O processo de formação de latifúndios e a transferência do patrimônio público para o privado. Entrevista especial com Rafael da Silva Rocha

Segundo o procurador da República no Amazonas, “desmatamento e invasão de terras públicas é coisa de gente grande, de pessoas que investem grandes somas de dinheiro nisso e esperam retorno financeiro, que se dá frente à posse e depois à propriedade da terra”

Por: Patricia Fachin, em IHU

A aprovação do Projeto de Lei – PL 2.633 na Câmara dos Deputados, que anistia a grilagem de terras no Brasil com a justificativa de fazer regularização fundiária, passa uma mensagem equivocada para quem está no campo, diz Rafael da Silva Rocha, em entrevista concedida via Zoom ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Temos hoje uma legislação que é clara acerca dessa matéria, mas carece de implementação: se existe uma ocupação anterior a 2008 e inferior a 2500 hectares, que são os limites temporais e espaciais, a pessoa pode pleitear uma regularização. Isso é o que determina a legislação. Agora, quando sucessivamente se altera o marco temporal e espacial e, consequentemente, se cria uma grande expectativa de que ocupações que hoje são irregulares poderão ser regularizadas no futuro, se passa uma mensagem de incentivo a novas invasões, ao mesmo tempo que assistimos a um verdadeiro desmonte da política ambiental e dos órgãos de fiscalização”, menciona.

De acordo com ele, a queda nas autuações, nos processos administrativos não concluídos e nas audiências de conciliação não realizadas na Amazônia demonstra que há “um conjunto de incentivos que estimulam novas invasões” de terras públicas na região. Além disso, pontua, nos últimos anos, têm crescido as ocupações em terras indígenas e unidades de conservação, com a intenção de regularização fundiária. “Antes, o alvo preferido eram as terras públicas sem destinação. Agora, inclusive terras indígenas e unidades de conservação são invadidas porque existe, sim, uma expectativa de regularização. (…) Se a pessoa não tiver a expectativa de regularização da terra, de que ela vai se apropriar daquela terra, ela não vai investir dinheiro nisso. Não é uma questão ideológica. As pessoas não colocam fogo na floresta porque odeiam as árvores, os animais; é porque enxergam uma possibilidade forte de retorno financeiro”, afirma.

A seguir, Rocha explica os vários movimentos heterogêneos envolvidos na grilagem de terras públicas, que está gerando um fenômeno de reconcentração de terras na Amazônia. “No Amazonas, que é meu estado, está acontecendo hoje o que aconteceu em outros estados há muito mais tempo. Por exemplo, no Mato Grosso não tem mais essa situação de expansão de área agrícola, com pessoas ocupando áreas para depois serem expulsas e observarmos esses fenômenos de reconcentração fundiária; isso já aconteceu. O que tem nesses estados é basicamente latifúndio. Aqui, estamos assistindo a um processo de formação desses latifúndios, da transferência do patrimônio público para o patrimônio privado de uma forma que não traz nenhuma vantagem para o Estado e para a sociedade, e de forma ilegal. Se o Estado estivesse vendendo essas terras, poderíamos discutir a questão ambiental, mas do ponto de vista estritamente fundiário, não faz sentido o Estado entregar essas terras de bandeja, sem nenhum tipo de planejamento”, observa.

Rafael da Silva Rocha é graduado e mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Atualmente, no Ministério Público Federal – MPF, exerce as funções de coordenador do GT Amazônia Legal, coordenador do projeto MPF na Comunidade e procurador regional eleitoral no Amazonas.

Confira a entrevista.

IHU – Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do Projeto de Lei – PL 2.633, que anistia a grilagem de terras no Brasil com a justificativa de fazer “regularização fundiária”. A partir da sua atuação no Ministério Público Federal – MPF, como o senhor analisa essa discussão e quais são os limites entre “regularização fundiária” e “grilagem”?

