Intolerância religiosa contra rezadeiras Guarani Kaiowá

Rezadeiras são ameaçadas e insultadas por pessoas ligadas a igrejas evangélicas. A violência conta com apoio de uma espécie de milícia e do “capitão” que atua na aldeia Amambai

por Maiara Marinho, em Diplomatique

A casa de medicina tradicional da Kunhã Yvoty dona Lúcia, na aldeia Amambai, no Mato Grosso do Sul, é um local de reza e cura. Construída a partir de uma ação do movimento da Kunhangue Aty Guasu (Grande Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá), o espaço é uma demonstração de reconhecimento ao trabalho de parteira e rezadeira de dona Lúcia. As ñandesys (rezadeiras) cultivam as ervas em seu tekoha, território em que vivem, e na casa são feitas as danças de cura, o guaxiré. Além de preservar a tradição de seu povo, a reza de dona Lúcia tem denunciado o racismo institucional e a intolerância religiosa presente na região.

E é justamente por desempenhar esse papel em sua comunidade que Lúcia sofre perseguição de pessoas evangélicas, sobretudo, de seu cunhado Rosenildo Alves Franco, casado com a irmã de Lúcia. O cunhado vive com sua esposa em uma casa construída na aldeia, no mesmo terreno onde mora a rezadeira. A relação começou a ficar conturbada a partir de 2008, quando Lúcia decidiu parar de frequentar a igreja Missão Evangélica Presbiteriana Caiuá porque a igreja não aceitava as práticas tradicionais Kaiowá, como as rezas e os cantos. A agressões verbais e tentativas de impedir a atuação das ñandesys na aldeia se intensificaram desde então. Segundo relatos de indígenas da aldeia, a violência conta respaldo de uma espécie de milícia que atua como “guarda” dentro das aldeias. Segundo relato, essa “guarda” trabalha em conjunto com a figura do “capitão”[1], que anteriormente era Adair Sanches. O “capitão” é eleito pela comunidade a cada quatro anos por meio de voto impresso e é mantido por doações dos moradores da aldeia.

No dia 8 de agosto de 2021, novos ataques foram feitos por integrantes da milícia e lideranças evangélicas da comunidade, que acusaram as rezadeiras de bruxaria e feitiçaria. No momento das ameaças, Lúcia estava cantando, fazendo sua reza. Então, o atual “capitão” João Gauto e Rosenildo a intimidaram afirmando que logo retornariam com mais pessoas para fazê-la parar sua reza. Assustada, ela pediu ajuda pelo whatsapp para algumas pessoas de dentro e de fora da aldeia e com isso mobilizou pessoas suficientes para evitar alguma situação mais grave. No entanto, a ameaça ainda paira na aldeia.

O racismo institucional e os generais da Sesai

O conflito causado pela intolerância religiosa na aldeia Amambai gerou uma série de desdobramentos para trabalhadores e trabalhadoras da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Desde fevereiro deste ano, a aldeia não recebe atendimento de servidores da área da saúde, entre eles, pediatras, enfermeiras/os e psicólogas/os. A pedido do “capitão” da aldeia, uma funcionária que atuava com as ñandesys foi exonerada pela Sesai, houve um desmonte de toda a equipe e cerca de 16 profissionais foram demitidos sem explicações.

Antes da demissão coletiva sem justa causa dos servidores, que atuavam na área da saúde indígena em Dourados e em outros municípios da região, os cargos da Sesai passaram a ser ocupados por generais que iniciaram um processo de perseguição e de assédio contra os funcionários. Os relatos ouvidos para a produção dessa matéria são de que polo da Sesai no município protege os agressores das rezadeiras com repreensões aos e às servidoras que buscaram auxiliá-las, a partir da Lei Maria da Penha, quando souberam das ameaças.

Após a demissão dos funcionários, os indígenas mobilizaram um ato para pedir a demissão do coronel que era coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Mato Grosso do Sul, que atende outros municípios da região, entre eles Amambai. Joe Saccenti Júnior foi nomeado pelo ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e exonerado pelo chefe de gabinete do atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em maio deste ano, acusado de perseguição política aos servidores e servidoras e por desvio de vacinas para Covid-19, segundo informações do site De Olho nos Ruralistas.

O advogado Marco Henrique orientou alguns desses trabalhadores demitidos a protocolar representação no Ministério Público do Trabalho (MPT) denunciando a situação. O MPT alegou que, por se tratar de casos individuais, não eram competência do órgão e por isso o processo foi arquivado. “Eu discordo dessa avaliação do MPT, até porque na representação fica nítido que se trata de perseguição política sistemática”, afirma Marco. O caso também foi apresentado à Defensoria Pública da União e à Defensoria Pública do Mato Grosso do Sul, mas não tiveram retorno. Segundo o advogado, trata-se de uma questão mais política do que jurídica em relação à luta indígena e à atuação da Funai.

No dia 17 de dezembro de 2020, o Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul, ajuizou uma Ação Civil Pública para apurar possíveis demissões arbitrárias, bem como suspeitas de assédio moral. O processo segue em tramitação.

