Por Leila Leal e Raquel Torres, em Outra Saúde
ADMITIU
Ontem, finalmente, o diretor-executivo da Prevent Senior falou à CPI – e passou à condição de investigado pela Comissão. Diante dos senadores, Pedro Benedito Batista Júnior confirmou que a operadora alterava prontuários de pacientes internados nos hospitais de sua rede com covid-19 para retirar, depois de algum tempo de tratamento, a referência à doença dos registros médicos.
Ele bem que tentou remendar. Diante da reação contundente de alguns dos parlamentares, algumas horas depois de sua primeira fala ele voltou ao assunto e complementou a confissão, destacando que a alteração do código de diagnóstico serviria apenas para identificar aqueles que não precisavam mais ficar em isolamento. Segundo ele, a mudança não implicava o ocultamento da covid-19 dos atestados de óbito de possíveis vítimas. “O CID era mudado no sistema para tirar o paciente de isolamento e não no atestado de óbito ou, então, no atestado que ia para a vigilância sanitária, já notificando o paciente que estava, sim, com covid-19″, disse.
A denúncia sobre a alteração dos prontuários foi uma das que, através de reportagem da Globo News, vieram à tona na semana passada, no dia inicialmente previsto para o depoimento de Batista Júnior à comissão. Funcionários e ex-funcionários da Prevent acusam, ainda, a empresa de ter conduzido um estudo clínico ilegal com cobaias humanas sem consentimento dos pacientes ou familiares, publicar dados não revisados ou falsos sobre a pesquisa e coagido profissionais a receitar os medicamentos do chamado “kit covid”.
Quanto à coação dos profissionais para que prescrevessem o kit de “tratamento precoce”, Batista Júnior se desviou. Ele responsabilizou médicos e pacientes pela prática, afirmando que muitas pessoas passaram a chegar aos hospitais exigindo tratamento com cloroquina, ivermectina e azitromicina… Além disso, reafirmou a “autonomia” dos médicos para decisão do tratamento a ser seguido, negando qualquer interferência da operadora nesse sentido.
Não é isso que diz o grupo de médicos e ex-médicos que assinam o dossiê recheado de denúncias enviado à CPI. Um deles resolveu sair do anonimato e falou ontem à Folha. Walter Correa de Souza Melo reafirmou a prescrição do “kit covid” como prática da empresa e disse ter sido ameaçado por Batista Júnior. Após o primeiro relato de irregularidades nos hospitais da Prevent, ele recebeu – e gravou – uma ligação com o diretor-executivo, divulgada ontem. O médico registrou ainda boletim de ocorrência na Polícia Civil de São Paulo contra Batista Júnior relatando as ameaças.
NO SIGILO
Que a Prevent Senior alterava os prontuários de pacientes para atribuir outros diagnósticos que não covid-19 a quem dava entrada no hospital, o próprio diretor-executivo confirmou. Mas as denúncias vão além e as suspeitas de que havia subnotificação de mortes pela doença, através de um esquema baseado justamente no apagamento dos “rastros” de infecção por covid dos registros médicos – negadas pela empresa –ganharam relevo nos últimos dias.
Na terça, uma reportagem da revista Piauí revelou que a covid-19 sumiu do atestado de óbito de Anthony Wong, médico e notório defensor do “tratamento precoce” morto em janeiro deste ano, após internação em hospital da Prevent. Consultando o prontuário médico de mais de duas mil páginas, a reportagem confirmou a utilização de todo o pacote de medicamentos sem eficácia comprovada. Ontem, o Estadão reportou outro caso: o de Regina Hang, mãe do empresário Luciano Hang (o dono da Havan), também internada em hospital da rede. Segundo o jornal, o dossiê entregue à CPI diz que o atestado da paciente foi fraudado e que foi omitido o real motivo do falecimento: a covid-19.
À CPI, Batista Junior argumentou que não poderia passar informações sobre pacientes tratados nos hospitais. Ele também acusou os médicos denunciantes de terem subtraído ilegalmente os dados dos pacientes e terem forjado provas contra a Prevent. A comissão aprovou requerimento para que a Prevent Senior forneça a íntegra dos prontuários da mãe de Luciano Hang e do médico Anthony Wong.