Rafael da Silva Rocha – Eu poderia fazer digressões e contextualizações, mas a pergunta é tão boa que me permite ir direto ao ponto para chegar no aspecto principal. Não é uma função dos membros do MP atuarem no processo legislativo, mas não posso deixar de expressar minha grande preocupação com essa discussão, especificamente com a mensagem que esses projetos de lei passam para quem está no campo. Temos hoje uma legislação que é clara acerca dessa matéria, mas carece de implementação: se existe uma ocupação anterior a 2008 e inferior a 2500 hectares, que são os limites temporais e espaciais, a pessoa pode pleitear uma regularização. Isso é o que determina a legislação. Agora, quando sucessivamente se altera o marco temporal e espacial e, consequentemente, se cria uma grande expectativa de que ocupações que hoje são irregulares poderão ser regularizadas no futuro, se passa uma mensagem de incentivo a novas invasões, ao mesmo tempo que assistimos a um verdadeiro desmonte da política ambiental e dos órgãos de fiscalização. Isso pode ser mensurado com números: menos autuações, menos processos administrativos concluídos, audiências de conciliação não realizadas, ou seja, é todo um conjunto de incentivos que estimulam novas invasões.

É claro que o desmatamento também é muito associado à exploração econômica de madeira, pecuária, soja, mas não podemos perder de vista que existe uma questão relacionada à posse e até mesmo à própria intenção dos agentes de ampliarem seu domínio sobre as terras públicas. Este, para mim, é o ponto principal.

Ainda não sei como a lei vai ser aprovada, e vou me aprofundar nela, se e quando for alterada, mas qualquer mudança que venha a ocorrer, reforçará esses movimentos que hoje são movimentos criminosos e que deixam de ser, porque quando se consegue uma anistia no plano administrativo, isso fatalmente se comunica com o plano criminal, porque o Direito é um só. Então, não se pode, num balcão do governo, pleitear o título da terra e, no outro balcão do Estado, ser processado criminalmente. É contraditório: ou a conduta é lícita ou a conduta é ilícita. O que os advogados de defesa vão sustentar, e até concordo, é que se existe hoje uma legislação que permite a regularização de ocupações inferiores a 2008 e com menos de 2500 hectares, não é possível processar criminalmente as pessoas que estão nessa situação, porque seria contraditório: de um lado, o sujeito tem o reconhecimento dessa ocupação, tem o título de regularização em mãos e, ao mesmo tempo, ele responde criminalmente? Não faz sentido. O Direito precisa se harmonizar, ser coerente. Isto é o que me preocupa mais: a expectativa gerada por causa das sucessivas alterações da lei. E quem garante que vai ser a última?

Se neste ano conseguíssemos estabilizar, provisoriamente, novos marcos, alterando, por exemplo, o marco de 2500 hectares para 5000 hectares, o sujeito vai ocupar dez mil hectares, porque ele vai acreditar que, em alguns anos, será beneficiado com uma nova anistia, ou seja, vai conseguir regularizar a ocupação de hoje.

IHU – Quem são os diferentes atores que ocupam as terras públicas na Amazônia e quais são os principais conflitos registrados por causa da disputa por terras?

Rafael da Silva Rocha – Eu não gosto de narrativas maniqueístas, de dizer que o agronegócio é malvado, quer destruir a Amazônia, ou do policial e do procurador heróis. Uma investigação que realizei no ano de 2017 trouxe dados surpreendentes: fiz uma análise das movimentações de gado na Amazônia e descobri que naquele ano, 92% dessas movimentações foram entre fazendas regulares. Isso me permite dizer que no Amazonas e na pecuária, o ilegal é exceção. Não estou dizendo que 92% das fazendas são regulares, mas 92% das movimentações foram entre fazendas regulares. Não quero tirar conclusões precipitadas, mas vejo que existem pecuaristas que têm fazendas consolidadas, que não precisam cometer desmatamento, porque isso pode gerar vários prejuízos para eles. Então, se observa que alguns pecuaristas não se interessam mais pelo desmatamento e querem fazer exploração econômica do seu imóvel, enquanto outros estão se dedicando a atividades ilegais, seja de extração ilegal de madeira, seja de pecuária. Aí, entra a figura do que eles chamam de “boi zelador”, uma pessoa que ainda não é um pecuarista consolidado – e pode ser que nunca seja –, mas é um grileiro, um invasor de terras públicas, que tenta regularizar ou dar uma aparência de regularidade às terras que ocupa. Ele cria loteamentos, vende para outras pessoas e continua tentando ocupar novas áreas para transferi-las do poder público para o setor privado. Não necessariamente o ciclo completo do desmatamento acontece através da mesma pessoa. Então, imagino que aquele valor de 8% da movimentação de gado é realizado por pessoas que estão entrando agora no setor, através de pessoas que ocuparam recentemente essas áreas e estão tentando abrir novas fronteiras de ocupação e de desmatamento na Amazônia.

