Em Ecossocial
O momento que vivemos exige questionar fundo dentro de nós mesmos o que realmente somos como povos e que natureza seremos neste século, sem temer em mostrar tudo que conseguimos ser como totalidade ou totalização nos últimos 521 anos de invasão, exploração, apropriação de terras, territórios e territorialidades dos povos originários sobre as quais se ergueu o colonialismo «civilizatório» que espoliou a África e a América.
Uma reflexão em confluência com ideias de Nego Bispo sobre a vida na caatinga piauiense, contra tudo que mata em possibilidades epistemológicas. É uma contribuição com o Chamado para uma Transição Ecossocial no Brasil, por uma transição na qual pude refletir com esse nosso intelectual geógrafo, o professor Carlos Walter Porto-Gonçalves – sobre o conceito de transição, no país que se vê por lentes embotadas pela gênese do colonialista. Uma contribuição sobre o que podemos sentir com os pés na terra, no território, na territorialidade e na população, nessa contemporaneidade que exige muito mais que mudança, que exige coragem de nos transformarmos!
Nesse campo faço o exercício de confluir a partir da observação do professor, sobre o uso do conceito de território de forma que o destitui da acepção tão cara para o conhecimento geográfico. Afirmando que o território não se trata de pedaço de chão, que o elemento chave do conceito de território são as relações de poder – no fundo, é sobre quem está controlando o pedaço de chão e sua territorialidade.
Aqui busco a memória epistemológica de quem sente o território na realidade populacional e na memória coletiva. Porque o processo carece de uma profundidade já sinalizada por militantes e intelectuais negros brasileiros, como o ex-deputado federal Luiz Alberto, fundador do Movimento Negro Unificado (MNU) e do Partido do Trabalhadores (PT) na cidade do Salvador (Bahia).
Dialogava com Luiz Alberto sobre a necessidade de se fundar uma nova democracia no país, capaz de alcançar a luta da população negra quilombola pela reivindicação da terra e do território. E com sapiência ele me alertava da dificuldade diante dos retrocessos, sobre os alicerces do regime que se estabeleceu como democracia vigente, pois uma nova democracia depende também de debater uma nova Constituição. Estava, diante de um militante das Assembleias Constituintes e mandatário nos marcos da Constituição de 1988, sendo desafiado a pensar nos limites da transição alcançada pelas gerações das lutas contra o estado ditatorial do século passado.
O que questionei a Luiz não veio só da observação do passado, mas, do olhar para o futuro em sua possibilidade de mudanças. No momento em que realizei minha pesquisa de mestrado em Geografia, perguntava por que estávamos, no século XXI, vivendo a mesma luta política do século XVI? O que estamos vivendo é a luta política e racial da população negra. Quando expressamos a palavra “quilombo”, estamos falando do movimento por território e territorialidade, vivo por mais de cinco séculos, pela sua grande marca o “Quilombo de Palmares”.
Para maior conhecimento sobre a importância do Quilombo de Palmares na história da geopolítica brasileira, não me ative diretamente ao que já foi publicado pelas humanidades e pela luta contra o capitalismo, mas ao que escreveram os racistas. E a obra do médico eugenista Nina Rodrigues é um mar de memória, no seu alerta sobre do perigo de Palmares nascer como civilização negra abaixo da linha do Equador. Diante, desse pensamento importa questionar as ideias que estruturam as leis publicadas em 1850 (Lei de Terras e a Lei Eusébio de Queiros) e posteriormente, em 1971, a Lei do Ventre Livre. Um conjunto de formas e estruturas racistas, normatizadoras do direito privado da terra, do controle de pessoas africanas em território nacional. Da mesma forma, a lei de alforria das crianças nascidas em terra imperial.
As leis normatizaram o genocídio da população negra em território e a política pública de imigração de povos brancos de origem caucasiana. Em pesquisa sistematizada pelo geógrafo Rafael Sanzio Anjos [1], entre 1871 e 1920, cerca 3.390 milhões de europeus ocidentais foram beneficiados pela política eugenista, para migrar em condições humanas (com trabalho e acesso à terra) ao Brasil. Quase o mesmo número dos 4 milhões de africanos de diversos povos traficados e escravizados entre 1535 e 1850 em condições não-humanas. Esse foi o grande projeto civilizatório dos trópicos, como bem registrou a geógrafa Lia Osório em artigo sobre as origens do pensamento geográfico brasileiro [2].
