Prêmio Nobel da Paz, Fearnside vira alvo de ataque xenófobo

Por Gabriel Ferreira, em Amazônia Real

Manaus (AM) – As audiências públicas sobre o processo de licenciamento das obras de pavimentação do Trecho do Meio da BR-319 (Manaus-Porto Velho) começaram nesta semana, contrariando recomendação do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas e de movimentos sociais, ambientais e indígenas contrários à obra. Nesta sexta-feira (1º de outubro), estão previstas as últimas audiências, em Humaitá (presencial) e Canutama (virtual), no interior do Amazonas. Elas fecham o ciclo de encontros, iniciados na segunda-feira em Manaus e que prosseguiram na terça nos municípios de Careiro Castanho (presencial) e Beruri (virtual); e no dia 29 de setembro em Manicoré (presencial) e Tapauá (virtual). O ambiente foi marcado pela pressa em aprovar os relatórios e por atos de hostilidade dos defensores da obra, desde os agentes públicos a grupos de pessoas ligadas ao presidente Jair Bolsonaro.

O presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, desembargador Ítalo Fioravanti, deferiu na noite de segunda-feira (27) o recurso do governo federal para derrubar tutela cautelar do MPF, que pedia a suspensão das audiências. A decisão da juíza Maria Elisa Andrade, da 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária, vigorou apenas algumas horas. A audiência foi realizada mesmo assim, já na iminência de uma decisão favorável vinda do TRF-1 naquele mesmo dia. Caía, assim, o último empecilho para os grupos pró-BR-319 armarem um circo em torno das audiências.

Durante a primeira audiência pública, realizada na própria segunda em Manaus pelo Dnit e Ibama, o curitibano Sérgio Kruke, líder do Movimento Conservador do Amazonas e apoiador do presidente Jair Bolsonaro, disse que a pavimentação da rodovia não ocorre por vontade política. “O povo do estado do Amazonas não pode mais aceitar isso”, afirmou. E, em seguida, disparou ataques xenofóbicos contra o cientista Philip Martin Fearnside, colunista da Amazônia Real.

“A gente não pode aceitar interferência externa. Como é que pode vim [sic] um cara lá dos Estados Unidos aqui? Como é que pode? O cara vim [sic] de lá e dizer o que eu vou fazer na minha casa. Essa casa é nossa. Se a gente quiser derrubar todas essas árvores a gente derruba. É nossa, não é de mais ninguém. Não é de Europeu, não é de americano, não é de asiático. É do povo brasileiro”, bradou Kruke, que possui uma página nas redes sociais intitulada “líder do Movimento Conservador Amazonas e do Grupo Canhota Não Amazonas” e se diz armamentista.

Fearnside é, de fato, norte-americano, mas mora em Manaus há 45 anos. Sua histórica luta pela preservação ambiental lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Trata-se de uma das maiores honrarias mundiais. Doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA), no Brasil ele atua no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Em seus artigos na Amazônia Real, ele tem se posicionado contrário ao licenciamento da BR-319. “A realização de audiências públicas antes de os indígenas serem consultados viola esta convenção internacional e a legislação brasileira”, escreveu o cientista em sua última coluna, publicada nesta terça-feira.

É com esse tom beligerante que os defensores da BR-319 tentam impor a necessidade da obra. A secretária-executiva do Observatório-BR319, Fernanda Meirelles, disse que haverá reunião para debater os próximos passos referente à decisão judicial e à realização das audiências.

“Talvez a gente apoie alguma ação do Ministério Público para melhor entender o que os procuradores querem fazer, quais vão ser esses próximos passos e o que é possível, ou o nosso apoio a alguma ação de grupos mais representativos, como o CNS, a Coiab, que realmente a gente acredita que seja o melhor caminho, porque são violações de direitos que afetam diretamente esses grupos”, declarou Fernanda Meirelles à Amazônia Real.