Atores
Então, entre os atores, a primeira figura é a do pecuarista, que tem a sua área consolidada e não se interessa pelo desmatamento, ao menos, não dentro da sua fazenda porque isso vai trazer prejuízo. A segunda figura é o sujeito que não necessariamente vai se dedicar à exploração econômica, mas invade, desmata e se apropria da área para transferi-la para terceiros. Depois de invadir a área, ele até pode colocar gado lá, mas ele não está interessado em ser um pecuarista e também não é um sem-terra nem um pobre coitado – até porque é muito caro desmatar: é preciso contratar pessoas, máquinas, pagar combustível. Não podemos ter a ilusão de que os que desmatam são pessoas que não têm alternativa e, para não morrerem de fome, desmatam áreas públicas. Podemos falar isso das pessoas contratadas, dos peões que ficam ali derrubando as árvores, mas não dos mandantes. A terceira figura seriam as pessoas que acabam adquirindo essas áreas recém desmatadas. E pode ter ainda uma quarta figura, que é o fazendeiro que tem os seus imóveis, mas, como a ambição humana não tem limites, acaba adquirindo novas áreas. Ou seja, tem um conjunto de novos e velhos atores que estão na Amazônia e pode ter uma intersecção entre dois conjuntos, que são tanto pessoas que têm áreas novas quanto velhas. Grosso modo, essa é a dinâmica.

Apropriação de reservas legais
Tem uma outra dinâmica, a qual tenho ouvido com alguma frequência recentemente, que talvez permita ver alguns personagens novos. Vamos imaginar que existe o João, que diz ter confiado na promessa do governo federal, e veio para a Amazônia nos anos 1970, quando o governo incentivava o desmatamento. Se formos analisar, a terra dele está ok, ele consegue explorá-la economicamente de forma legal, mas está tudo certo em termos, porque quando ele vai fazer a inscrição para o Cadastro Ambiental Rural – CAR, ele precisa declarar uma reserva legal, que é uma área que ele não vai poder explorar. Como ele não vai explorar aquela área nem quer ocupá-la, e só quer zerar os passivos ambientais, ele faz uma autodeclaração, com um desenho no mapa, inserindo em sua terra uma área pública preservada. Só que aquela mata nunca foi dele e ele nunca fez um esforço para regularizá-la. Estou dando esse exemplo para ilustrar a situação, mas não dá para colocar todo mundo dentro da mesma caixinha.

Se não houvesse uma questão ambiental envolvida nesse processo, essas áreas públicas poderiam ser vendidas, mas ao invés de serem vendidas, são simplesmente ocupadas, e aí ocorre uma briga entre o proprietário consolidado – que não necessariamente é dono da área de reserva legal autodeclarada – e os invasores. É preciso investigar caso a caso para saber a mando de quem esses invasores estão atuando, e isso traz prejuízos para o sujeito que está consolidado na terra, porque quando a pessoa tem um passivo ambiental na sua propriedade, ela fica sujeita a todo tipo de sanções: administrativas, civis, penais e também comerciais.

O MP tem acordos com frigoríficos, os quais não podem comprar o gado criado em fazendas que possuem desmatamento ilegal recente. Então, o sujeito diz que não foi ele quem invadiu, mas a área invadida está dentro da área registrada por ele via autodeclaração. Ou seja, o sujeito quer o bônus de ter uma terra com determinado tamanho e com reserva legal, mas não quer o ônus de ter que regularizar plenamente aquela área.

