Brasil dos Borba Gato aos Bolsonaro

Lógica da colonização e da conquista segue viva na alma do país. Dela nasce o tipo individualista, ganancioso e incontido, que trai ou rejeita seus iguais, mas se curva a um chefe poderoso. Não será possível superá-lo sem compreendê-lo a fundo

Por Rubens Goyatá Campante*, em Outras Palavras

“O Brasil da Conquista ainda não está terminado”.
(José de Souza Martins)

“As pessoas só se deixam oprimir na medida em que consentem em carregar grilhões para, por sua vez, poder distribuí-los. É muito difícil reduzir à obediência aquele que não procura comandar”
(Jean-Jacques Rousseau)

“O ato foi para abrir um debate, não para machucar alguém ou causar pânico”. Assim Paulo Roberto da Silva Lima, o Galo, ativista social e líder dos trabalhadores em aplicativos de transportes, justificou o incêndio à estátua de Borba Gato, em São Paulo, dia 24 de julho. O debate, e a polêmica, foram abertos. De um lado, os que veem o bandeirante como herói e deploraram o ato de Galo, que se apresentou à polícia dia 28 de julho, teve prisão preventiva decretada e só foi liberado dia 10 de agosto, para responder a processo judicial. De outro, os que acusam a prisão preventiva de Galo de injusta e política, e consideram Borba Gato um genocida e escravizador de indígenas.

Sem dúvida, Borba Gato matou e escravizou indígenas. Já que o debate, porém, está aberto, ressalte-se que sua figura representa mais que isso. Representa um tipo social, um tipo de ser humano, ligado a um dos elementos mais importantes da formação brasileira: o fato de sermos uma sociedade de invasão, conquista e expansão territorial. Sim, a escravidão nos formou. Mas tanto quanto a escravidão, nos marca a realidade de que, há meio milênio, estamos invadindo e expandindo as fronteiras de nossa sociedade por essas terras da América do Sul chamadas Brasil. Essa sociedade de conquista e expansão, de criação constante, até hoje, de novas fronteiras e periferias, gerou os Borbas Gatos de ontem e hoje.

Para explicar melhor essa ideia, faremos um contexto histórico da vida dessa personagem e do que significaram os bandeirantes na formação brasileira, e depois falaremos sobre a sociedade de conquista e expansão de fronteiras e de periferias, ainda presente.

Borba Gato e os bandeirantes: contexto histórico

Manoel de Borga Gato nasceu em São Paulo, em 1649. Em 1674, aos 25 anos, integrou a expedição de seu sogro, Fernão Dias Paes Leme, que partiu dali rumo a Minas Gerais, em busca de ouro e pedras preciosas. Essa expedição foi um dos mais importantes movimentos de invasão e conquista de novas terras. Além da natureza agreste e da resistência indígena, enfrentou um motim liderado pelo filho bastardo de Fernão Dias – morto por ele junto com os outros amotinados. O chefe bandeirante também morreu durante a aventura, em 1681, mas vários homens que integraram a bandeira permaneceram na região, acharam metais preciosos e empreenderam, a partir das bases conquistadas, novas expedições – entre eles Borba Gato.

Encontrar metais preciosos nas colônias americanas era uma obsessão de Portugal e Espanha. Quando a Coroa lusa soube dos achados de ouro em Minas, enviou à região, em 1682, um graduado funcionário, entendido em mineração, com o cargo de Superintendente Geral das Minas, Dom Rodrigo Castelo Branco. O objetivo real era assenhorear-se das riquezas porventura encontradas. Os paulistas se revoltaram, queriam o privilégio da exploração, pois haviam invadido a região e encontrado os metais com esforço próprio. Borba Gato logo se desentendeu com o enviado real e assassinou-o – segundo alguns, pessoalmente, segundo outros, a mando. Crime grave, de lesa-majestade, de qualquer forma, que o fez embrenhar-se pelos sertões mineiros para se esconder da lei, com uma tropa fiel de índios e mestiços. Quinze anos depois, Borba Gato apresentou-se às autoridades da província e negociou um perdão, em troca do qual ofereceu seu trunfo: sabia, literalmente, o mapa da(s) mina(s). A Coroa nomeou-o, então, para o cargo do homem que assassinara: superintendente das minas. Estabeleceu-se, poderoso, em Sabará, minerador e fazendeiro. Durante a Guerra dos Emboabas, em 1707, conflito armado em que os paulistas, descobridores das minas, foram derrotados pelos forasteiros que chegavam de todo lugar em busca das riquezas, Borba Gato, então Juiz na comarca de Sabará, tentou conciliar as duas partes, sem sucesso. Morreu nesta cidade, em 1718, aos 69 anos, idade avançada para os padrões da época.

