, sou Wapichana. Essa história do judeu, que o homem veio do barro, a mulher veio da costela, isso é problema deles. Eu não tenho nada a ver com isso. Meu povo nasceu do Sol e da Lua. Se eles não acreditam na minha história, por que eu tenho que acreditar na deles? Histórias são para justificar as coisas, não passa disso, ninguém estava lá, ninguém viu.

“Depois do Jabuti decidi que sou escritor, por muito tempo tive dúvidas de como me apresentar, se era professor ou outra coisa…”

Hoje eu trabalho com construção, com pintura, não é só com arte. Se for para receber alguma grana desonesta, primeiro não topo, não me envolvo com essas paradas. Já recebi proposta de políticos, mas, desculpe, tenho uma vida muito gostosa e quero continuar desse jeito. Você faz o que é ruim se quiser, se não quiser você não precisa fazer. Perrengue, como dizem, a gente passa em qualquer lugar do mundo, você, sendo honesto, ninguém vai poder jogar nada na sua cara. Prefiro ter essa conduta, o que é do outro, é do outro. Não invejo o Daniel Munduruku, o Ailton Krenak pelo que eles têm, pelo que conseguiram de premiação, de casa, de dinheiro. Eu como todos os dias, ando num carro velho que me leva para onde eu quiser. Tenho várias premiações com os livros que me dão condições de conseguir trabalho. Uma coisa interessante na minha trajetória é a presença das pessoas, como o Daniel que continua parceiro. A gente não é sozinho. Quando falo que a premiação é da obra, é porque o livro é feito por muitas pessoas, não é do cara que criou. Depende de muitos. Depois do Jabuti decidi que sou escritor, por muito tempo tive dúvidas de como me apresentar, se era professor ou outra coisa… até 2017. Agora me assumi, sou escritor.

“Eu quero voltar, estou de passagem por aqui, cumprindo uma missão”

Eu tenho vontade de voltar para a minha terra todo dia. Mas as condições não permitem. Aqui em São Paulo eu tenho nome e sobrenome, ocupo inclusive a cadeira 146 na Academia de Letras dos Professores do Município de São Paulo, junto com outros grandes autores. Aqui, enquanto recebo mil reais para contar uma história, em Roraima querem pagar 200, e quando aparece é uma oportunidade rara. Uma escola aqui me paga 500, lá em Roraima e no Rio de Janeiro também vão me dar tapinhas nas costas.

Minha ideia é conseguir publicar mais alguns trabalhos, interessantes de fato, que eles recebam o que lhes é devido, que eu possa sobreviver do resultado desses livros e ir para o mato. Eu quero voltar, estou de passagem por aqui, cumprindo uma missão.

Eu volto quase todos os anos para Roraima, meus irmãos estão lá, vivendo na cidade, somos em 10 irmãos, temos uma união razoável, gosto de estar com eles, é um acontecimento, fico em casa aproveitando. Meu pai partiu em 2018, minha mãe no final de fevereiro deste ano. Fiquei com ela nos seus dias finais. Fui um filho obediente, não dei muito trabalho, fui provedor, levava comida para casa. Eu ia ver minha avó na aldeia, ia pescar com meus primos, trazia peixe, ela abria um sorrisão. É duro ver esses seres tão bons fazerem suas passagens, com dores, dificuldades, mas é a vida.

Tenho uma filha de 24 anos, que já tem um casal de filhos e vive em Roraima. Me casei em 2011, quando cheguei ao Rio. A gente vive bem, temos uma filha de 5 e outra de 9 anos, minhas paixões. Faço 50 anos em julho e penso que estou começando a entender a vida, gostando de ficar em casa, de sair só quando tem necessidade.

A cidade é cruel, eu trabalho e volto para casa, não tenho muito contato com ela. Vivo num casebrezinho perto do Pico do Jaraguá e não vou sair de lá tão cedo, odeio mudança, tem que tirar tudo, botar tudo de novo… provavelmente vou ficar lá até voltar para casa, estou aqui de passagem mesmo.”

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