Aquele mito chamado por Deus para destruir o Brasil comunista, que obviamente não existia, claudicou e voltou ao redil da velha política, faminta por cargos e poder
No El País
O presidente Jair Bolsonaro teve um momento de sinceridade e confessou que sem os réus do Congresso não poderia governar. Em uma entrevista à Rádio Arapuan FM da Paraíba, ele afirmou que é necessário conviver com eles: “Se eu afastar do meu convívio parlamentares que são réus, ou têm inquéritos, perco quase metade do Parlamento”.
Bolsonaro deve sentir que está perdendo apoio em diversos setores, começando pelas igrejas evangélicas, e que Lula aparece em todas as pesquisas como ganhador das eleições de 2022. Isso o levou a deixar de lado todas as suas promessas de restauração da política e a se entregar completamente ao coração do poder mais corrupto do Congresso, que por sua vez comemora o retorno do deputado do baixo clero ao seu rebanho.PUBLICIDADE
Sem partido próprio, algo inédito para um presidente da República, Bolsonaro anda implorando por quem o acolha em seu seio. E o curioso é que até agora nenhum partido correu para lhe oferecer abrigo. Temem que ele e seus filhos acabem querendo se apoderar do partido. Com a nomeação do cacique do PP, Ciro Nogueira, como ministro da Casa Civil, o cargo mais importante do Governo, Bolsonaro se casou com a parte do Congresso com maior poder.
Bolsonaro, que conhece muito bem o Congresso e seus pecados por ter peregrinado durante seus 30 anos como deputado por dez partidos do baixo clero, agora se entregou ao Centrão e terá de dividir o poder entre eles e os mais de 6.000 militares já estabelecidos no poder político. Isso será, segundo os especialistas em política, um ponto crucial e perigoso. Bolsonaro tomou a decisão de entregar o poder do Governo ao Congresso, e isso não deixará de ser em detrimento do Exército, que já governa e poderia se sentir passado para trás.
Por outro lado, o presidente, que vê seu apoio cair, precisa dos militares para tentar se reeleger. Como eles reagirão tendo agora de perder poder no Governo? Principalmente porque já está mais que demonstrado que os militares não estão dispostos a perder poder tão facilmente no mundo da política, ao qual foram levados pelo antigo capitão que eles mesmos tinham expulsado do Exército, aquele que lhes deu um poder que agora deverão dividir com o Congresso.
É difícil saber como Bolsonaro poderá conviver com essa ambiguidade. No momento, porém, o que menos lhe importa é o Governo, para o qual, como ficou claro, ele não estava preparado. Sua única obsessão é ganhar novamente as eleições e, principalmente, derrotar Lula. Todo o resto lhe importa menos, e para isso ele está disposto a deixar que os caciques do Congresso, até os mais corruptos, governem, desde que o ajudem a ser reeleito.PUBLICIDADE
Isso revela que aquele Bolsonaro das eleições, o mito chamado por Deus para destruir o Brasil comunista, que obviamente não existia, claudicou e voltou ao redil da velha política, faminta por cargos e poder.
A aposta de Bolsonaro, no entanto, é arriscada. Após sua conversão, será difícil convencer os milhões que votaram nele por suas promessas de trazer uma nova visão da política de que, agora, voltou a se deitar nos braços daquele Congresso que ele acusou, na campanha, de ser velho e corrupto.
As hipóteses levantadas são muitas. Há quem garanta que Bolsonaro não mudará e continuará com suas investidas contra as instituições porque o que ele busca é o poder absoluto, que não precise compartilhar com ninguém. Daí suas ameaças de — e seus flertes com — um golpe autoritário que possa permitir que ele governe fora das ataduras da democracia.
O que outros profetizam é que, com sua nova aposta de entregar o Governo ao Centrão, ou ele muda e trai suas promessas eleitorais ou será a velha política que acabará por abandoná-lo quando for interessante para ela. Eles querem o poder e isso basta, não querem ouvir falar de golpes nem de pureza política. Esse é o grande dilema de um Bolsonaro que acabará preso entre seus antigos sonhos golpistas ou voltará ao que sempre havia sido, um obscuro deputado que se distinguiu por sua incapacidade de estar ao lado de quem realmente mandava no Congresso, relegado ao velho baixo clero.
Há até quem tenha suposto que durante seus longos anos de deputado ele nunca apareceu envolvido em grandes escândalos de corrupção porque os grandes empresários nunca tiveram a intenção de corrompê-lo, já que sabiam que era só um obscuro deputado sem poder influir na aprovação de leis ou emendas importantes.
Por isso, teria tido que se conformar com a pequena corrupção das rachadinhas, que acabou ensinando a seus filhos. Agora que os grandes caciques que mandam no Congresso começam a se aproximar do presidente, ele se sente, de algum modo, adulado. É como ter passado da terceira para a primeira divisão.
Bolsonaro poderá continuar dizendo “aqui quem manda sou eu”, mas a verdade é que cada dia ele mandará menos, e não é impossível que até os militares acabem por abandoná-lo antes de se ver preteridos e enganados. Ou, o que é pior, ser vistos como participantes de casos de corrupção como o nebuloso mundo da compra de vacinas e a incapacidade de gestão no importante Ministério da Saúde durante o pico da pandemia.
As águas do Governo estão cada dia mais agitadas e confusas, e hoje ainda é impossível saber qual poderá ser o final da macabra aventura daquele que já é visto dentro e fora do país como o pior presidente desde o fim da ditadura e que flerta com os governos fascistas que começam a renascer na Europa.
O imponderável Bolsonaro continua sendo um enigma enredado em seus sonhos de poder ditatorial, e não é fácil adivinhar qual poderá ser seu final, que certamente não será glorioso.
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Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Imagem: Christopher Ulrich, O Tolo