Borba Gato foi, portanto, o típico bandeirante. Ou, nas palavras de então, um sertanista, ou, simplesmente, paulista, habitante daquela povoação no planalto, a que se chegava após vencer a serra do mar. Foram os principais conquistadores do período colonial. “Realizam trabalho de notável audácia, lançando mão da máxima violência (…) com aspectos brutais, desumanos, de desalojamento de grupos estabelecidos ou mesmo de sua exterminação”, afirma Francisco Iglésias 1. Com audácia e violência, os sertanistas paulistas dos séculos 1600 e 1700 especializaram-se nas funções de guerra e invasão, por vários fatores.

1) A localização do núcleo populacional paulista, primeira incursão dos invasores europeus que não ficava restrita ao litoral, favorecia a marcha para o interior. O grande meio de comunicação e movimentação da época era aquático, por rios e mares. Viagens terrestres eram bem mais difíceis e longas. Os paulistas tinham um caminho natural para o interior do continente descendo rios como o Tietê e o Parapanema, que, embora nasçam geograficamente próximos ao mar, correm em direção contrária, para o oeste, para a bacia do Paraná, de onde tanto se desce para o sul, para a região platina, quanto, na época das chuvas, das chamadas monções, alcança-se o norte ou penetra-se mais a oeste ainda.

2) A relativa pobreza do núcleo paulista, em comparação às áreas açucareiras do Nordeste, ligadas ao comércio internacional. A falta de perspectivas econômicas mais vantajosas fez os paulistas, primeiro, dedicarem-se à caça aos índios como negócio, escravizando-os, para si e para venda. A escravidão indígena declinou, após o início do tráfico africano, mas não desapareceu. Geralmente mais baratos que os africanos, cujo tráfico, em si, era altamente lucrativo, os índios permaneceram, por muito tempo, como os “escravos dos pobres”. Depois, sem abandonar totalmente a escravização indígena, os sertanistas voltaram-se à procura de metais preciosos e a vender às autoridades coloniais sua brutal eficiência guerreira na destruição de quilombos, como o de Palmares, e no combate a tribos indígenas rebeldes, como os Cariris. E, importante, inclusive para o argumento que desenvolveremos adiante: além de pobres, os sertanistas paulistas eram periféricos no sistema colonial luso-americano. Malgrado os serviços prestados como conquistadores de terras e algozes de índios e negros, os paulistas não ocuparam o centro do sistema, e eram vistos com um misto de desdém, horror e receio 2. Veja-se o testemunho do bispo de Pernambuco, Dom Francisco de Lima, sobre Domingos Jorge Velho, chamado a soldo pelas autoridades coloniais (dentre as quais o próprio bispo) para destruir Palmares:

“Este homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado: quando se avistou comigo, trouxe consigo um intérprete porque não sabe falar português (…) Mesmo se dizendo cristão e sendo casado, lhe assistem sete índias concubinas. E daqui se pode inferir que, tendo em vista a sua vida desde que teve o uso da razão, se é que a teve, até o presente momento, se encontra a andar metido pelos matos à caça de índios e de índias, estas para o exercício de sua torpeza sexual, aqueles para a obtenção de seus interesses econômicos.” 3

3) A referência do eclesiástico aos hábitos de Domingos Velho (não falar português, concubinas índias) remete à proximidade desses paulistas dos séculos 1500 a 1700 com a cultura indígena, mais especificamente com o tronco tupi, do qual ramificavam inúmeras tribos. A tal ponto que Darcy Ribeiro chama-os “brasilíndios”, um tanto luso-brasileiros, um tanto índios. Não fossem os índios, esses caçadores e escravizadores de índios nada seriam. Da matriz tupi veio a língua que falavam, a língua geral, ou NhemgatuNhem nhem, em tupi, significa fala 4Gatu é grande, bom, importante. Nhemgatu, portanto, era a fala ou língua grande, boa, geral, uma criação artificial dos jesuítas desde os tempos de José de Anchieta, surgida “do esforço de falar o tupi com boca de português”, segundo Darcy Ribeiro 5, mesclando o léxico tupi com a gramática portuguesa. Borba Gato, fugido nos sertões, certamente comunicava-se em língua geral com os índios e caboclos que o acompanhavam.

