Por Danielle Monteiro, no Informe Ensp
Em fevereiro de 2018, na cidade de Mococa, São Paulo, uma mulher negra em situação de rua entrou na sala de cirurgia em trabalho de parto. Saiu de lá estéril, sem seu consentimento, e ainda sem a filha, encaminhada para adoção. Em maio de 2020, o caso do segurança negro George Floyd, brutalmente assassinado por um policial na cidade de Minneapolis, no estado de Minnesota (EUA), ganhou destaque na imprensa de todo o mundo. O homicídio acontecia em meio a uma pandemia que já matava mais negros do que brancos no Brasil. Embora distintos e ocorridos em diferentes lugares, os três fatos possuem um denominador comum: todos são exemplos de como se dá o racismo estrutural no mundo.
No dia 3 de julho de 1951, foi aprovada a primeira lei brasileira contra o racismo. A medida foi tão significativa que a data passou, desde então, a ser conhecida como o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial. Já se passaram 70 anos, porém, a luta pela igualdade e contra o preconceito racial ainda tem um longo caminho a percorrer. Prova disso é o recém lançado relatório do Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU), que identificou um racismo sistêmico contra negros no Brasil e em outros países do mundo. Fruto do assassinato de George Floyd, o documento revela uma mortalidade 183% maior de pessoas negras em intervenções policiais, comparado a brancos, em 2019 no Brasil, com base em dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O relatório também alerta para o cultivo da tolerância à discriminação racial, à desigualdade e à violência, como consequência da desumanização de pessoas de ascendência africana. O documento ainda chama a atenção para a criação de narrativas que associam falsamente pessoas negras com atividades criminosas, assim como o uso de tais estereótipos para justificar leis e práticas dos sistemas de justiça criminal.
Segundo a pesquisadora da ENSP, Roberta Gondim, para se refletir sobre o racismo estrutural, é preciso relembrar a construção social que passa pela ocidentalização do mundo, a partir da Europa enquanto projeto de poder e dominação que opera em vários campos da vida social, inclusive na própria produção científica.
Tal construção social, de acordo com a pesquisadora, está inserida na lógica do chamado Darwinismo social. De acordo com o conceito, presente em teorias de alguns pensadores no século 19, algumas sociedades e civilizações possuem valores que as colocam em condição superior às demais. Roberta explica que, segundo a concepção, o lugar mais privilegiado na pirâmide social é derivativo da condição inata de ser ‘mais apto, inteligente e evoluído’ do indivíduo que a ocupa, tratando-se, assim, de um sentido evolutivo bastante primário, do ponto de vista de uma perspectiva conceitual. “É quase que justificar uma determinada posição social a partir da própria ocupação do lugar social, sem levar em consideração as dinâmicas históricas, geopolíticas, sociais e econômicas, as quais imprimiram, a partir da força, da violência e do poder, esses lugares”, afirmou a pesquisadora, durante capacitação promovida pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da ENSP.
A crença de que os humanos são, por natureza, desiguais e dotados de diferença que os torna superiores e inferiores ainda está muito presente nos diais atuais, conforme observa a pesquisadora. Ela alerta que tal lógica se transforma em políticas públicas, culminando em casos como os de mulheres negras em situação de rua esterilizadas compulsoriamente. “É importante refletirmos sobre como determinadas premissas se transformam em modos de operar e em práticas sociais; e o quanto dialogamos com alguns derivativos e resquícios dessa naturalização de lugar de mundo”, alertou Roberta durante o evento.
Para alguns estudiosos, o racismo chegou ao país antes mesmo de ele ser chamado Brasil. “A mítica frase ‘Terra à vista’, atribuída aos primeiros navegantes portugueses que aportaram em ‘nosso litoral’, seria um marco nesse sentido. Os registros históricos deixados por cronistas e viajantes que estiveram por aqui, no decorrer dos séculos que antecederam a instauração do escravismo colonial, já indicavam que os povos originários não eram reconhecidos como gente, ou seja, eram comparados a animais selvagens”, observou o pesquisador da Escola, Paulo Bruno, em entrevista ao Informe ENSP.
Covid-19: Por que negros morrem mais do que brancos no Brasil?
A partir do entendimento de toda a construção e processo histórico do racismo estrutural no Brasil, não surpreende que, do total de pessoas em situação de miséria no país, 75% são pretos e pardos, de acordo com dados do IBGE. Também não é à toa que, em solo nacional, pessoas negras têm mais chances de morrer de Covid-19 do que brancas.
“A pandemia evidencia o racismo estrutural de várias formas no Brasil, a começar pelos próprios números relativos à evolução dos casos da doença”, observa Paulo Bruno. Conforme apontado na nota técnica Análise Socioeconômica da Taxa de Letalidade da Covid-19 no Brasil do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (Nois) em maio de 2020, do total de casos de Covid-19 registrados entre brancos, 37,93% resultaram em óbitos e 62,07% tiveram recuperação. Já entre negros (pretos e pardos), 54,78% dos casos tiveram como desfecho óbitos e 45,22% a recuperação dos doentes. No grupo de pessoas negras sem escolaridade, a proporção foi quatro vezes maior de morte do que no de brancos com nível superior (80,35% contra 19,65%). Os números também revelaram maior proporção de óbitos entre negros, 37% em média, comparado a de brancos na mesma faixa de escolaridade. No nível superior, a diferença foi ainda maior (50%).
Segundo o pesquisador, o maior impacto da Covid-19 sobre os negros pode ser explicado por vários fatores, como a existência de comorbidades; o racismo institucional, que cria obstáculos ao acesso dos negros aos serviços de saúde; além da menor renda recebida por aquela parcela da população, que dificulta seu acesso a planos privados de saúde. “Na medida em que o SUS tem sido destruído, as possibilidades de atendimento para essa população ficam limitadas a tratamentos paliativos, o que, no caso da Covid-19, resulta no agravamento de situações que poderiam ser resolvidas”, explica.
Ondas de protestos contra o racismo ressurgem, com participação expressiva da população, como ocorreu a partir do assassinato de George Floyd. Documentos recentes alertam para um racismo sistêmico em todo o mundo. Relatos de mulheres negras que sofreram laqueaduras compulsórias ganham espaço na mídia e provocam forte indignação da sociedade. O racismo estrutural recentemente passou a ser mais debatido e pautado pela imprensa. Fatos como esses sinalizam mudanças. No entanto, conforme indicam os números, o caminho ainda é longo para a chegada da igualdade e de necessárias transformações em todo o conjunto da sociedade.
Saiba mais aqui sobre a história do racismo estrutural no Brasil.
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Arte: ascom MPF/PA, via Adobe Spark Post