Apesar do 7 de setembro, “magistratura terá como norte a independência”, diz juíza Karen Luise

Juíza ainda fala sobre prisões injustas, em sua maioria (80%) de negros e o altíssimo número de presos provisórios

por José Eduardo Bernardes, em Brasil de Fato

Os atos antidemocráticos do último dia 7 de setembro, puxados pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido) ficaram marcados por críticas ao STF (Supremo Tribunal Federal), principalmente ao ministro Alexandre de Moraes. A Corte reagiu e manteve as prisões e pedidos de busca e apreensão de financiadores dos atos. Para a juíza Karen Luise, da 1ª Vara do Júri, de Porto Alegre, a independência seguirá como um “norte e referência da magistratura”. 

“Eu enxergo os ministros da Suprema Corte como todos os magistrados deste país e como enxergo a mim mesma. Embora esses atos, embora a indignação, eu acho que uma das coisas que forja o magistrado é a questão da independência. Eu não acredito que isso vai interferir na maneira como nós decidimos”, diz. 

“A gente decide para garantir a democracia, a gente decide para entregar justiça a todas as pessoas e eu acho que a gente decide para garantir a nossa Constituição”, complementa Luise. 

No Rio Grande do Sul, Luise, que atua há 22 anos como magistrada, é uma das únicas mulheres negras do poder judiciário. Ligada a organizações de direitos humanos e de igualdade racial dentro do sistema, a juíza lembra que nenhuma mulher negra ocupou uma cadeira da Suprema Corte – entre homens, foram apenas três: Joaquim Barbosa, em 2003, Hermenegildo de Barros, em 1919 e Pedro Lessa, em 1907.

“O processo de seleção para a Corte faz com que pessoas brancas cheguem lá. Ele é um processo, que em tese, abriria o acesso a pessoas negras. O que acontece é que pessoas negras não são pensadas como possíveis representantes da sociedade, dos juristas brasileiros para estarem ali”, diz. 

Segundo Luise, a política de cotas na magistratura, que garante 20% de vagas para pessoas negras nos concursos públicos, sequer está sendo preenchida em sua totalidade.

“Existe uma cadeia, uma sucessão de fatores, que dificultam o acesso. Primeiro a formação, que vem deficitária desde o ensino básico, até a dificuldade de se parar no tempo e no espaço para se preparar para um concurso público. Um homem negro e uma mulher negra não conseguem parar cinco, seis anos da sua vida, sem trabalhar, para poderem se dedicar aos estudos para o ingresso”.

Na conversa para o BDF Entrevista desta semana, a juíza também fala sobre as prisões injustas de pessoas, em sua maioria (80%) negras, o altíssimo número de presos provisórios no sistema e sobre como a sua trajetória influencia nos julgamentos que conduz em sua jurisdição:

“Todas essas questões com as quais a gente tem contato e que a gente discute, vão interferir nas nossas vidas. A gente sabe que um juiz é formado, forjado não apenas por aquilo que ele aprende nos bancos da universidade, mas sim pelas suas experiências, pelos contatos que ele mantém e a maneira como ele viveu, como ele vive no mundo”. 

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Há um número imenso de presos injustamente e 80% deles são negros. Qual o poder do juiz nesses casos? Os magistrados e magistradas são reféns das provas apresentadas pelo Ministério Público, das investigações policiais? Por que essas injustiças seguem acontecendo? 

Karen Luise: Eu tenho certeza absoluta que o Poder Judiciário não é refém das provas e das investigações que são realizadas pela polícia e pela forma como são apresentados esses fatos. No nosso julgamento, nós atuamos desde o momento em que a produção de provas cautelares são produzidas, mas a gente percebe que existe uma sociedade racista. 

Nós somos frutos de uma colonização, uma sociedade escravocrata e que caminhou sempre colocando em posições de subordinação, subalternidade, as pessoas negras, e estabeleceu uma relação com essas pessoas de muita violência, violência que se perpetua até hoje.

Quando as provas são colhidas e quando os fatos acontecem, o que a gente percebe é que existe sim um perfilamento racial. A gente tem hoje um número maior de presos segregados e cumprindo pena, ou presos provisoriamente, em razão de toda uma estrutura social que se constitui, que se encaminha para que pessoas negras permaneçam nesse lugar que foi e é projetado para elas. 