Um projeto eugenista francês da Escola da Broca, de 1860, assimilado aqui por Nina Rodrigues, diante da possibilidade de Palmares alcançar a essência da auto liberdade como a Nação Negra da América, como veio a se tornar depois a República do Haiti, pelos africanos e descendentes, que ao denunciar o Iluminismo e suas ideais de liberdade, fraternidade igualdade no sistema mundo estão secularmente sentenciados de morte. A insurgência dos haitianos resulta numa Nação violentada na escuridão do mundo. Todos são generosos com o pensamento francês libertário, referência de boa parte da ciência brasileira, principalmente da Geografia, mas, se mantêm dentro do acordo global de não mover a Nação Negra do exemplo dado pelo colonizador.
De conhecimento dessa escala, apresento algumas referências epistemológicas, como Clóvis Moura, esse intelectual piauiense que, em 1959, publicava a obra “Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas”, dois anos antes da publicação da segunda grande obra do pensador argelino Frantz Fanon, em 1961: “Os Condenados da Terra”. O silencio intelectual nacional sobre a obra de Moura é violento diante da grandeza dos seus mais de vinte livros publicados. Moura foi também um dos fundadores do MNU, nas escadarias do Teatro Municipal da cidade de São Paulo.
A invisibilização de Clóvis Moura é a negação das memórias territoriais negras na África e em diáspora que firmaram pensamentos de insurgência e descolonização, para uma perspectiva de nação que tenha na corporeidade negra a comunidade e o território como transição humanitária, já na segunda década do século passado.
Trago também ao diálogo Abdias Nascimento, que nas décadas de 1960 e 80 moveu as Artes Negras transatlânticas. Se buscarmos os marcos conceituais da Constituição Federal e tudo de grandeza com a política pública de ações afirmativas nesse milênio, será preciso voltar a Abdias, inclusive para não continuar no debate esvaziado sobre genocídio – já teorizado há 42 anos na obra “O Genocídio do Povo Negro Brasileiro”.
Toda essa construção questiona os mais de 132 anos de República sem entender que o Brasil se tornou um Estado Nacional com o dinheiro de banqueiros ingleses (traficantes de seres humanos nos Oceanos Atlântico, Índico e Pacífico). É continuar negando que essa República veio ao mundo para representar o que o professor Carlos Walter nos questionou, sobre a falta de radicalismo nacional. Respondendo: para o radicalismo teremos que colocar no centro a tragédia que nos forma com o povo do Atlântico Negro, conceitualmente ressignificado pela pensadora Beatriz Nascimento em ancestralidade diaspórica.
Teremos que aceitar quem somos e que estamos aqui por essa condição de violação de corpos, terras, territórios e territorialidades que atravessaram ou afundaram no transatlântico, aquilo que forma nossa ciência, aquilo que forma a geografia nas costas atlânticas, pacífica e do Índico do continente África.
Nossas dimensões de mundo, aqui representadas, não podem ser construídas pela negação do conhecimento que essa escala nos trouxe até aqui. Como explica, pela “amefricanidade” [3], a pensadora Lélia Gonzalez, no convite à unidade da resistência dos povos, a unidade que reconhece os povos e territórios em diferenças e diversidades nas Américas negras e indígenas, naquilo que será reconhecido como continente.
A construção de uma unidade pela resistência, pela diversidade, pela diferença não será bem sucedida com as bases intelectuais da assimilação. Que a gente consiga falar com essa essas dimensões para pensar o Estado no imaginário da cultura com o qual o intelectual Patrick Chamoiseau nos presenteou em movimentos na Martinica [4]. Questionando o alcance da independência ao pensar pela interdependência, não adianta uma independência que nos coloque sentados na mesma cadeira e debaixo da mesma bandeira de quem foi dependente. É preciso ter a interdependência para dialogar com quem vai construir uma nova transição. Não podemos ser independentes e nos mantermos em diálogo profundo com quem nos oprime.