Isso também tem a ver com o que eu disse no início: o sujeito vê que a lei está mudando a toda hora e então ele pensa em juntar um pessoal e invadir uma terra pública porque sabe que vai conseguir regularizá-la. Se fosse uma terra privada, aí teria o regime de uso civil, de usucapião e, nesse caso, não é possível ficar esperando a lei ser alterada. Portanto, o alvo mais favorável para sofrer esse tipo de alteração são as terras públicas, principalmente as não destinadas. Nessa confusão toda, ainda tem alguns poucos maus servidores que são cooptados e começam a trabalhar em favor dos criminosos, facilitando toda essa engrenagem de desmatamento, ocupação ilegal de terras públicas e posterior regularização.

IHU – A partir desses diferentes casos que você relata, é possível elencar fatores comuns que favorecem a grilagem na Amazônia?

Rafael da Silva Rocha – Você pergunta sobre um fator comum e eu só consigo pensar na expectativa de regularização. Porque pode ter dois movimentos. Um deles é o da extração ilegal de madeira, em que o proprietário tem um plano de manejo sustentável e uma licença para explorar a sua área e retirar a madeira, mas a ambição humana não tem limites. Então, o sujeito começa a retirar madeira de áreas vizinhas, como terras indígenas ou unidades de conservação e aí ele consegue “esquentar” aquela madeira com o plano de manejo. Mas não necessariamente isso tem relação com grilagem. Esse sujeito cria estradas clandestinas em terras indígenas, em unidades de conservação, e retira a madeira como se estivesse retirando tudo do plano de manejo, mas nunca o plano de manejo poderia abastecer o mercado da forma como consta na documentação. Só que não consigo enxergar um movimento de grilagem nisso. Trata-se de exploração econômica indevida pura e simples.

Mas quando há a expectativa de regularização, começa-se a enxergar vários movimentos heterogêneos, e pode até ter determinados movimentos sociais organizados trabalhando nisso – mas eu não vou fazer juízo de valor –, mas também pode ter pessoas em situação de vulnerabilidade, que estão ali a mando de alguém. Muitas vezes, elas são usadas num primeiro momento, até se conseguir uma regulamentação, e depois são expulsas mediante violência. Elas foram simplesmente usadas para se obter a regularização da terra e aí cria-se uma comoção e uma pressão social para que as pessoas possam regularizar aquela ocupação, mas depois elas recebem dinheiro para saírem da terra ou são expulsas do território. Em seguida, observa-se um fenômeno de reconcentração de área, o que confirma a minha tese de que desmatamento e invasão de terras públicas é coisa de gente grande, de pessoas que investem grandes somas de dinheiro nisso e esperam retorno financeiro, que se dá frente à posse e depois à propriedade da terra.

Invasão de áreas protegidas
Eu evito questões políticas, mas recentemente temos observado um movimento que é relativamente novo, que é o seguinte: a invasão de áreas protegidas. Antes, o alvo preferido eram as terras públicas sem destinação. Agora, inclusive terras indígenas e unidades de conservação são invadidas porque existe, sim, uma expectativa de regularização. Observamos isso em Rondônia, quando uma lei estadual reduziu limites de unidades de conservação – mais informações aqui. Para que se alteram os limites de uma unidade de conservação? Para facilitar a regularização de ocupações já existentes e até mesmo ocupações futuras. Na minha visão, claro que com as nuances de cada caso, tudo gira em torno disso, da expectativa de regularização. Então, bastaria uma declaração. Se o presidente da República se sentasse com o presidente da Câmara e com o do Senado e determinasse que a partir de agora a legislação é “x” e nunca mais o Brasil vai regularizar nenhuma ocupação fora dos limites legais, e se isso fosse levado a sério de fato, assistiríamos a uma queda vertiginosa da ocupação dessas áreas, porque as pessoas iriam se ocupar de outras atividades. Se a pessoa não tiver a expectativa de regularização fundiária, de que ela vai se apropriar daquela terra, ela não vai investir dinheiro nisso. Não é uma questão ideológica. As pessoas não colocam fogo na floresta porque odeiam as árvores, os animais; é porque enxergam uma possibilidade forte de retorno financeiro.