É muito difícil para nós, dentro do Poder Judiciário, no exercício da jurisdição, estar à frente desses processos, com todas essas peculiaridades. O que acontece hoje é que a gente tem uma consciência racial diferenciada acerca dos fatos e nós começamos a fazer julgamentos a partir disso, estamos nos forjando nesse sentido, para fazer julgamentos também com essa perspectiva racial.

Estamos tentando compreender o perfilamento que existe no trabalho das polícias, o perfilamento que existe na nossa sociedade. Mas eu não posso dizer que o judiciário seja refém disso, muito pelo contrário, o judiciário pode ser a ferramenta que vai nos libertar, que vai romper com essas correntes que ainda aprisionam pessoas negras nesses lugares sociais. 

Mas é preciso que a gente trabalhe muito, que a gente caminhe muito, que a gente tenha uma consciência racial e que nós compreendamos o nosso mundo como racializado, a nossa sociedade como racializada, para poder produzir o direito, fazer a jurisdição com essa perspectiva, e a importância de os juízes também se adaptarem a esse novo mundo. 

Segundo os dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), nós temos 682 mil pessoas presas. Destas, 40% são presos e presas provisórias. Essa não é apenas uma questão de superlotação penitenciária, mas de racismo estrutural. Há medidas concretas no judiciário para reduzir o número de presos provisórios no Brasil? 

São medidas muito difíceis, mas acho que a gente precisa enfrentá-las. A reforma que houve no Código de Processo Penal tem uma previsão que o juiz já podia fazer isso, mas agora ficou mais evidente, com o artigo 319, no qual é possível a imposição de medidas cautelares diversas da prisão. 
A gente percebe que muitas vezes existem pessoas presas por delitos que não são considerados de menor potencial ofensivo, mas esse indivíduo, por si só, não apresenta um risco à sociedade que imponha a ele uma segregação. 

É possível, antes disso, a imposição de medidas cautelares diversas à prisão e também  dar maior celeridade aos julgamentos. Eu acho que isso é uma questão muito importante, a gente poder pensar que esses processos devem ser julgados com a rapidez que é necessária.

Em tempos de pandemia, a gente tá vivendo uma situação que asseverou ainda mais essas condições, de presos provisórios da nossa sociedade. Nós passamos, durante muito tempo, com processos paralisados, com muita dificuldade de levar a termos julgamentos, e estabelecermos o sistema de videoconferências. Mas isso vai ser ainda uma realidade muito difícil. 

Penso que existem dois caminhos: se recolher, se segregar quem realmente apresenta um risco à sociedade; e pequenos furtos, crimes cometidos sem violência, não existe uma necessidade de segregação cautelar. Por outro lado, dar ao processo a sua duração razoável com o julgamento que é que é necessário. 

No caso da minha vara, a Vara de Júri, nós não temos outra alternativa senão fazer um grande esforço coletivo para que muitos juízes instruam esses processos, coloquem esses julgamentos do Tribunal do Júri em pauta. Eu tenho uma pauta de julgamentos que passa todo o ano de 2022. 

Eu faço júri duas vezes por semana, faço audiência mais dois dias por semana semana, então eu estou em sala de audiência durante a maior parte do meu tempo enquanto magistrada. A gente precisa ter um olhar para jurisdição criminal que dê conta de toda essa demanda, de crimes e de violência que existe na nossa sociedade.

Nós temos quatro varas de júri em Porto Alegre, para dar um exemplo, mas talvez nós tivéssemos que ter um número muito maior de juízes, porque o volume de processos que ingressam, nós não temos magistrados que possam fazer frente a essa demanda toda. É pensar como o Poder Judiciário e com que prioridade o Poder Judiciário enxerga esses processos, esses fatos sociais acima de tudo e qual a resposta que ele quer dar.

Eu costumo dizer no final dos meus júris que a sociedade quer o julgamento dos processos, principalmente do júri. Claro que existe um valor inserido nisso, mas a sociedade quer uma resposta de condenação, de absolvição, ela quer o resultado. E a gente, muitas vezes, erra por não entregar esse resultado no tempo correto.

Às vezes ele chega muito depois e ele já não tem a relevância social que teria lá naquele momento ou naqueles momentos próximos de quando o fato ocorreu. Então, acho que são vários caminhos. 

