Uma CPI no país do desvario

Mentiras inundam comissão. Depoentes bolsonaristas falam como se fizessem crônica de uma realidade paralela, ou se vivessem na dimensão da fantasia patológica. Vestem-se de personagens, saem como bufões — sobre os corpos de meio milhão de mortos

por Ricardo Salles, em Outras Palavras

Nos anos 1960, passava uma série televisiva semanal, misto de ficção científica, assombro e mistério, dublada em português. Na abertura de cada filme, numa pequena introdução, com fundo musical sugestivo, se afirmava haver uma quinta dimensão, além das três conhecidas e de uma outra, inferida, o tempo. Era a dimensão da fantasia, que o locutor dizia com voz solene e enigmática se situar além da imaginação, expressão que dava título à série.

No original, em inglês, a série se chamava The twilight zone, literalmente, A zona do crepúsculo, mas que pode ser traduzida como a zona (ou área) de semiconsciência, por analogia com a expressão twilight sleep, propriamente um estado de semiconsciência.

De fato, sem entrar muito nos meandros da psiquiatria ou da psicanálise, pode-se dizer que a fantasia, adiante da imaginação, pelo menos em termos leigos, é uma espécie de incorporação sensorial de situações imaginadas e que dá ao autor da fantasia alguma compensação prazerosa, à sua maneira, independentemente da possibilidade de essas situações corresponderem à realidade. Nessa sensação de prazer, mesmo que fugaz, é encontrada também uma certa segurança psicológica, ainda que ilusória. Algo como uma área intermediária entre a luz e a sombra, entre a vivência e o sonho, que, tanto mais se poderá aproximar de um estado patológico quanto maior for a sensação do autor da fantasia de que a situação fantasiada é verdadeira, não só para si próprio, mas igualmente para seus interlocutores, reais ou imaginários.

Parece que se vive hoje no Brasil, em especial na política, numa twilight zone, na dimensão da fantasia – patológica, porém –, em que a mentira institucionalizada funciona como crônica mórbida de uma realidade paralela. Talvez nunca se tenha mentido oficialmente tanto em nosso país, e de maneira tão doentia, tão cínica, como se a audiência fosse invariavelmente composta de deficientes cognitivos graves.

Jair Bolsonaro, família e acólitos, aí incluídas gangues de milicianos, fardadas ou não, virtuais ou existenciais, pouco ou nada se importam com o absoluto divórcio entre o que dizem e os fatos, entre seus propósitos declaradamente obscenos, excludentes e violentos e aquilo que procuram falsamente passar, como desígnios republicanos, aos cidadãos que, com os impostos que pagam, sustentam de maneira compulsória tanta insensatez interesseira.

Agora mesmo, no âmbito da CPI do Senado, uma investigação oficial para apurar as responsabilidades e, espera-se, punir a omissão e a delinquência por erros inescusáveis, incompetência gritante e crimes mesmo, praticados à larga pelos Bolsonaros, ministros, seus funcionários, bem como oportunistas e aproveitadores de toda sorte, no trato da pandemia da covid-19, mente-se com inacreditável desfaçatez. E não apenas funcionários e ex-funcionários chamados como testemunhas – legalmente obrigados pelo compromisso com a verdade –, mas ainda parlamentares que dão suporte a esse clube maleficente. Apesar de quase meio milhão de brasileiros mortos por incúria das autoridades e, talvez pior ainda, por malfeitos dolosos que serão devidamente apurados, mentem como se protagonizassem episódios televisivos da série Além da imaginação, remasterizada com puerilismo, maldade doentia e sordidez que julgam utilitária pela violência com que sinalizam suas ameaças veladas.

Vejam-se dois casos recentes, emblemáticos, os depoimentos dos ex-ministros das Relações Exteriores e da Saúde, Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello. Essas figuras repulsivas, debochando impunemente de uma instituição do Estado Democrático de Direito, o Senado da República, foram capazes de dizer que não fizeram o que comprovadamente fizeram, com cinismo invulgar disseram que não falaram o que falaram, num deprimente espetáculo de fingimento criminoso decidiram responder a perguntas que não foram feitas, deixando farsescamente irrespondidas certas indagações comprometedoras feitas com objetividade total, tudo comprovável por meio de vídeos e áudios, profusamente veiculados pela mídia, bem como por farta documentação produzida pelas repartições governamentais. No caso de Pazuello, a transgressão foi até agravada por seu comportamento hostil, com a arrogância de um soba, que, parece, acrescenta ao falso testemunho o crime de desacato. É de se perguntar por que tudo isso não foi considerado mentir para fins de prática do crime de falso testemunho, e, conforme o caso, desacato, delitos puníveis, na forma da lei, com prisão em flagrante.