Os primeiros paulistas tomaram da cultura tupi mais que a língua. Seus hábitos originais de comer, de vestir, de morar, de plantar, seu conhecimento e adaptação à natureza tropical, cruciais para suas expedições de invasão e escravização, tudo isso veio dessa cultura. Os jesuítas chamaram-nos “mamelucos”, palavra de origem árabe, que significa “escravo”. “Mamluks”, para os árabes, eram escravos oriundos de populações e etnias dominadas que, retirados de suas famílias antes da idade adulta e criados entre os dominadores, eram usados, mais tarde, como eficiente veículo de domínio árabe sobre os próprios povos de que tinham nascido. Eram, portanto, escravos traidores de seu próprio povo, que se identificavam com o dominador, não com sua gente. O termo “mameluco”, portanto, era altamente ofensivo, chamava os sertanistas paulistas não só de escravos, mas de escravos infiéis a seu sangue, brutalizadores de sua própria gente.

Os jesuítas tinham razões para odiar bandeirantes como Borba Gato. No século 1600, especialmente na primeira metade, os brasilíndios de São Paulo atacaram selvagemente as missões jesuítas, situadas não só, mas principalmente, na área guarani, Mato Grosso do Sul, Paraguai, leste da Argentina e sul do Brasil 6. Original experimento societário de caráter cristão e comunitário, as missões jesuítas concentravam milhares de índios até certo ponto deculturados 7 , em populosas aldeias – manancial fácil e atrativo para os caçadores de gente.

4) Esse ataque às missões jesuítas da área guarani foi facilitado pelo fato de que, a partir de 1580, as coroas de Espanha e Portugal estavam reunidas na chamada União Ibérica, que durou até 1640. Antes, havia a linha de Tordesilhas, divisão das terras da América do Sul entre Espanha e Portugal, chancelada pela Santa Sé, que privilegiava os castelhanos, nação mais poderosa. Não se tinha muita noção de onde exatamente passava a linha de Tordesilhas, mas sabia-se que, quanto mais a Oeste, maior a probabilidade de se esta em território reivindicado pelos espanhóis, trazendo possíveis problemas políticos e diplomáticos. As missões guaraníticas estabeleceram-se nessas terras. Depois de 1580, esse fator desencorajador terminou. Uma só coroa ibérica arrostava-se o direito de conquistar as terras sul-americanas 8. O caminho estava aberto 9.

5) A origem ibérica dos sertanistas paulistas, em que pese toda sua utilização, especialmente nos tempos iniciais, da tecnologia indígena de ambientação ao meio tropical, manifestou-se, ainda, em uma herança típica de Portugal e Espanha: a tendência à expansão territorial. Sociedades que formaram sua identidade coletiva na reconquista de seus territórios ibéricos frente aos muçulmanos, portugueses e espanhóis, construíram, garante Rubem Barboza Filho, uma variante civilizacional do Ocidente, tendo como alicerce a categoria fundacional do espaço – o territorialismo, a fome de espaço e de novos territórios, era a determinação intrínseca de sua forma de vida, dos valores e instituições que estabeleceram, no plano político, econômico e cultural, e era, também, seu elemento crucial de estabilidade e de legitimação de seus centros de poder 10.