Em tempo: A Prevent está ainda na mira do Ministério Público de São Paulo, que quer fazer com que a empresa suspenda a prescrição do “tratamento precoce” e pague indenização por danos morais e coletivos. Na semana que vem, a promotoria de saúde se reunirá com a operadora e apresentará uma proposta para a reparação dos danos causados.
COVID ZERO OU REDUÇÃO DE DANOS?
O ex-diretor de Pesquisa Clínica do Instituto Butantan, Ricardo Palacios, deu à BBC uma entrevista abrangente em que aborda desde a pesquisa de vacinas – ele esteve à frente dos ensaios com a CoronaVac no Brasil – até os rumos que a pandemia deve tomar. Um dos seus pontos mais interessantes é a necessidade de se melhorar a comunicação sobre o manejo do risco quanto ao coronavírus daqui para frente. Isso não é novidade na saúde pública, mas na pandemia de covid-19 é um debate que nunca se destacou tanto quanto deveria.
Pesquisadores que trabalham com infecções sexualmente transmissíveis têm alertado, desde o começo da pandemia, que a mensagem sobre formas de prevenir o contágio pelo coronavírus poderia ser muito melhor se ensinasse as pessoas a calcular seus riscos e diminuí-los, em vez de tentar zerá-los completamente. Faz sentido que tenha sido justo esse campo o maior responsável por tentar propagar mais a ideia, já que os resultados da redução de danos na saúde sexual são excelentes – ao contrário dos obtidos por ações que pregam, por exemplo, a abstinência.
É justamente do HIV que Palacios parte para falar disso. “No início, nós tínhamos um mantra que era: use camisinha, use camisinha e use camisinha. E estamos quase repetindo isso agora: use máscara, use máscara e use máscara. No caso do HIV, nós desconhecíamos a realidade social e o fato de que as pessoas eventualmente não iam utilizar camisinha. Isso aconteceria em algum momento. A gente nunca ensinou como tomar essa decisão de não usar camisinha. E estamos fazendo a mesma coisa agora. Não estamos ensinando às pessoas qual o momento em que não precisa usar máscara ou quando utilizar”.
Ele aponta que as vacinas são uma camada excelente de proteção e obviamente as pessoas vão começar a fazer coisas com mais liberdade. Mas a proteção é imperfeita, e precisamos ensiná-las a tomar as melhores decisões. “Mesmo no HIV, para o qual não temos vacina até hoje, nós possuímos a profilaxia pré-exposição, a Prep, e várias outras alternativas que permitiram às pessoas equacionar o risco para cada situação. E nós ensinamos como fazer isso. (…) Um exemplo: você quer passar o Natal com familiares e amigos. Como planejar esse evento para que ele não acabe disseminando a covid-19 para pessoas vulneráveis, que vão acabar internadas? A gente tem que começar a ensinar isso e acho que essa é uma outra falha que precisa ser corrigida. Ainda há tempo”.
O outro grande problema de comunicação apontado por Palacios é um ao qual já nos referimos várias vezes: as vacinas foram apresentadas (inclusive pelo governo de São Paulo e pelo Instituto Butantan, vale ressaltar) como algo que impediria totalmente as pessoas de adoecer gravemente e morrer por covid-19, o que nunca é verdade.
No começo de agosto, Palacios pediu demissão do Butantan. Além dele, seis funcionárias em cargos de gerência e pelo menos uma pesquisadora associada solicitaram desligamento do órgão, mas ainda não houve muitas explicações sobre a saída em conjunto. A entrevista publicada ontem foi a primeira desde a saída de Palacios – mas ele não quis comentar o caso.
NOVO CAPÍTULO
Pela primeira vez, estados receberam doses de CoronaVac via aquisição direta do governo de São Paulo. Foram 2,5 milhões de doses repassadas ontem a cinco estados, por fora do Ministério da Saúde.
O governo federal não gostou. Existe uma cláusula de exclusividade entre o Butantan e o PNI (o Programa Nacional de Imunizações) segundo a qual o laboratório não pode negociar a venda da vacina a outros entes da federação ou outros países até o contrato ser finalizado. É aí que está o problema: o governo paulista diz já ter finalizado a entrega das 100 milhões de doses acordadas em dois contratos com o Ministério, mas a pasta discorda.