Queria fazer outra pergunta estrutural do sistema judiciário. Nós tivemos, em toda a história da Suprema Corte no Brasil, apenas três juízes negros, todos homens: Joaquim Barbosa indicado em 2003, Hermenegildo de Barros, em 1919 e Pedro Lessa, em 1907. A trilha para que negros e negras cheguem a esse espaço parece muito longa mas seria possível encurtá-la de alguma maneira mudando, por exemplo, o processo de seleção para Corte?

Bom, por óbvio existem muitas maneiras, mas eu penso o seguinte: em primeiro lugar, o processo de seleção para a Corte faz com que pessoas brancas cheguem lá. Ele é um processo, que em tese, abriria o acesso a pessoas negras. O que acontece é que pessoas negras não são pensadas como possíveis representantes da sociedade, dos juristas brasileiros para estarem ali. 

Quando tu dizes que foram só três homens, o que chama muito à atenção, é a questão de nós não termos mulheres negras ainda ocupando esse espaço e eu gostaria muito que uma mulher negra pudesse fazer a justiça no lugar mais alto do Poder Judiciário.

Existe também, nos tribunais, uma dificuldade de acesso das pessoas negras pela própria carreira, eu acho que é isso a gente tem que pensar também como um fator relevante. A gente tem a política de cotas, que garante 20% de vagas para pessoas negras nos concursos públicos, contudo, via de regra, quando se conclui o processo seletivo, essas vagas não foram totalmente preenchidas.

Existe um estudo do Conselho Nacional de Justiça sobre o tema. Ele aponta para conseguirmos chegar aos 20% que estão projetados na resolução 203, nós precisamos caminhar até o ano de 2049, vejam bem. E é importante que se aponte um outro dado, que hoje nós temos somente 18%. Então, nós vamos precisar de quase 30 anos para que mais 2% de pessoas negras ingressem. 

É uma cadeia, uma sucessão de fatores, que dificultam o acesso. Primeiro a formação, que vem deficitária desde o ensino básico, até a dificuldade de se parar no tempo e no espaço para se preparar para um concurso público. Um homem negro e uma mulher negra não conseguem parar cinco, seis anos da sua vida, sem trabalhar, para poderem se dedicar aos estudos para o ingresso.

Tecnicamente também temos uma possibilidade que nós, no nosso grupo de trabalho sobre igualdade racial no Conselho Nacional de Justiça sugerimos, que seria uma alteração da resolução 75 do Conselho Nacional de Justiça, que diz respeito aos concursos públicos e diz respeito às vagas reservadas para negras e negros. A ideia é que, no processo seletivo, fossem aprovados para segunda fase todos aqueles que atingirem a nota mínima.

Porque, em alguns lugares do país, isso não ocorre. Quando se chega lá no final do concurso, embora muitas pessoas negras tenham se inscrito, nós não conseguimos preencher todas as vagas. Por isso, a alteração da resolução 75 seria importante.

Em relação às cortes superiores, eu acho que existe aí toda uma questão política também, que a gente não pode deixar de reconhecer. Eu acho que há um trabalho da sociedade, no sentido de dizer: sim, nós queremos pessoas negras nas cortes superiores, nos tribunais superiores. Não só nos tribunais em Brasília, mas também nos tribunais estaduais e nos tribunais regionais. Nós temos juízes negros nas nossas carreiras, no Rio Grande do Sul tem vários juízes negros, não somos muitos, somos em torno de 3% no Sul do país. Em outros estados também a gente tem uma variação desse percentual, mas por que essas pessoas não chegam a esses postos mais altos? 

Já se chegou a pensar inclusive que as políticas de cotas deveriam permanecer no progresso da carreira, para que também o magistrado que ingressa, ele pudesse ir ocupando essas cotas durante toda a sua carreira, como eu disse antes, e aí chegar a espaços de decisão mais altos, dando a sua perspectiva enquanto pessoa negra, sobre o direito, sobre a vida, sobre o mundo.

São vários caminhos, são várias alternativas, mas eu acho que o mais importante é a sociedade dizer e se posicionar no sentido de querer pessoas negras nos lugares mais altos dentro do poder judiciário.

A senhora tem essa ambição de chegar até a Suprema Corte? 