IHU – De outro lado, há uma demanda por regularização fundiária, de pequenos proprietários, na Amazônia hoje? E qual é o percentual dessa demanda?

Rafael da Silva Rocha – Pela legislação atual, o limite de regularização de terra é de 2500 hectares, que é, enfim, uma extensão territorial bastante considerável. Mas ocorrem várias outras situações. Por exemplo, para regularizar uma ocupação dentro de um assentamento, uma das propostas é subir o limite de quatro módulos rurais – que varia conforme a região, mas podemos trabalhar com o número de 100 hectares, então, estamos falando de uma área de 400 hectares dentro de um assentamento do Incra, que são locais destinados para a reforma agrária, mas onde se encontra de tudo, inclusive, latifúndios, áreas de pecuária e de monocultura, ou seja, atividades fora do propósito para o qual aquele assentamento foi criado.

De todo modo, apesar de existir essa proposta de subir de quatro para seis módulos rurais, eu confesso para você que nunca encontrei e não converso com produtores rurais que tenham essa demanda específica. Eles não dizem que quatro módulos é muito pouco e que eles têm cinco módulos, que estão um pouco acima do limite permitido pela legislação, e que se aumentassem os módulos, eles resolveriam a sua vida. Essa é uma demanda que eu não encontro. Pode ser que ela exista e eu esteja mal-informado. Da mesma forma, isso ocorre com o limite das terras públicas não destinadas de 2500 hectares. 2500 hectares já é uma área considerável, inclusive para exercer atividades que não têm o perfil de pequena e média agricultura.

Demandas
Bom, mas então, qual é a demanda deles? As demandas que os proprietários apresentam são de toda ordem, inclusive, demandas muito mais simples do que isso. Por exemplo, assentados rurais não conseguem escoar a sua produção porque a estrada do assentamento deles não é asfaltada. Eles plantam, mas não têm como retirar a produção. Então, nós começamos a ter um choque de realidade e a entender de fato o que se passa na vida dessas pessoas. Alguém poderia dizer que o país está em crise e não é possível asfaltar todos os assentamentos, mas quando se quer modificar a realidade com um projeto de lei, que parece ser uma solução barata, se observa também que não adianta simplesmente facilitar a regularização se não existem órgãos estruturados para atender essas pessoas. O que vemos hoje é pessoas que têm direito, pela legislação, mas não foram contempladas.

Na verdade, essas alterações na legislação, na minha opinião, só servem para continuar estimulando desmatamento e invasão. Tento me colocar no lugar do outro para entender o discurso, mas fico sem entender. As demandas que mais chegam para mim são de implementação da lei e de déficit de estruturação dos órgãos. Ninguém nunca me disse que acha que a lei tem que mudar porque a pessoa deve passar a ter direito. Ao contrário, as pessoas dizem que têm direito, mas não conseguem fazê-lo valer na prática. Recebo pessoas que dizem que precisam de um documento de aptidão para o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, para obter um financiamento, para conseguir comprar sementes, insumos e plantar, mas o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra é muito burocrático, não atende e as pessoas não conseguem ter o documento ao qual têm direito. Então, o sujeito é assentado, tem perfil de agricultura familiar e não consegue atendimento no Incra. Existem várias outras situações que a simples mudança da lei não vai resolver.

IHU – É possível estimar que percentual das terras públicas é ocupado por produtores agrícolas e que percentual é ocupado por grileiros que não querem produzir ou vivem da especulação imobiliária?