A sociedade de conquista e de fronteiras e a mentalidade Borba Gato

Esses cinco fatores – localização tendente à interiorização, pobreza e marginalidade econômica, adaptabilidade haurida da cultura tupi, conjuntura favorável da União Ibérica e tendência ao expansionismo territorial – fizeram desses sertanistas paulistas, mamelucos, brasilíndios, bandeirantes, como Borba Gato, vetores, por excelência, da conquista luso-brasileira que formou nosso território. Tragédia épica e gênese social e nacional marcadas a ferro, fogo e sangue. E através da qual criou-se uma psicologia social presente até hoje, um tipo de personalidade comum na cultura de uma sociedade não só de escravidão, mas de invasão, conquista e expansão de suas fronteiras internas.

Uma personalidade profundamente individualista e ambiciosa, que não enxerga a dimensão coletiva da vida humana (tão importante quanto a dimensão individual), cuja solidariedade para com outros, se existe, não ultrapassa o círculo próximo de amigos e familiares, uma personalidade avessa a regras, procedimentos e rotinas, avessa à submissão a rotinas e estatutos impessoais, mas, paradoxalmente, tendente a acatar – cega e totalmente – o mando pessoal forte e autoritário. Foi esse tipo social que Sérgio Buarque descreveu ao tratar do que chamava “personalismo ibérico” “à autarquia do indivíduo, à exaltação extrema da personalidade, paixão fundamental e que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: a renúncia a essa mesma personalidade em vista de um bem maior. Por isso, mesmo que rara e difícil, a obediência aparece para os povos ibéricos como virtude superior. Essa obediência tem sido o único princípio político verdadeiramente forte. A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhe igualmente peculiares. As ditaduras e o Santo Ofício parecem constituir formas tão típicas de seu caráter quanto a inclinação à anarquia e à desordem” 11.

Quem oscila entre a vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens, tendo como único princípio político a obediência incondicional a um líder carismático, não preza valores como a liberdade e a igualdade – prefere, ao revés, a hierarquia e o autoritarismo. Como afirma Jean Jacques Rousseau, as pessoas “só se deixam oprimir na medida em que, arrastadas por uma cega ambição e olhando mais para baixo que para cima de si, passam a apreciar mais a dominação que a independência e consentem em carregar grilhões para, por sua vez, poder distribuí-los. É muito difícil reduzir à obediência aquele que não procura comandar, e nem o político mais esperto conseguiria sujeitar homens que desejassem apenas ser livres. Mas a desigualdade estende-se sem dificuldade entre almas ambiciosas e covardes, sempre prontas a correrem os riscos da fortuna e a, quase indiferentemente, dominarem ou servirem, conforme lhes seja favorável ou contrária a fortuna” 12.

Uma sociedade plasmada na invasão, conquista e expansão contínua de suas fronteiras internas é uma sociedade intrinsecamente instável, pouco regulada, de relações sociais marcadas não apenas pela violência e autoritarismo como pela imponderabilidade do personalismo. Uma sociedade em que a Lei e o Direito não são garantias de direitos subjetivos universais, não são referenciais de resolução de conflitos e nem vetores de previsibilidade das relações sociais – sendo, em vez disso, ferramentas de poder dos dominadores. O personalismo e as profundas assimetrias de poder colocam os poderosos acima de quaisquer regras de convivência minimamente civilizada, gerando a anarquia e a desordem, já notara Holanda. Anarquia e desordem que levam a “personalidade Borba Gato” a demandar, como “remédio” a elas, o que, na verdade, as gesta e nutre: mais autoritarismo e mais desigualdade. Um ciclo vicioso doentio, como o de uma diabetes, em que o excesso de açúcar faz o doente querer mais açúcar.

A desordem brasileira tem origem na desigualdade e no autoritarismo, assim como na instabilidade intrínseca de uma sociedade em movimento, de abertura constante de novas fronteiras e periferias. Quem olha o mapa do Brasil, digamos, no século 1800, e vê desenhada a configuração básica de nosso país engana-se ao pensar que todo aquele território já estava plena e tranquilamente ocupado pelos padrões da chamada “civilização ocidental”. Mesmo no 1900 não estava. Mesmo hoje não está.

