Pedro Calvi / CLP
Em julho de 1979 a cantora Elis Regina lançou o disco “Essa Mulher”. Um dos maiores sucessos do long play foi a música “O Bêbado e o equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc. A letra virou um hino do momento que o país vivia. Tempo de anistia no Brasil.
No dia 28 do mês seguinte, o general e presidente da República João Batista Figueiredo promulgava a Lei 6.683, a Lei da Anistia. Cerca de sete mil pessoas viviam exiladas fora do país.
Poucos dias depois começavam a chegar os exilados políticos. Entre eles, Fernando Gabeira, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Márcio Moreira Alves e Luiz Carlos Prestes. No total, foram beneficiadas pela Lei cerca de 2.500 pessoas, das quais 700 condenadas por participarem de ações armadas.
Nesta segunda (30/8), a Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados (CLP) promoveu duas audiências públicas para marcar os 42 anos da Lei da Anistia. Os encontros foram propostos pelos deputados Luiza Erundina (PSOL/SP) e Leonardo Monteiro (PT/ MG).
Luiza Erundina destaca que entidades e movimentos sociais até hoje lutam para mudar na Lei a “interpretação incorreta, do ponto de vista jurídico e da justiça de transição, que mantém vítimas de torturas, assassinatos e desaparecimentos, junto com quem cometeu esses crimes e seguem impunes”.
Ao mesmo tempo que permitiu a volta de militantes exilados, a Lei concedeu também uma “autoanistia” aos agentes do Estado responsáveis pela repressão, torturas e assassinatos após o golpe de 1964.
“Passados 42 anos, o Brasil se vê novamente sob um governo que exalta o autoritarismo. Consideramos que essa lei foi um acordo de conciliação e colocou a história de resistência para embaixo do tapete”, coloca o presidente da CLP, deputado Waldenor Pereira (PT/BA).
Gianni Tognoni, da Fundação Lelio e Lisli Basso (Roma), também lembra a impunidade e afirma que a lei diz respeito à luta de vários países na busca pela democracia.
“Temos que manter uma memória coletiva, global. Os povos não devem olhar outros povos como algo em separado. Fazer uma reflexão sobre o que aconteceu há 42 anos é fazer uma reflexão sobre o que acontece hoje em vários lugares do mundo, como no Brasil, com a repetição de atos antidemocráticos. Isso acontece por causa da impunidade”, afirma o italiano.
Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados
“Fui prisioneira política e minha família presa e torturada. Fui anistiada porque era da imprensa e minha irmã, que estava na guerrilha do Araguaia, não. Então, a anistia não foi como queríamos, ampla, imparcial e irrestrita. Foi parcial e restrita”, conta Amelinha Teles, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Amelinha segue e diz que “a condenação dos torturadores quando acontece, é muito lenta e não podemos achar que eles são heróis nacionais, como acontece agora. Continuamos perguntando onde estão nossos desaparecidos políticos? A Lei da Anistia teve uma interpretação equivocada pelo STF e maldosa pelo judiciário. Não há democracia com corpos insepultos”.
O irmão de Rosalina Santa Cruz, assistente social, Fernando, tinha 26 anos e um filho quando foi preso e desapareceu.
“Com a anistia tínhamos a esperança de encontrar o corpo. Porém, na Lei não havia uma palavra sobre mortos e desaparecidos. Não havia indícios, como não tem até hoje, dos seis campos de extermínios. Através do depoimento de um militar, soubemos que o corpo do meu irmão foi incinerado na Usina de Carapibús, no forno que incinerou vários presos políticos”, conta Rosalina.
Ela pergunta “o que esperar de um país que não passou a limpo até hoje os crimes de lesa humanidade praticados durante a ditadura civil e militar? O Brasil é responsável pelo que passamos agora, um presidente que faz elogios a um torturador e diz que ‘se matou pouco na ditadura e que é para não comprar feijão e sim fuzil’. Ou seja, que país é esse, que há 42 anos pouco fez para que a verdade venha à luz”.