Rafael da Silva Rocha – Eu não tenho essa estimativa e quem deveria ter, que é o Incra, possivelmente não tem. Vou acrescentar um terceiro elemento na sua classificação, que causa muita preocupação. Pela legislação atual, a pessoa precisa ocupar o imóvel ou território por um certo tempo para que seja considerada uma ocupação consolidada e seja possível pleitear a regularização. Uma tendência que começamos a observar é a seguinte: o sujeito acessa o sistema eletrônico do Incra, apresenta uma pretensão de titulação sem ocupação nenhuma – não estou falando de uma ocupação atual, estou falando de uma ocupação provavelmente futura – e reivindica uma área de vegetação. Quando olhamos no mapa, trata-se de uma terra pública preservada. Parece que não faz nenhum sentido ele reivindicar aquela posse, mas o que está acontecendo? Provavelmente, ele já está planejando, num cenário mais favorável, trazer pessoas para aquela área, alegando depois que há ocupação na terra há tanto tempo.

O Incra tem muita dificuldade de ir a campo. Então, como vai diferenciar a pessoa que reivindicou a terra e a pessoa que está lá, de fato, ocupando a área e exercendo alguma atividade? Essa é uma situação muito preocupante e o Incra deveria priorizar essas situações, porque são situações de ilegalidade. Não tem nenhuma controvérsia; é só o servidor entrar no sistema, fazer a análise do processo, verificar que é uma pretensão de titulação sobre uma área de vegetação e indeferir.

O Incra deveria indeferir de plano para inibir esses movimentos. Mas o sujeito apresenta o protocolo do Incra, alguém diligente consulta o sistema e vê que o processo ainda está ativo, porque o Incra ainda não se posicionou, e permite que o sujeito possa lotear a terra. O sujeito alega que comprou o lote de alguém, apresenta um documento que não é falso, porque o processo está tramitando no Incra, para se passar como proprietário da área. Depois, ele faz um loteamento, as pessoas compram os lotes, aí quando se chega lá para expulsar a pessoa da área, existe um loteamento gigantesco, com 500 lotes, ocupados por 500 famílias, e aí não se tira mais as pessoas dali. Era exatamente isso que o sujeito queria. Ele já pegou o dinheiro, vendeu a terra a um preço barato e sumiu. Achamos que esse tipo de movimento é inofensivo, mas não é nem um pouco inofensivo.

IHU – Isso tem acontecido com frequência na Amazônia, a partir da legislação atual? Pode nos dar exemplos?

Rafael da Silva Rocha – Vou te contar da minha experiência. O MP tem um projeto chamado Amazônia Protege, que funciona assim: analisamos as imagens de satélite e conseguimos identificar os maiores desmatamentos de um determinado período. Por exemplo, os maiores desmatamentos no ano de 2020. A partir disso, precisamos processar alguém, que é o responsável pelo desmatamento. Começamos a consultar os sistemas públicos para ver quem registrou aquele imóvel em que tem desmatamento, se tem algum registro no CAR, no Incra, ou se alguém pretende se tornar dono daquela área etc. Aí, propomos as ações, as pessoas são citadas e aparecem para se defender.

Na defesa, observamos todo tipo de argumentação, mas o que é muito frequente é o sujeito dizer que a área não é mais dele, porque já vendeu a terra. Essas pessoas fazem contratos de gaveta e ficam tentando se eximir da responsabilidade, dizendo que não foram elas quem desmataram, então, não deveriam ter nenhuma responsabilidade, mas é claro que não concordamos com isso, por causa daquele raciocínio que falei antes, do ônus e do bônus. Se a pessoa teve o bônus de registrar uma área no sistema do Incra e depois ganhou dinheiro vendendo a terra, vai ter que responder pelo desmatamento que aconteceu.

Mas a situação não é tão simples assim. Existem várias outras situações. Por exemplo, o sujeito é “laranja” e aparece para dizer que não tem nada a ver com a terra, que é estudante universitário e que o pai dele ocupou uma área de 25 mil hectares, mas como o limite é de 2500, ele foi colocando o restante do território no nome de pessoas da família e o filho foi um deles. O sujeito acha que é só um “laranja”. Outra situação é quando o sujeito reivindica a área no sistema, mas não combina isso com os outros que efetivamente vão lá, ocupam, desmatam e começam a explorar economicamente a terra. Então, a primeira pessoa diz que não foi ela quem desmatou e, de fato, não foi, mas pode ser que o Incra ainda não tenha concluído a análise do processo dela e, em função disso, ela tem alguma relação com o imóvel, embora não tenha nenhuma relação com o desmatamento, que está relacionado a outra pessoa, que quer “passar a perna” nela e depois tentar algum tipo de regularização.