Primeiro, porque novas fronteiras, no sentido físico do termo, ainda estão sendo abertas. A principal frente de expansão atual do Brasil são as franjas do bioma amazônico em seu encontro e transição com o cerrado, no Acre, Rondônia, Mato Grosso, Amazonas, Pará, Tocantins, Maranhão e Roraima, além de grandes extensões do próprio cerrado, em Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Piauí, Bahia. Áreas, por excelência, do agronegócio, onde campeiam a destruição ambiental, o uso abusivo de agrotóxicos, a grilagem, os conflitos de terra, o desalojamento e assassinato de indígenas e pequenos posseiros, as formas brutais de exploração do trabalho, o conservadorismo cultural, social e político, assim como o apoio ao atual presidente da república. Onde campeiam os Borbas Gatos.

Segundo, porque a fronteira não é somente esse elemento físico, territorial. É também o descompasso de etnias, de classes sociais, de valores culturais e especialmente de tempos históricos – o descompasso fundamental entre o Brasil cosmopolita, plenamente engatado nos padrões de vida e mentalidade do mundo ocidental e o restante do Brasil. Descompasso que, nas frentes de expansão, assume, muitas vezes, o caráter trágico de violência desumanizadora do outro. Gilberto Freyre, mirando o Império, deu o seguinte testemunho desse desencontro:

“Só uns tantos homens, entre os quais se incluía o próprio Imperador (…) tinham conhecimento dentre os brasileiros natos, da Europa de John Stuart Mill, das saias rodadas (…) de George Sand, das carruagens inglesas de quatro rodas e de Pio IX. Isto é, participavam plenamente da cultura contemporânea (…) O Brasil de meados do século XIX não era só constituído por vários Brasis, regionalmente diversos: também por vários e diversos Brasis quanto ao tempo ou à época vivida por diferentes grupos da população brasileira” 13.

Ainda que os meios de comunicação, tanto os de transporte quanto o rádio, primeiro, seguido pela TV e agora pelo celular e mídias eletrônicas, tenham diminuído tais distâncias, ainda que tenha aumentado a parcela de brasileiros que partilham plenamente a cultura contemporânea dos países centrais, o desencontro permanece. E a dinâmica de fronteira, geradora de tantos Borbas Gatos, também. Mesmo nas amplas regiões mais antigas e estabelecidas do país, nas grandes e já centenárias capitais do Brasil litorâneo, de Porto Alegre a Belém do Pará, nas Minas Gerais que foram, no século 1700, pontas de lança de uma sociedade mais urbana e diversificada no país, no Brasil urbano e ‘moderno” enfim, mesmo aí o desencontro da situação de fronteira permanece. Seja porque os tipos psicossociais, como a “personalidade Borba Gato”, subsistem por muito tempo, até depois que as condições materiais objetivas que lhes geraram são superadas; seja porque o Brasil rural, das fronteiras físicas, das frentes de expansão, segue impactando profundamente o Brasil das grandes cidades e regiões metropolitanas, que tem uma enorme periferia de gente expulsa do campo pela falta de acesso e regularização da propriedade (e que mantém tal carência nas cidades) e cuja economia segue a dinâmica descrita por José de Souza Martins “a situação de fronteira é, ao mesmo tempo, definidora do desenvolvimento capitalista em nossa sociedade. Diversamente ou, ao menos, com muito maior intensidade do que aconteceu em outras sociedades capitalistas, entre nós o capital depende acentuadamente da renda da terra para assegurar a sua reprodução ampliada. Por meio dela, recria mecanismos de acumulação primitiva, confisca terras e territórios, justamente por esse meio atingindo violentamente as populações indígenas e, também, as populações camponesas. É que em grande parte essa reprodução depende da mobilização de meios violentos e especulativos para crescer em escala e, portanto, para que o capital possa reproduzir-se acima da taxa média de rentabilidade” 14.

Detalhando a relação intrínseca entre o arcaico e o moderno que brota de nossa sociedade de conquista e expansão, Martins escreve:

“O aparentemente novo da fronteira é, na verdade, expressão de uma complicada combinação de tempos históricos em processos sociais que recriam formas arcaicas de dominação e formas arcaicas de reprodução ampliada do capital, como a escravidão, bases da violência que a caracteriza. As formas arcaicas ganham vida e consistência por meio de cenários de modernização e, concretamente, pela forma dominante de acumulação capitalista, racional e moderna” 15.