Não. Eu hoje tenho a ideia e a vontade de que, na minha jurisdição, eu possa fazer um bom trabalho, transformador na base. Eu acho que a experiência que a gente vive no nosso dia a dia, no contato com as partes, é muito rica. Eu me sinto privilegiada de estar ali numa sala de audiências, de poder conversar com homens, com mulheres, com vítimas, com réus e colher deles as suas impressões, inclusive sobre o poder judiciário e fazer disso uma ferramenta de transformação.

E eu acho que tudo tem o seu tempo, tudo tem o seu lugar. Eu tenho 22 anos de magistratura, mas eu ainda me acho muito útil nessa ponta, de poder olhar o mundo, ouvir as pessoas e a partir disso buscar as transformações no meu dia a dia de jurisdição. 

Doutora Karen, a senhora falou sobre os vinte e dois anos de magistratura. A senhora também participa de diversos fóruns de direitos humanos, da Associação de Juristas pela Democracia, enfim, está ligada a uma área que talvez nem todos os magistrados e magistradas estão. Como a tua trajetória influencia na hora de julgar, de exercer o trabalho no dia a dia? 

Nossa, muito. Não existe como a gente negar e é como eu estava dizendo, todas essas questões com as quais a gente tem contato e que a gente discute, vão interferir nas nossas vidas. A gente sabe que um juiz é formado, forjado não apenas por aquilo que ele aprende nos bancos da universidade, mas sim pelas suas experiências, pelos contatos que ele mantém e a maneira como ele viveu, como ele vive no mundo. 

A experiência que eu tenho discutindo questões de direitos humanos, a minha trajetória enquanto mulher negra, vão interferir diretamente no meu trabalho. Eu vou dar um exemplo de como isso pode impactar: há muito tempo eu venho questionando as pessoas nas minhas audiências sobre como elas chegam no Poder Judiciário, se é a primeira vez que elas estão ali e sobre as suas necessidades.

Pode parecer que isso não terá nenhum reflexo no processo, porque, na maioria das vezes, estou apurando uma situação de homicídio, mas o que eu ouço dessas pessoas me faz refletir sobre o que é o judiciário e sobre como as pessoas enxergam o poder judiciário. 

Não são raras as vezes que as pessoas me dizem: ‘Doutora, é a primeira vez que eu estou aqui’. Pergunto se alguém lhe disse como seria esse processo e a pessoa me diz que não sabia nada: ‘Nunca ninguém me ouviu, nunca ninguém quis saber a minha história’. E essa maneira de fazer jurisdição, de instruir o processo é um reflexo exatamente desse meu contato com os movimentos sociais, com as partes, e de perceber o tamanho do abismo que existe entre o poder e a sociedade. 

Então, com certeza, tudo isso que eu venho construindo ao longo dos anos, principalmente nos últimos anos com o Encontro de Juízas e Juízes Negros (Enajum), vai refletir na minha jurisdição, até porque esse é um dos nossos objetivos enquanto Enajum, buscar transformações dentro do Judiciário. 

Nosso movimento de juízes negros na magistratura pretende institucionalizar as nossas discussões e institucionalizar enquanto política judiciária, enquanto atuação individual de cada juiz e juíza negro e negra, e não negros, que compreendem a questão racial como uma questão relevante para o nosso país. 

Tivemos na última semana os atos do 7 de setembro, que levaram a uma indignação seletiva do Bolsonaro com a Suprema Corte. A senhora acha possível, a partir de agora, que os ministros julguem com independência? Ou se criou um clima de intimidação sem volta no judiciário brasileiro?

Eu enxergo os ministros da Suprema Corte como todos os magistrados deste país e como enxergo a mim mesma. Embora esses atos, embora a indignação, eu acho que uma das coisas que forja o magistrado é a questão da independência. E isso é uma linha, um norte, uma referência que nós temos. Eu não acredito que isso vai interferir na maneira como nós decidimos. 

Eu acho que a gente decide para garantir a democracia, a gente decide pra entregar justiça a todas as pessoas e eu acho que a gente decide para garantir a nossa constituição. Embora esses movimentos que tentem atacar a nossa democracia, enquanto estivermos sentados nas cadeiras do poder judiciário, com o compromisso que nós assumimos nós não vamos nos afastar. Eu gostaria de poder ver o nosso país caminhando de forma independente, justa, democrática e eu acredito que assim será.


 

Edição: Vivian Virissimo

Juíza da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre é a convidada desta semana no BDF Entrevista – Reprodução/ Arquivo Pessoal

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