Claro que eu também não posso adotar um discurso reducionista: é possível, sim, que alguém ocupe uma área sem ninguém por trás, que quer ter um pedacinho de chão na Amazônia, para viver com a sua família e criar gado, mas isso é exceção, são casos de desmatamentos muito pequenos, pela questão do investimento que é necessário ser feito. Por isso, não consigo acreditar que seja um movimento de subsistência. Existe realmente uma articulação criminosa por trás do desmatamento e ocupação dessas áreas, porque é muito caro desmatar na Amazônia, especialmente em lugares que às vezes são de difícil acesso. Então, é difícil que alguém vá numa região super isolada, para fazer uma exploração econômica superficial; tem muita coisa por trás disso. As investigações que realizamos sempre confirmam isso. Por onde quer que iniciemos a investigação, seja por meio do Programa Amazônia Protege, ou do Programa Carne Legal, que são aqueles acordos com os frigoríficos, para monitorarem a origem do gado e não comprarem de áreas desmatadas, sempre acabamos esbarrando nessas questões. A grilagem é a origem de tudo, juntamente com a expectativa de regularização dessas terras.

IHU – A grilagem é maior na Amazônia do que em outras regiões do país?

Rafael da Silva Rocha – Vou arriscar um comentário para dizer o seguinte: a Amazônia está cronologicamente atrasada em relação a algumas regiões. No Amazonas, que é meu estado, está acontecendo hoje o que aconteceu em outros estados há muito mais tempo. Por exemplo, no Mato Grosso não tem mais essa situação de expansão de área agrícola, com pessoas ocupando áreas para depois serem expulsas e observarmos esses fenômenos de reconcentração fundiária; isso já aconteceu. O que tem nesses estados é basicamente latifúndio. Aqui, estamos assistindo a um processo de formação desses latifúndios, da transferência do patrimônio público para o patrimônio privado de uma forma que não traz nenhuma vantagem para o Estado e para a sociedade, e de forma ilegal. Se o Estado estivesse vendendo essas terras, poderíamos discutir a questão ambiental, mas do ponto de vista estritamente fundiário, não faz sentido o Estado entregar essas terras de bandeja, sem nenhum tipo de planejamento. Alguns discursos afirmam que é preciso ocupar a Amazônia para o estrangeiro não ocupá-la, ou seja, vamos destruir antes que alguém a destrua. Não faz sentido.

IHU – Alguns argumentos favoráveis aos projetos de lei de regularização fundiária apelam para a extensão de terras sem destinação no Brasil. Qual é a atual situação desse tipo de terras públicas na Amazônia? Na sua avaliação, a não destinação contribui para a grilagem?

Rafael da Silva Rocha – Realmente é ruim ter terras públicas não destinadas e acho que o Estado poderia destiná-las. Acontece que o Estado brasileiro faz movimentos e confere uma destinação, mas parece ser a pior destinação possível, não só porque isso não traz nenhum benefício à coletividade, mas também porque se expõem as pessoas a situações precárias, de violência, de morte. É preciso ter um plano e uma destinação, só que esse plano é o não plano, que entrega a terra de bandeja aos grileiros.

IHU – A partir da sua experiência prática com este tema, como deveria ser feita a discussão sobre a grilagem, regularização fundiária e a regulamentação ou não das terras públicas não destinadas?

Rafael da Silva Rocha – Posso até ser ingênuo nessa resposta e tentar colocar as coisas de forma muito simples, mas o que deveria acontecer é simplesmente o cumprimento da lei. Se existem critérios e requisitos para a regularização fundiária, eles deveriam ser seguidos, para depois analisarmos as demandas que continuam pendentes. Não basta só estruturar os órgãos para que eles cumpram a lei adequadamente, é preciso executar as políticas públicas da forma como elas foram planejadas.