A Lei de Anistia previa o fornecimento de um atestado de “paradeiro ignorado” ou de “morte presumida” aos “desaparecidos” políticos. Foi o que Rosalina conseguiu sobre o irmão Fernando, acrescido de “morte violenta”.
Hoje, é o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados. De acordo com dados da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, pelo menos 50 mil pessoas foram presas nos primeiros meses da ditadura militar e cerca de 20 mil brasileiros passaram por sessões de tortura.
Um levantamento feito pela Comissão Nacional da Verdade, aponta que 191 brasileiros que resistiram à ditadura foram mortos, 210 estão até hoje desaparecidos.
Os agentes dos órgãos de repressão que foram até agora identificados, responsáveis pelas torturas e assassinatos, são 337.
Lúcia Guerra, do Memorial da Democracia da Paraíba, apresentou o livro “40 anos da Lei da Anistia no Brasil”. “São 24 artigos ressaltando o compromisso das universidades e da sociedade civil em manter viva essa memória”.
Reparações
Cerca de 16 mil brasileiros recebem algum tipo de reparação através da Lei da Anistia. Eles são pagos a pessoas que sofreram perseguição política, banimento, tortura, por exemplo. Os pedidos são julgados pela Comissão de Anistia do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
“Hoje os anistiados enfrentam novos desafios e dificuldades com os retrocessos impostos pelo governo empossado em 2019. Devemos convocar o responsável pelos recursos para concessões no Ministério da Economia para explicar a situação orçamentária para esse benefício”, afirma o deputado Leonardo Monteiro (PT/MG).
“Muito falta para comemorar. Tínhamos 36 mil processos a serem julgados para concessão de benefícios na Comissão de Anistia. Agora dizem que são faltam 2 mil. Não julgam e quando fazem isso, indeferem. Estamos numa guerra interna, da troca do feijão pelo fuzil”, ressalta Luciano Campos, da Associação Brasileira de Anistiados Políticos da Petrobrás e demais Empresas Estatais.
Getúlio Antônio Guedes Souza, da Associação Democrática dos Metalúrgicos Aposentados e Pensionistas de São José dos Campos (SP), conta que “participo de 90% dos julgamentos na atual Comissão da Anistia, que tem 5 militares graduados e julgamentos ainda usam o termo terrorista para despachar os processos. Não temos nada a comemorar neste aniversario da Lei da Anistia”.
“Foram muitos mortos, torturados, famílias destruídas e até hoje buscamos do Estado brasileiro o reconhecimento do papel que ele exerceu no golpe de 1964 e depois. Fomos tratados como terroristas e assaltantes de banco e hoje o chefe da nação faz campanha na mídia para que o povo compre fuzil. A vida para esse governo a vida não tem nenhum valor,” lamenta Edson Cunha, da Associação dos Trabalhadores Anistiados Autônomos, Liberais, Aposentados e Pensionistas de Minas Gerais.
João Paulo de Oliveira, da Associação dos Metalúrgicos Anistiados e Anistiandos do ABC lembra que “representamos os que foram mortos, torturados e perseguidos. Os depoimentos que vimos aqui mostram que os objetivos da Lei até hoje não se concretizaram e pior, sofre retrocessos que atingem direitos adquiridos. O processo de justiça de transição até hoje não aconteceu e o orçamento para as reparações foi congelado. De 2019 até hoje, 98, 8% dos processos para concessão de reparações foram indeferidos”.
Também participaram Vera Vital Brasil, anistiada política; José Wilson da Silva, da Associação de Defesa dos Direitos e Pró-anistia Ampla dos Atingidos por Atos Institucionais; Cícero Barbosa, ex-metalúrgico em Ipatinga (MG) e Ademir Loureiro, da Associação Nacional dos Trabalhadores da Empresa de Correios e Telégrafos. Além dos deputados Vicentinho (PT/SP) e Erika Kokay (PT/DF).
As íntegras das audiências públicas estão disponíveis, em áudio e vídeo, na página da CLP no site da Câmara.
“…meu Brasil, que sonha com a volta do irmão do Henfil, com tanta gente que partiu num rabo-de-foguete…”