O motivo é que as 100 milhões de doses já entregues incluem 12 milhões que foram interditadas pela Anvisa no início do mês, por não terem sido envasadas em fábrica inspecionada. Ontem a agência determinou que elas sejam de fato recolhidas, porque os documentos apresentados não não comprovam a realização do envase em condições satisfatórias de boas práticas de fabricação. O Butantan havia prometido substituir as vacinas interditadas.
O Ministério da Saúde pediu esclarecimentos ao Butantan e abriu prazo de cinco dias para o laboratório explicar “se está ou não entregando tais vacinas”. A quebra de contrato pode levar a multa de R$ 31 milhões.
PARA FORA E PARA DENTRO
O governo Joe Biden anunciou ontem que vai comprar mais 500 milhões de doses de vacina contra a covid-19, da Pfizer/BioNTech, para doar a países de baixa renda. Com isso, vai chegar a 1,1 bilhão o total de doses que os Estados Unidos planejam doar – 160 milhões já foram embarcadas, 200 milhões devem sair até o fim do ano e o restante será distribuído até setembro do ano que vem, segundo o presidente.
Ao mesmo tempo, a FDA (equivalente à Anvisa) enfim aprovou ontem a terceira dose de vacina contra a covid-19. Como já se esperava, ao menos por enquanto a aplicação será restrita a maiores de 65 anos.
Em tempo: a Anistia Internacional lançou um relatório em que aponta o papel da concentração da produção de vacinas na distribuição desigual. Apenas seis empresas têm o controle majoritário do fornecimento, não aceitam compartilhar seus direitos de propriedade intelectual e suas tecnologias e, com isso, alimentam “uma crise de direitos humanos sem precedentes”.
DEPOIS DA INFECÇÃO
Agendas foram alteradas e delegações estrangeiras presentes à Assembleia-Geral da ONU estão em alerta após a confirmação de que o ministro da Saúde Brasileiro, Marcelo Queiroga, está com covid-19. Isso porque quem teve “contato próximo” com ele precisa fazer quarentena até a realização de teste PCR.
Jair Bolsonaro e o resto da comitiva presidencial, que tem 50 integrantes, vão ficar isolados por ao menos cinco dias, até fazerem novos exames.
Quer dizer… Esse era o plano. Mas o presidente se reuniu com apoiadores ontem à noite, na porta do hotel. Ficou com eles por 20 minutos. Sem máscara, é claro.
Enquanto isso, Queiroga – cuja quarentena nos custará ao menos R$ 30 mil em hospedagem – compartilhou em sua conta do Instagram ontem um post antimáscara e antivacina, publicado originalmente por outra pessoa. “Que ironia! Ministro @marceloqueiroga seguiu todos os protocolos, vacinou com a Coronavac, usa máscara o tempo inteiro e foi contaminado. O presidente não se vacinou, não usa máscara estava ao lado dele e não pegou. Melhoras ministro!”, diz o texto.
A que ponto chegamos…
RECUO NECESSÁRIO
O Ministério da Saúde voltou atrás e decidiu recomendar, novamente, que adolescentes sem comorbidades sejam vacinados. O recuo vem apenas seis dias depois de apasta retirar essa faixa etária do público-alvo das campanhas de imunização – o que, por sua vez, tinha acontecido duas semanas após a primeira recomendação para que os adolescentes se vacinassem. Ou seja: uma bagunça completa ao longo de menos de um mês. Esperamos que a atual decisão perdure.
MAIS UMA
Movimentos pelo direito à saúde se organizam contra mais uma investida do governo Bolsonaro, agora no mercado de medicamentos. Nas últimas semanas, o Ministério da Economia apresentou duas medidas que buscam atender aos interesses das farmacêuticas e enfraquecer a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos e as regras regulatórias vigentes. Já foi aberta uma consulta pública sobre uma resolução que desconfigura mecanismos fundamentais para a regulação dos preços dos medicamentos. Ao mesmo tempo, o governo ameaça retirar a câmara de regulação da alçada da Anvisa, onde está atualmente, e passá-la para… a Economia, pasta que não tem qualquer competência técnica para a função. Leia aqui a carta de entidades, movimentos e indivíduos denunciando as movimentações e em defesa das políticas públicas para a regulação dos preços.
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Pesquisa foi feita a partir de acordo entre empresa e Governo Bolsonaro
Foto: divulgação/Prevent; Alan Santos/PR