Qual é o problema, por exemplo, quando se cria um assentamento? Se o Estado abandonar o assentamento, se não tem estrada, nem escola nem saúde para as pessoas que habitam esses locais, elas vão se retirar de lá e vão se envolver em ações ilegais. Isso gera uma demanda que não deveria existir, como a regularização de lotes com mais de quatro módulos fiscais nos assentamentos. Essa demanda de regularizar lotes de mais de quatro módulos fiscais dentro dos assentamentos só existe como um sintoma da ineficiência da política pública.

As coisas acontecem ao avesso: se cumpríssemos a lei e o Estado entregasse tudo que deveria entregar, chegaríamos num determinado patamar que aí sim poderíamos começar a atender outras demandas, como contemplar aqueles que não foram contemplados na regularização e que querem a regularização, mas não puderam ser atendidos pela legislação atual. Assim, criaríamos uma argumentação favorável para atualizar o marco legal que ficou defasado. Mas o que se observa é uma tentativa de “passar a boiada” cada vez mais, porque primeiro se regulariza para uns, depois para outros, sem nenhum tipo de critério. Parece que a intenção é não dizer não para ninguém. Todo mundo que aposta suas fichas nessa prática ilegal e criminosa de invadir terra pública vai ser contemplado. É como se fosse o consórcio da grilagem; é só esperar a sua vez que você será contemplado.

Aumento do desmatamento
Cada vez mais aumenta o desmatamento, inclusive em áreas protegidas, que antes não eram invadidas. Essas terras não eram invadidas não porque as pessoas as respeitavam ou porque elas eram muito bem protegidas, mas porque sabiam que não iriam conseguir regularizar uma ocupação dentro de uma unidade de conservação ou de terra indígena, pois era praticamente impossível reverter uma homologação de terra indígena. As pessoas sabiam que não adiantava entrar em conflito com os indígenas porque não conseguiriam a propriedade das terras e por isso essas terras não eram alvo preferencial. Até havia movimentos de invasão, mas não era no sentido de ocupação, mas, sim, de pesca ilegal, de derrubada de madeira, mas não acontecia o que aconteceu recentemente em Rondônia, de levarem pessoas para ocuparem as terras indígenas. Essas pessoas foram enganadas, disseram para elas que aquela não era mais uma terra indígena, e que elas poderiam ficar lá porque depois haveria a regularização fundiária. Elas foram retiradas por uma ação da Polícia Federal. Essa é uma tendência que começa a aparecer e precisamos ficar atentos.

IHU – Como vê a atuação do Estado em relação às terras indígenas? O que mais é preciso além da demarcação das terras?

Rafael da Silva Rocha – Eu não tenho atribuição para atuar em matéria indígena, mas coordeno o projeto MPF na Comunidade, que é um projeto itinerante do MPF no Amazonas. Nos deslocamos para o interior e temos contato com algumas comunidades indígenas. Só a demarcação não é suficiente; precisamos do comando e controle. Se o sujeito entra numa terra indígena para garimpo, por exemplo, é preciso ter uma ação repressiva do Estado para retirar as pessoas de lá. Se isso não acontecer, ele vai continuar agindo porque está ganhando dinheiro e não está sofrendo nenhum tipo de consequência negativa.

Além da demarcação, o Estado deveria fortalecer e reforçar o modo de vida dessas pessoas. Isso se faz por meio de política pública. É preciso criar incentivos para a permanência deles, para que tenham meios de continuar vivendo segundo sua cultura, e o Estado deve dar os meios para isso. A Constituição determina que é perfeitamente conciliável as pessoas viverem segundo sua cultura e poderem contar com os avanços civilizatórios em termos de saúde e educação, porque eles podem estudar e ter uma profissão tipicamente não indígena se quiserem. É até desejável que se tenha pluralidade nas profissões. Para isso, teria que se criar mais incentivos para as pessoas permanecerem e defenderem suas terras. Mas se o Estado simplesmente demarcar as terras e abandonar as pessoas em todos os demais sentidos, vamos continuar assistindo a uma população ser oprimida.

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