A consequência desse padrão de sociedade, garante Martins, é o aspecto trágico da fronteira, “que se expressa na mortal conflitividade que a caracteriza, no desencontro genocida de etnias e no radical conflito de classes sociais, contrapostas não apenas pela divergência de seus interesses econômicos, mas sobretudo pelo abismo histórico que as separa” 16.

Essa sociedade em que a fronteira expressa uma conflitividade mortal é, muitas vezes, um cenário bélico. Sem exageros retóricos: a guerra é parte de nossa formação, desde 1500. Pior, guerra não declarada, difusa, ora suspensa e latente, ora explodindo repentinamente em espasmos de violência – trazendo, por isso, mais insegurança e imprevisibilidade. Guerra em que o inimigo não é externo, mas interno – o próprio povo brasileiro. Ontem os índios rebeldes e arredios, os quilombolas e as negras de tabuleiro, os posseiros de terra em conflito com poderosos, os “vadios” e ciganos. Hoje os “elementos suspeitos”, favelados, negros, homossexuais, jovens pobres, mulheres insubmissas, e ainda os índios e os sem acesso à propriedade no campo e na cidade. Inimigos internos. E uma grande periferia, especialmente em relação aos padrões de vida material e cultural da civilização ocidental, dos quais uma parcela minoritária e elitista da população supõe ser portadora, enquanto, na verdade, faz de si própria, e de seu país, mera periferia do Ocidente 17.

Em suma: a dinâmica de conquista e expansão, junto com a escravidão, impactam inclusive o Brasil mais supostamente “moderno”, porque lhe injetam a realidade de uma imensa e sempre mal incluída periferia, interna e externamente. Haja manipulação e repressão para segurar tanto caos e exclusão!

Por tudo isso, José de Souza Martins está certíssimo quando garante que ainda somos uma sociedade de conquista e expansão de fronteiras. Martins pesquisou durante mais de 30 anos as frentes de expansão brasileiras – muitas vezes in loco, vivendo períodos junto aos habitantes das regiões. Com a autoridade haurida desse trabalho empírico e de suas ferramentas teóricas, ele sentencia:

“A fronteira tem sido, entre nós, um sujeito político. O Brasil da Conquista ainda não está terminado, ainda é mal esboçado mapa do que seremos um dia. Nossos dramas estão de pé, não raro resvalando para as tragédias descabidas dos massacres e assassinatos de índios e trabalhadores da frente de expansão (…) é na fronteira que nasce o brasileiro, mas é aí também que ele se devora nos impasses de uma história sem rumo. A fronteira não é um momento folclórico da grande aventura em que se constitui a história do Brasil. É um pilar na estrutura da sociedade brasileira, uma cruz a ser carregada” 18.

Dentre os pesos dessa cruz a ser carregada, o fato de termos tantos Borbas Gatos, em todos os estratos sociais, de alto a baixo. Tanta gente que aceita tranquilamente carregar grilhões para, na primeira oportunidade, colocá-los em outros, como observou o grande pensador. Gente que pode ser funcional no devassar: de lugares, de novas atividades econômicas, de novas formas de vida material; mas que é imprestável para se cimentar uma nação com coesão social, solidariedade e civilidade mínimas.

Sim, Borba Gato é um protótipo de brasileiro, infelizmente. Felizmente, porém, não há só esse protótipo. Há e sempre houve os não Borba Gato, ou até anti Borba Gato. E isso é o remarcável, o digno de nota. Normal, previsível, que um país forjado no autoritarismo, na ignorância e no individualismo grosseiro produza Borbas Gatos aos montes.

Não tão previsível, e que dá esperança, é que produza, também, os que não aceitam isso. Que produza, por exemplo, além dos bandeirantes, pessoas que “descobriram” as Minas Gerais de outra forma, infinitamente mais positiva, como Mário de Andrade e os modernistas paulistas, pioneiros em mostrar ao Brasil e ao mundo a beleza e a originalidade da cultura barroca mineira, até então tida como “velharia”.

