Em entrevista, cacique Almir Suruí alerta para impactos do PL 490, que pretende rever a demarcação de terras indígenas, e fala sobre a criação do Parlaíndio, “parlamento indígena” que reúne 42 lideranças.
por João Pedro Soares, em DW
Sem perspectivas de novas demarcações de terras no atual governo, os povos indígenas lidam agora com uma ameaça à preservação dos territórios já reconhecidos. O Projeto de Lei (PL) 490, em tramitação na Câmara dos Deputados, prevê a revisão do usufruto exclusivo das terras pelos indígenas, previsto na Constituição.
Além disso, o projeto propõe a criação de um “marco temporal”, exigindo a presença física dos indígenas nos territórios demarcados em 5 de outubro de 1988. Na semana passada, indígenas foram reprimidos pela Polícia Militar de Brasília enquanto protestavam contra a iniciativa em frente à Funai.
A instituição, que tem o dever constitucional de coordenar e executar políticas indigenistas no Brasil, vem sendo criticada por sua atuação no governo de Jair Bolsonaro. Na visão das lideranças, o órgão tem atuado para proteger interesses de grupos econômicos interessados na exploração das terras indígenas.
Em meio a esse cenário, líderes tradicionais articularam a criação de um “parlamento indígena”, o Parlaíndio. A iniciativa, que tem como presidente de honra o cacique Raoni, será um espaço de discussão para lideranças de todo o Brasil. O grupo já reúne 42 nomes e tem como objetivo formular estratégias comuns para os problemas enfrentados nas aldeias.
O Parlaíndio terá reuniões mensais, sob coordenação do cacique Almir Narayamoga Suruí, principal liderança do povo Paiter Suruí, de Rondônia. Nesta entrevista, ele conta que o PL 490 será o tema central do próximo encontro do grupo, ainda neste mês.
“O perigo não é só para os povos indígenas. É para o futuro mesmo, porque isso vai trazer uma destruição social e ambiental enormes para o Brasil. E pode afetar até mesmo a economia”, afirma.
Junto com outras lideranças indígenas críticas ao governo de Jair Bolsonaro, Suruí foi alvo de um inquérito da Polícia Federal no mês passado. O cacique se projetou nacionalmente por sua luta contra os projetos de usinas hidrelétricas em sua região, durante os governos petistas.
“A diferença entre os dois é que, quando a gente criticava bastante, o governo de esquerda abria diálogo. Agora, não tem nenhum espaço”, afirma.
Na entrevista a seguir, o coordenador-executivo do Parlaíndio detalha o funcionamento da iniciativa e analisa o cenário que se apresenta aos povos indígenas atualmente.
DW Brasil: Qual pode ser o impacto do projeto em discussão na Câmara que propõe a revisão da demarcação de terras indígenas?
Almir Suruí: O perigo não é só para os povos indígenas. É para o futuro mesmo, porque isso vai trazer uma destruição social e ambiental enorme para o Brasil. E pode afetar até mesmo a economia, porque se o Brasil não respeitar os acordos estabelecidos dentro das convenções climáticas vai passar a mensagem de que não é um país de respeito, de compromisso. O Brasil vai ser visto como um país que está destruindo o futuro, desrespeitando o direito de viver das pessoas.
Você foi alvo de um inquérito da Polícia Federal, a pedido da Funai, por criticar o governo. Na semana passada, lideranças que protestavam em frente ao prédio da instituição indigenista foram reprimidos pela polícia. Qual é sua avaliação sobre a atuação do órgão durante o governo Bolsonaro?
Nesse governo, a gente vê um retrocesso nas políticas públicas e no respeito aos povos indígenas. Em relação ao presidente da Funai, ele já vinha atuando contra a questão indígena há muitos anos, como delegado da Polícia Federal. Não sei por que hoje ele está na presidência da Funai. Se a atitude dele é contra os indígenas, então o lugar dele não é na Funai. Por isso, o nosso repúdio, dizendo que ele tem que sair da Funai, dar o lugar da presidência da Funai a quem respeita os povos indígenas. O governo Bolsonaro está fazendo, na prática, o que ele deseja para os povos indígenas, expresso em seu preconceito e palavras de ódio. Mesmo que o governo não goste de nós, não pode ter essa postura. É inaceitável.
A criação do Parlaíndio busca preencher uma lacuna deixada pela Funai na proposição de políticas indigenistas?