As ameaças contra a rezadeira Lúcia são tratadas como um caso de parentela devido ao fato dela ser cunhada de Rosenildo. Além da ação judicial em curso a pedido da ñandesy de reintegração de posse, para que o cunhado saia do terreno. De acordo com o Defensor Público do Estado de Mato Grosso do Sul, Leonardo Ferreira Mendes, responsável pelo caso de parentela, “existe uma tentativa de alheamento das instituições de Estado naquilo que não gera maiores repercussões na mídia. É comum ouvir frases como ‘eles devem se resolver entre si’, ou algo do gênero. Na verdade, o Estado se ausentou das aldeias e empregou como fundamento para isso algo que deveria ser utilizado em prol dos indígenas, que é o respeito às práticas culturais”. Sendo assim, “com essa ausência estatal, a situação de vulnerabilidade e de violência dentro das aldeias indígenas tem se aprofundado. O mesmo ocorre com as mulheres rezadeiras, vez que além da vulnerabilidade por conta da etnia e da cultura, se veem em situação ainda pior por conta do gênero e da religiosidade”, afirma o defensor.

Perseguição religiosa às ñandesys

Informações do laudo antropológico, feito pelo Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial e Étnica, da Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso do Sul, revelam que há mais de 60 igrejas na reserva de Amambai, em sua maioria pentecostais. Entre as décadas de 1970 e 1980, muitas famílias se converteram ao pentecostalismo e, com isso, passaram a ter uma postura diferente dos indígenas não convertidos. O laudo foi realizado a partir de uma série de entrevistas com as pessoas envolvidas no caso.

A disputa territorial foi convertida em “briga de família”, mas na verdade trata-se, desde sua origem, de uma ação de intolerância religiosa e de tentativa de apagamento da cultura das ñandesys.

Em janeiro deste ano, a Kunhangue Aty Guasu escreveu um documento para o MPF de Ponta Porã e de Dourados, para a DPE/MS e a DPU. Nele, as mulheres indígenas denunciam os ataques às ñandesys. Segundo o documento, “perseguições, torturas, espancamentos, dentre tantas violências contra as anciãs ñandesys praticadas por homens vestidos de ‘crentes’ e outros líderes ligados à capitania das comunidades Kaiowá e Guarani. Esses homens, em sua maioria, fazem parte da doutrina da igreja pentecostal Deus é Amor e pregam discursos coloniais de dominação do corpo da mulher, silenciando e violentando em nome da igreja”.

A igreja pentecostal Deus é Amor, citada pela carta da mulheres Guarani, foi fundada em 1962 e tem mais de 11 mil igrejas no Brasil e em cerca de 136 países. Ainda segundo o documento da Assembleia de Mulheres Guarani e Kaiowá, “nos processos de ‘condenação’ pelos pentecostais, as casas das rezadeiras são queimadas, elas são expulsas das comunidades e carregam consigo traumas de violência psicológica brutal, temendo serem queimadas vivas, enforcadas e mortas. São insultadas e xingadas de bruxas e de feiticeiras”.

Lei Maria da Penha e a realidade das mulheres indígenas

As mulheres Guarani e Kaiowá criticam a aplicação da Lei Maria da Penha para a realidade das mulheres indígenas. Quando uma indígena sofre ameaças ou agressões, a ida até a delegacia não lhes garante amparo, visto que não há intérpretes para suas línguas nestes locais. Além disso, é bastante comum que os policiais digam que situações como essas são de competência da Funai, ou então que elas devem procurar a liderança indígena da aldeia.

Segundo o laudo antropológico da DPE/MS, em Amambai, em um intervalo de sete meses, foram requeridas 102 medidas protetivas, sendo 18 em casos envolvendo mulheres indígenas. “De acordo com descrições de fatos ocorridos dentro da aldeia Amambai, a figura do capitão, muitas vezes dificulta o acesso das mulheres indígenas à Lei Maria da Penha”. Quando enfrentam o capitão e fazem o boletim de ocorrência, a liderança não permite que policiais entrem na aldeia.

O Ministério Público Estadual e a Defensoria Pública do Mato Grosso do Sul tentaram fazer um acordo amigável entre Lúcia e Rosenildo a fim de resolver pelo menos a disputa do lote. No entanto, o cunhado não aceitou. Hoje, as rezadeiras Guarani e Kaiowá da reserva de Amambai sentem-se constantemente ameaçadas por cultivarem a história de seu povo.

Maiara Marinho, jornalista e mestra em Comunicação e Cultura (UFRJ).

[1] Capitão tem sua origem na política de intervenção estatal nas áreas reservadas pelo Serviço de Proteção ao Índio. Mas, foi durante o período da ditadura civil-militar que o capitão passou a ser temido dentro das reservas. O posto era ocupado por nomeação pelo órgão indigenista oficial e assim o foi até 2008, quando a Funai emitiu portaria extinguindo o sistema de capitanias indígenas.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Zelik Trajber.

Foto: Homens e mulheres fazem resistência aos ataques das lideranças evangélicas na aldeia de Amambai/MS.

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