Joaquim Nabuco afirmou que a principal tarefa das gerações futuras brasileiras seria lutar contra a obra da escravidão, uma instituição de consequências deletérias múltiplas na vida brasileira, em todos os campos: social, político, econômico, cultural etc. Pode-se falar o mesmo a respeito da obra da invasão e conquista. Não queremos dizer, obviamente, que as mazelas de nosso país provenham somente dela – mas ela é um elemento que não pode ser desconsiderado. Lutar contra ela, a obra da invasão e conquista, é uma tarefa de todos nós, republicanos e democratas que não rezamos pela cartilha dos Borbas Gatos.

Nos últimos anos essa cartilha foi reforçada, trazendo desalento a alguns de nós. A história, porém, não acaba, as lutas não encontram vencedores ou perdedores definitivos. A história está sempre em movimento, alguns deles de longa ou longuíssima dimensão temporal, maior que o tempo de nossas vidas. A mentalidade Borba Gato nunca reinou sozinha por aqui. Sempre encontrou resistências, mais ou menos articuladas, em maior ou menor grau. Cabe a nós, que sentimos justa repulsa por ela, combatê-la, sempre e de todas as formas possíveis.

*Doutor em Sociologia pela UFMG, Pesquisador da Escola Judicial do TRT-3ª Região, Pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (CERBRAS)

1 Iglésias, Francisco. Trajetória política do Brasil. 1500-1964. São Paulo: Cia das Letras, 1993, pg. 46.

2 Fato que desautoriza por completo certas considerações, a respeito da polêmica envolvendo a figura histórica de Borba Gato, de que as acusações atuais que lhe são feitas são extemporâneas, já que, em sua época, a violência e a brutalidade que atualmente nos chocam seriam comuns, chanceladas socialmente. Mesmo que, na época, a violência e a brutalidade fossem mais comuns e aceitas que hoje (o que, em si, já é algo duvidoso), o fato é que figuras como Borba Gato e outros bandeirantes causavam repulsa em muitos de seus contemporâneos.

3 Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1996, pg. 364.

4 Daí a expressão “nhemnhemnhem”, significando resmungo, fala interminável (Aurélio, pg 1192). “Para com esse nhemnhemnhem!” – expressão comum dos brasileiros.

5 Ribeiro, 1996: 122.

6 As terras e o patrimônio dos jesuítas não se limitavam às missões na área guarani. Possuíam inúmeras fazendas e engenhos em outras partes da América lusa, como Maranhão, Pernambuco e Bahia, e eram, também, grandes proprietários urbanos.

7 As missões ou reduções jesuíticas são uma experiência ainda hoje pouco estudada de nossa trajetória. O objetivo dos inacianos nessas missões parece ter sido a criação de uma sociedade utópica, nova, impossível, supunham eles, numa Europa já degradada. Uma sociedade que funcionaria como uma espécie de república comunitarista, cristã e teocrática, com os padres na liderança espiritual e material, sem que isso representasse uma exploração brutal, escravizadora, dos indígenas. Estes eram vistos como tendencialmente puros, mas hereges à revelia de sua vontade. Necessitariam, assim, ser cristianizados para seu próprio bem, para a salvação de suas almas. “Para os padres, eles seriam almas racionais mas transviadas, postas em corpos livres, mas carentes de resguardo e vigília (…) deviam trabalhar para seu sustento e para fazer próspera a comunidade de que faziam parte”. (Ribeiro, 1995: 104). E as comunidades missioneiras realmente prosperaram imensamente, atraindo inveja e cobiça generalizadas. Quanto aos indígenas aldeados, tinham certa dignidade de trabalhadores cristãos, tementes a Deus, cujas necessidades materiais eram supridas e que viviam, disciplinados, em famílias cristãs numa comunidade igualitária. Mas sofriam forte e compulsória deculturação de certos padrões de vida originais, especialmente, mas não só, no terreno místico e religioso. Uma situação pior que sua vida anterior, bem mais livre e talvez mais alegre, mas preferível ao destino de escravos nas mãos dos sertanistas e colonos luso-brasileiros.