Sim. A Funai é a instituição do Estado que tem o dever de implementar políticas públicas para povos indígenas. Nossos movimentos e ações se dão no sentido de fiscalizar, defender e propor o que o governo deve fazer, como garantir o direito conquistado pelos povos indígenas dentro da Constituição, além de assegurar melhor saúde e educação. Queremos também sugerir alternativas para a implementação de políticas de gestão dentro dos territórios indígenas. Nossas organizações e representações políticas não podem tirar o dever do Estado junto aos povos indígenas. A Funai e o governo precisam ter a consciência de que o Estado não faz um favor aos povos indígenas ao respeitar seus direitos. É um dever. Nossas organizações estão sempre dispostas a contribuir para que o governo implemente políticas públicas e traga serviços de melhor qualidade para o nosso território.
Como o diálogo entre as lideranças do Parlaíndio pode impulsionar as reivindicações dos povos indígenas?
O Parlaíndio vai atuar para dar a voz a lideranças tradicionais, de longa data. O movimento indígena dá essa voz também, mas se empenha mais na atuação direto nas aldeias. A ideia é subsidiar, unir a força do movimento, das instituições que respeitam e defendem o direito coletivo dos povos indígenas, bem como as que implementam políticas indigenistas. É um espaço para as lideranças que não têm voz se expressarem, nesse espaço tão complexo das políticas públicas. Sabemos que cada povo tem suas histórias.
A partir disso, nós vamos refletir quais políticas serão realmente necessárias como coletivo. Também iremos tentar entender a situação de cada povo em cada estado, quais problemas eles enfrentam. Vamos dialogar e juntar aqueles que estão mais próximos de cada questão, para que a gente esteja junto lutando e visualizando estratégias de como combater ou buscar diálogo. Vai ter muito a ver com quais problemas que nós vamos identificar junto a esses povos. Sabemos que tem indígenas a favor do agronegócio e da mineração. Mas precisamos entender o desejo desse povo, se eles estão realmente conscientes do impacto que esses projetos podem trazer. No Parlaíndio, vamos precisar de muita análise para identificar os problemas que essas questões podem trazer, no futuro, para os direitos coletivos e o direito de viver de cada pessoa indígena.
A representatividade dos povos indígenas na política institucional é baixa. Como será o diálogo do Parlaíndio com o Congresso?
A gente sabe que o Congresso Nacional é formado pelos partidos. O parlamento indígena não quer seguir esse modelo, mas sim ampliar a voz dos povos indígenas para subsidiar os parlamentares que estão lá e defendem a questão indígena e a ambiental dentro do Congresso. Vamos trabalhar juntos, enviando os projetos desejados pelos povos indígenas, representados pelo Parlaíndio.
Você, o cacique Raoni e o Davi Kopenawa, que integram o Parlaíndio, têm visibilidade internacional, sobretudo na Europa. Como será a interlocução do Parlaíndio com governos de outros países?
A gente precisa analisar quais países têm compromisso e seriedade nesses temas maiores que são ameaçadores para o mundo, como a mudança climática, assim como o respeito pela biodiversidade e meio ambiente. A partir disso, podemos criar uma estratégia de como dialogar com esses países. Eu não vejo nenhum problema. Nós estamos dispostos a abrir esse diálogo do movimento indígena com outros países, falar do futuro e construir juntos estratégias, como um plano internacional para combater a mudança climática e demais ameaças que podem afetar o mundo no futuro.
Você se destacou como liderança indígena nacional ao lutar contra os projetos de hidrelétricas na sua região, durante os governos petistas. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, desponta como principal candidato de oposição a Bolsonaro em 2022. Você o apoiaria?
Eu trato o governo como governo. Não tenho esperança de Lula poder ser melhor que Bolsonaro. O que eu penso é que o governo tem que fazer o melhor para o seu país, senão eu não teria enfrentando o governo de esquerda, como a gente está enfrentando aqui também um governo de direita, do Bolsonaro. A diferença entre os dois é que, quando a gente criticava bastante, o governo de esquerda abria diálogo. Agora, não tem nenhum espaço. Se não tiver alternativas, a gente tem que escolher o “menos ruim”, mas espero que tenha mais alternativas em 2022 para a gente escolher melhor.
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Almir Suruí: “Quando a gente criticava bastante, o governo de esquerda abria diálogo. Agora, não tem nenhum espaço”