Não podemos construir uma transição sem reconhecer e apresentar futuro para cerca de 3.000 comunidades quilombolas certificadas pelo Estado. Essas representam a realidade de uma sociedade que não se calou diante do genocídio que funda a nação simbólica encarnada no Estado Nacional. Uma luta fortalecida com as mulheres negras em 1998, com a realização do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, pela unidade da luta nas diferenças – em Valença, no Rio de Janeiro, que reuniu mulheres negras das cidades, dos povos de terreiro, das periferias, quilombolas, trabalhadoras domésticas, artistas e estudantes.
Uma luta memorizada na “Marcha Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver, Documento Analítico e Declaração”, de 2015, quando cerca de 50 mil mulheres negras marcharam na Esplanada dos Ministérios em Brasília, contra o racismo e o sexismo, e apresentaram carta à ex-presidenta Dilma Rousseff e ao Congresso Nacional, denunciando o projeto político do país que tinha em quatro anos assassinado cerca 60 mil jovens negros – uma política de genocídio, conforme relatório publicado naquele mesmo ano pela CPI do Senado Federal. Se incluirmos os assassinatos registrados como conflitos no campo pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) os números serão muito maiores.
Uma Transição Ecossocial não pode repetir o que o ambientalismo nacional fez até agora, ignorando esses marcos geopolíticos de defesa da soberania dos povos pela população negra. Esses marcos denunciaram a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, que reconhecia o Brasil como signatário sem questionar o massacre interno contra a vida população negra. Pela ação do movimento negro brasileiro na década de 1960 denunciou-se o Brasil e a própria Declaração conivente com o Estado racista.
Esses movimentos fortaleceram o tombamento da memória de Palmares, na Serra da Barriga, em Alagoas, em 1985, como Patrimônio Histórico Nacional. Isso representa um marco para história da geopolítica desse país, que se somou ao tombamento do Ilê Asé Nassô Oká (Terreiro da Casa Branca), no bairro do Engenho Velho, em Salvador. Uma cidade que em 2008, tinha mapeado 1.410 terreiros de candomblé, em trabalho realizado pelo Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO/UFBA) – um território onde se fala Banto, Yorubá, Jeje, Nagô, além do Português. Os terreiros de matriz africana e indígena são patrimônios culturais – territorialidades estimadas em quase vinte mil no território nacional.
Hoje estamos vivendo o pior momento da históriado século XXI, com a pandemia de Covid-19 e o racista que preside o Brasil. Ironicamente, em face à primeira Década Internacional dos Povos Afrodescendentes da ONU (2015-2024). O genocídio constitucional do povo negro brasileiro é aplicado conforme manual eugenista que há séculos massacra o povo haitiano.
Isso para provar que não se pode ignorar que nesse país se pensa como Nina Rodrigues. Seu pensamento forma os médicos e os juristas das maiores universidades nacionais, porque é preciso eliminar cotidianamente Palmares antes que renasça!
Uma transição, portanto, precisa lutar pelo censo demográfico contra a academia leniente, com a anulação de dados que vão revolucionar a demografia nacional, porque Palmares se revelará em população negra quilombola, como grupo populacional étnico e político em luta pela terra, pelo território e nas territorialidades.
Significa que à pergunta «por que é que a agenda do século XVI está no século XXI?» se responde com a luta ancestral dos que não aceitaram o reconhecimento de humanidade pela assimilação e lutam pela construção de um Estado com políticas, teorias, críticas e tecnológicas, fora da assimilação e por isso estão fora, porque não se marcha com quem nos nega.
Se é para ser Transição – será preciso pensar que “Faremos Palmares de Novo”.
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*Diosmar Santana Filho é Geógrafo, Doutorando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador Associado da Associação Brasileira de Pesquisadores (as) Negras(os) – ABPN. e-mail: [email protected]
Fontes:
[1] Quilombos. Tradição e cultura da resistência. São Paulo: Aori Comunicação, 2006.
[2] Origens do pensamento geográfico no Brasil: meio tropical, espaços vazios e a ideia de ordem (1870-1930). In.: CASTRO, Iná de Elias de. GOMES. Paulo Cesar da Costa. CORRÊA. Roberto Lobato. Geografia: Conceitos e Temas. 15ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 309-352.
[3] GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988b, p. 69-82.
[4] Luana Antunes Costa. “É PRECISO IMAGINAR”: ENTREVISTA A PATRICK CHAMOISEAU. Revista Brasileira do Caribe, São Luís – MA, Brasil, vol. XVI, nº 30. Jan-jun 2015, p. 207-219