O coordenador executivo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Nilcelio Djahui, disse à Amazônia Real que os povos indígenas afetados pela obra terão que ser ouvidos separadamente, em consultas, mas somente quando cessar a pandemia. “Enquanto isso, os indígenas não poderão participar do processo”, afirmou.

Nilcélio não se mostrou contrário ao cronograma das audiências planejado pelo Dnit “para a sociedade”, mas destacou que o processo de licenciamento não pode atropelar a consulta aos indígenas. Um dos últimos estudos que faltam do EIA/RIMA do empreendimento é o Estudo de Componente Indígena (ECI) que, segundo a Coiab e outras lideranças indígenas, não foi concluído e, mesmo a versão parcial, não foi apresentada aos povos impactados pela BR-319.

“Só quando finalizar o ECI é que as consultas aos indígenas serão realizadas”, disse Nilcélio, referindo-se às consultas que o empreendimento, o Dnit, o Ibama e a Funai terão que fazer com os indígenas.

No entanto, Nilcélio afirma que se insistirem no processo de licenciamento sem apresentação do ECI completo para validação pelos povos indígenas e tradicionais afetados pela pavimentação da rodovia federal, a Coiab vai ingressar com pedido de ação civil pública junto ao MPF.

À Amazônia Real, a Assessoria de Comunicação da Procuradoria Regional da República da 1ª Região informou que o MPF irá recorrer da decisão, mas que ainda não há detalhes sobre o agravo.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ibama, não responderam os e-mails com questionamentos sobre as audiências públicas e os estudos incompletos. O Dnit informou que “o cronograma de audiências está mantido”, após decisão favorável na Justiça.

Defensores da BR-319

O presidente da associação Amigos e Defensores da BR-319, André Marsílio, justificou que a realização das audiências públicas podem ocorrer uma vez que “a aglomeração no estado do Amazonas, já está acontecendo diversos eventos testes com aglomerações. Nessa audiência pública está havendo todas medidas preventivas em relação a máscara, álcool em gel, distanciamento, ao contrário de muitas festas por aí”. Na sua fala, Marsílio afirma que o debate público e o estudo de impacto ambiental terão como resultado “uma rodovia com sustentabilidade e governança”.

O presidente do Conselho Regional de Engenharia do Amazonas (Crea/AM), Afonso Lins, que foi nomeado para a superintência regional do Dnit, em audiência no dia 28 no Careiro Castanho (distante a 124 quilômetros de Manaus), declarou que “o Amazonas paga um preço muito alto pelo nome Amazonas”. 

“Sempre falo em nível nacional dentro da engenharia que, no Amazonas não pode nada, e no Pará pode tudo. Porque é muito mais fácil um licenciamento no Pará, do que no Amazonas, como a 163, comparado com a 319, facilmente se teve o licenciamento e hoje já está em construção. Enquanto a nossa que já aconteceu, que já esteve asfaltada, hoje não consegue licenciamento”, disse Afonso Lins que foi procurado pela reportagem para falar como novo superintendente, mas respondeu que “ainda não tomou posse”.

O deputado estadual Fausto Júnior (MDB-AM) afirmou que o Amazonas é referência mundial na preservação do meio ambiente e, por isso, a reconstrução da BR-319 será, segundo ele, modelo de infraestrutura e sustentabilidade. 

“O Brasil vai estar mostrando para o resto do mundo, como bem disse o ministro Tarcísio, que o Brasil é capaz sim de se fazer uma estrada de forma sustentável. É capaz de garantir à população o direito de ir e vir, sem agredir a natureza, sendo a BR-319 no futuro, um case de sucesso para outros países do mundo em infraestrutura, combinando com sustentabilidade”, defendeu o deputado do Amazonas.

Colunista da Amazônia Real foi vítima da truculência de bolsonaristas em audiência para o licenciamento da BR-319, que liga o Amazonas a Rondônia (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real/2015)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

17 − dez =