Por que razão, depois de o relator da CPI pedir a prisão de um outro depoente, o antigo encarregado da Comunicação do governo Bolsonaro, flagrado em delito de faltar com a verdade, o presidente da CPI não deu sequência ao pedido, tendo apenas enviado peças ao ministério público para averiguação de possível delito daquele ex-funcionário? Tudo indica que faltou-lhe a coragem cívica de que abdicou em proveito de uma pusilanimidade travestida de tolerância indulgente. Impossível que não soubesse que, com essa atitude intimidada, demonstrava ignávia na condução dos trabalhos e sinalizava o caminho da impunidade para futuros depoentes que mentissem.

Será trágico, para dizer o mínimo, se a CPI não se preparar, em futuros depoimentos, para formular as perguntas ajustadas e certas, de maneira clara e sem ambiguidades que deem margem a espertezas e escapismos de gente muito comprometida com maleficências criminosas. Mais trágico ainda será se o presidente da CPI conduzir as coisas preferindo a conciliação interesseira ou acovardada ao irrenunciável dever cidadão de apurar a verdade dos atos, em grande parte dolosos, praticados pelas hordas de gângsters que assaltaram o Estado nos últimos dois anos.

É o mínimo que se espera. Não pode um bando de pulhas, paisanos ou não, cuspir na cara do cidadão enlutado por quase meio milhão de mortes, grande parte delas evitáveis se houvesse nesse governo hediondo um mínimo de responsabilidade, de alteridade, de espírito público e, não menos importante, de certeza da punição pelo genocídio que promovem.

A Nação merece respeito!

A propósito de fantasias, o linguista e historiador holandês, Johan Huizinga, escreveu um livro magistral chamado Homo ludens – o jogo como elemento da cultura, publicado em 1938 (revisto antes da morte do autor em 1945). A segunda palavra do título, ludens, é o particípio presente adjetivado do verbo latino ludere, jogar, brincar, num paralelismo com homo sapiens, o homem que raciocina.

Pelo próprio conteúdo da obra, a tradução do título poderia, adequadamente, ser o homem fantasista, na acepção de fantasia dada acima, distinta, como ali apontado, da mera imaginação. Na verdade, a fantasia seria uma espécie de segunda milha percorrida numa senda que passa pela imaginação e, não a abandonando, prossegue em busca dos fins prazerosos que as aproximam.

Registre-se que tanto no original holandês, como no texto alemão que serviu de base para a tradução brasileira, a palavra jogo (spel Spiel, respectivamente) sugere bem mais do que apenas jogo ou brincadeira, sua tradução em português, mas algo genérico, como fazer de conta, simular, e, daí, a ideia de fantasia. Acrescente-se, nesse sentido, que na raiz remota do holandês spel, bem como do alemão Spiel, está a ideia de dança (Etym. Woordenboek, Prisma, Utrecht/Etym. Wörterbuch, de Gruyter, Berlim), propriamente uma imitação (simulação) de movimentos rápidos. Do mesmo modo, o conteúdo semântico de ludus, substantivo latino de que deriva o verbo ludere, é, na origem etrusca, um tipo de ritual religioso – um faz de conta sagrado – em que prevalece a ideia de movimento, salto, por oposição a iocus, que deu o nosso jogo, propriamente a brincadeira com palavras, incluídas as piadas (Ernout-Meillet/Huizinga).

No jogo, diz o mestre holandês, há prazer e diversão – isto é, uma saída do curso normal da vida por tempo certo e num espaço mental próprio –, realizando-se ainda um desejo ou uma ficção destinada a produzir prazer e preservar o sentimento de valor pessoal ou mesmo coletivo. Isso também se dá com a fantasia salubre, limitada, tal como o jogo, o brincar, à linha demarcatória da antessala da patologia.

O brincalhão, o fantasista, sabe que, no jogo, como na fantasia, tudo é faz de conta, apesar das frequentes regras ou limites a serem observados, cuja quebra por um desmancha-prazeres priva a brincadeira, a fantasia, da ilusão e interrompe a magia, o encanto que deveria subsistir por mais tempo e se estender por um espaço mental maior.

A propósito, ilusão deriva de iludir que, a seu turno, vem do latim illudere (<in+ludere), propriamente recrear-se (ludere) dentro (in) de, vestido de algo sabidamente irreal. Do mesmo modo, um derivado, colusão (do latim collusio [cum+lusio]) traduz em essência o agrupamento (cum) para fazer os outros crerem numa fantasia (ludere).