8 A União Ibérica foi péssima para Portugal. Filipe II, da Espanha, artífice do enlace, em 1580, respeitou sua promessa de uma monarquia dual, em que a língua e as instituições lusas eram preservadas, e em que os cargos e sinecuras referentes à administração portuguesa eram ocupados preferencialmente pelos nobres portugueses – algo importantíssimo para uma nobreza que já era, em boa medida, burocrática e parasitária do Estado. Chegou a residir em Lisboa, de 1580 a 1583, para consolidar a união e demonstrar respeito e boa vontade. Após sua morte, em 1598, porém, seus sucessores, filho e neto, não honraram esse dualismo. Portugal foi, na prática, rebaixado a mero apêndice de um império nitidamente castelhano. Pior: foi arrastado, contra sua vontade e sua tradição política anterior, ao centro dos conflitos europeus em que a até então poderosa Espanha vinha sendo desafiada – e seria, por fim, superada – por potências emergentes como França, Inglaterra e Holanda. A Espanha soçobrou e levou Portugal junto. Quando os lusos recobraram sua independência, em 1640, aproveitando o enfraquecimento espanhol pela Guerra dos 30 anos (1618-1648), tiveram de fazê-lo sustentando longo e dispendioso conflito armado e recorrendo ao crucial apoio britânico. Portugal, sob a dinastia dos Bragança, pós 1640, tornou-se mero satélite político da Inglaterra. Na América portuguesa, porém, a União Ibérica não foi tão ruim para os interesses lusos. A colônia enfrentou a invasão holandesa no Nordeste, pois a Holanda, em processo de independência e formação nacional justamente contra a dominação dos Habsburgos espanhóis, atacou as colônias portuguesas na América, África e Ásia. Os holandeses, porém, acabaram expulsos daqui. E por conta, em boa medida, das expedições paulistas, facilitadas pela União Ibérica, as possessões portuguesas expandiram-se muito além da linha original das Tordesilhas, configurando, basicamente, o imenso território que formaria, mais tarde, uma nação unitária chamada Brasil.

9 As primeiras incursões paulistas às missões guaranis foram devastadoras. Mais tarde, porém, os jesuítas, com sua férrea disciplina de inspiração bélica, e os índios aldeados aprenderam a se defender, armaram-se e chegaram a dizimar expedições inteiras dos escravizadores. Isso contribuiu, junto com o fim da União Ibérica, para o arrefecimento do ciclo de escravização indígena na segunda metade do 1600, fazendo os mamelucos voltarem-se mais para as bandeiras à busca de metais e para o aluguel de seus préstimos guerreiros contra quilombolas e tribos de outras regiões. Mesmo assim a escravização indígena não terminou, e a sociedade paulista, até o fim do 1700, baseou-se nela para o trabalho e para os deslocamentos territoriais. Segundo estima Darcy Ribeiro, os colonos paulistas levaram das reduções mais de 300 mil cativos, sem contar as outras milhares de vidas que tiraram.

10 Barboza Filho, Rubem. Tradição e artifício: barroco e iberismo na formação americana. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2000.

11 Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995, pg. 39.

12 Rousseau, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Ed Martins Fontes, 1993, pg 209-210.

13 Freyre, Gilberto. Vida social no Brasil em meados do século XIX. Rio de Janeiro: Artenova, 1977, pg. 39.

14 Martins, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2019, pg. 26.

15 Martins, 2019: 12-13. A simbiose entre arcaico e moderno no Brasil já foi apontada por vários estudiosos. Entre tantos exemplos, pode-se destacar, com uma abordagem mais econômica, Francisco de Oliveira (Crítica à razão dualistaO ornitorrinco”, ou, com uma abordagem mais social e cultural, Maria Sylvia de Carvalho Franco (Homens livres na ordem escravocrata)

16 Martins, 2019: 13.

17 Pouca coisa pode ser tão danosa para uma nação como ter uma elite assim, que não se identifica com seu próprio país, que tem, salvo exceções, o que poderíamos chamar de “mentalidade mameluca”, nos termos referidos aqui, de dominados que se identificam não com seus pares, com seus concidadãos, mas com o dominador externo. Para mais detalhes e argumentos sobre o caráter periférico da burguesia brasileira no sistema capitalista internacional, e como isso está ligado a uma dominação interna de caráter particularmente intransigente e explorador, uma excelente fonte é a obra de Florestan Fernandes A revolução burguesa no Brasil.

18 Martins, pg. 20-21.

Imagem: JB Debret, Combate aos botocudos (1827)

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