No jogo, há protagonistas que, à medida em que avançam para o antagonismo, dissolvem o encanto da fantasia e começam a se limitar à agonia, no sentido próprio do termo grego, de dor, angústia, luta final, sofrida, abandonando o espírito competitivo em favor do impulso destrutivo. Aqui, vale notar que o ethos político de Jair Bolsonaro e suas gangues não é mera coincidência, não é um acaso da História.

A brincadeira é de livre escolha e, tanto quanto uma fantasia saudável, é voluntária e tem a finalidade principal de proporcionar prazer desinteressado, senão perde a característica lúdica e entra em outras esferas da existência, em geral envolvendo narcisismo e violência. De novo, a vinda à mente da morbidez de Bolsonaro, família e acólitos é a terrível consequência necessária desse tipo de conhecimento.

O jogo, quando imposto tanto a si mesmo quanto a terceiros, é, no máximo, uma imitação artificial, uma simulação forçada, que pouco ou nada terá de diversão, tanto quanto a ideia de obrigação é incompatível com o fantasiar, livre na sua essência. Não é à toa que a mentira (em cuja raiz está o latim mens-tis, plano, desígnio), especialmente a utilitária, a interesseira não se confunde com erro nem é acidental, é sempre ato deliberado, com dolo, visando a confundir, enganar o interlocutor, ao passo que a verdade, que acaba nos chegando independentemente de a buscarmos, é algo suscetível de se acreditar e que, por extensão, é justo, é bom. Aliás, verdade tem verus na sua raiz remota latina, que – por oposição a falsus – é propriamente aquilo em que se crê, a crença (Ernout-Meillet). Portanto, não passam de idiotas sem requinte os que, paisanos ou não, com servilismo voluntário ou cumprindo ordens, mentem descaradamente na CPI como se estivessem diante de um espelho falando para patetas como eles mesmos.

A CPI da Pandemia não é o círculo sagrado (o hierós kýklos) da Ilíada, separado do resto do mundo, onde atores disfarçados abandonam suas personalidades reais e assumem cada um uma persona própria, tal como no antigo teatro romano os intérpretes antepunham a máscara (persona, em latim, do etrusco phersuna, adjetivo de Phersu, divindade-ator dançante). O depoente numa CPI não é um personatus, personagem de uma trama, e, tanto quanto os demais integrantes, deve saber que os rituais e a liturgia são parte de um processo temporário e localizado. O depoente que transgride essa máxima, procurando, através da mentira, fazer crer à plateia que ela está diante de uma persona distinta do ator, ao contrário de angariar credibilidade, sucumbe à inverossimilhança e se consagra na bufonaria. Parece que até na aparência física tanto Pazuello como Ernesto Araújo cabem nesse modelo, especialmente o primeiro…

Muito curioso, ainda, era, na Antiguidade mais remota, a importância dada ao fator sorte na busca da vitória numa causa judicial, se comparado com o problema abstrato de prevalência do bem sobre o mal, daí resultando uma entrada nada inconsciente na esfera lúdica. Iustitia, cujo nome deriva de Ius, o direito dos homens (por oposição a Fas, o direito divino), é a equivalente romana da grega Diké. Esta é a personificação da Justiça alicerçada na lei dos homens, e que segura uma balança em cujos pratos são jogados (dikein, no infinitivo) porções do destino e, conforme a oscilação incerta, se dá a decisão, o julgamento (dikazo, é julgar, sentenciar, em grego). De novo, a relevância do fator sorte (tykhe, em grego, divinizado como Tykhe, a deusa do destino incerto) no desfecho inseguro do jogo, aqui, no entanto, levado muito a sério pelo seu caráter sagrado. Seriam Bolsonaro e sua gangue tão primitivos a estarem sempre contando com a sorte na oscilação dos pratos da balança da Justiça? Com que mais poderiam estar contando?

Bem, poderíamos gastar ainda muito espaço com as geniais observações de mestre Huizinga, dissecando o entrelaçamento de fantasia, imaginação, mentira e verdade, mas, por enquanto, basta uma constatação: seus ensinamentos nos ajudam a entender o festival de imbecilidade mórbida associado à crua desfaçatez desses comissários do Mal de baixíssimo nível, soltos por aí a conspurcar o luto de centenas de milhares de familiares de vítimas da covid-19 no país.

Não podem ficar impunes!

Além da Imaginação (The Twilight Zone), série de televisão dos anos 1960

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