Documentos revelam: militar que chefia o órgão no Pará cedeu base avançada, construída em terra indígena kayapó, para “colaborador” envolvido em crimes ambientais – e infraestrutura pública foi convertida em galpão de apoio à mineração ilegal
Por Marta Salomon, na Piauí
Era 10 de novembro de 2020 quando um dos coordenadores regionais da Funai no Pará, capitão Raimundo Pereira dos Santos Neto, escreveu um ofício informando que criara uma base avançada de apoio aos indígenas kayapós às margens do Rio Iriri. O pretexto era atender a necessidades emergenciais daquela etnia no Sul do Pará, dizia Santos Neto no documento endereçado ao ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Pouco mais de oito meses depois, em 20 de julho deste ano, o galpão que abrigava a tal base foi destruído por fiscais do Ibama após ter sido identificado como estrutura de apoio a atividades ilícitas de garimpo na Terra Indígena Menkragnoti.
No ofício ao instituto responsável por áreas de proteção ambiental, Santos Neto, coordenador da regional Kayapó Sul do Pará, escreveu que o galpão havia sido cedido por um “colaborador”, Antônio Júlio Martins de Oliveira. O colaborador, no caso, já era alvo havia mais de uma década de autuações de órgãos ambientais, por ocupação irregular da Estação Ecológica Terra do Meio, uma unidade de conservação de proteção integral criada em 2005, na sequência do assassinato da religiosa Dorothy Stang, vítima da violenta disputa de terras na região.
No ofício, o capitão da Funai forneceu a coordenada geográfica do local onde instalara a base que deveria apoiar os indígenas, S 06°45’20.0″ W 053°53’06.5, a mesma localização que aparece na foto do galpão destruído pelos fiscais ambientais, na Estação Ecológica, que faz divisa com a terra indígena. A foto acompanha um dos relatórios a que a piauí teve acesso. A Menkragnoti é uma das terras indígenas da etnia Kayapó e ocupa uma área de mais de 49 mil km² no Mato Grosso e no Pará.
Entre a criação da base de apoio a indígenas pela Funai, em novembro, e a destruição do galpão pelo Ibama, em julho, Antônio Júlio Martins de Oliveira, conhecido no local como Cheiro, foi multado pela posse de 4 quilos de mercúrio e pela destruição de 50 hectares de floresta para a exploração de ouro no interior da terra indígena. As multas aplicadas pelo Ibama neste ano a Cheiro somam quase 1,4 milhão de reais, sem considerar outras duas multas no valor de 6 milhões reais aplicadas pelos fiscais por exploração ilegal de garimpo e criação de gado em área protegida.
Em junho, fiscais do ICMBio embargaram uma estrada de 49 km de extensão construída por Cheiro, que ligava o galpão ao Rio Cateté e à área de garimpo. A abertura da estrada destruiu mais 29 hectares de floresta, contabilizaram os fiscais. Imagens de satélite mostram que a abertura da estrada e a expansão do garimpo ganharam fôlego após o ofício em que o coordenador regional Kayapó Sul do Pará chama o garimpeiro de “colaborador”.
Questionada sobre a instalação de uma base avançada em local que serviu de apoio ao garimpo ilegal, a Funai não respondeu até o fechamento desta reportagem. O coordenador regional Santos Neto recusou o pedido de entrevista. A piauí não conseguiu contato com Antônio Júlio Martins de Oliveira. O caso é investigado pelo Ministério Público Federal em Altamira, mas está sob sigilo.
A área de floresta onde o “colaborador” do chefe local da Funai atuava foi identificada como uma das regiões críticas de desmatamento neste ano na Amazônia. A devastação total deve somar mais de 10 mil km2 pelo terceiro ano seguido, com a divulgação da taxa oficial, prevista para ocorrer até o início de dezembro. Os alertas de desmatamento registrados pelo Inpe entre agosto e a primeira semana de outubro somam 2,2 mil km2. Nesse intervalo de pouco mais de dois meses do período de coleta da nova taxa anual, a mineração responde por 17 km2 de abate da floresta.
Havia três caminhonetes da Funai estacionadas no galpão do garimpeiro “colaborador” em 20 de julho desde ano, data da destruição das instalações. Uma quarta caminhonete encontrada no local pertenceria a Antônio Júlio Martins de Oliveira, anotaram os fiscais do Ibama.
“Assim, mais uma vez, ficou evidente a continuidade de uso das instalações de Antônio Júlio e do galpão irregularmente ali construído como apoio a atividades ilícitas de garimpo na Terra Indígena Menkrangnoti”, relataram. Os fiscais também destacaram que o galpão havia sido construído pouco tempo antes, no segundo semestre de 2020, com madeira da espécie Castanheira, cujo corte está proibido. No local, encontraram equipamentos de internet usados na atividade ilegal na terra indígena.
No mesmo dia, os fiscais conseguiram flagrar duas retroescavadeiras e três caminhões que haviam sido escondidos na floresta na incursão anterior do Ibama à região, em maio, segundo informaram os trabalhadores encontrados no local conhecido como garimpo Irara ou garimpo do Cheiro. O relatório de maio informa que os agentes vasculharam a área sem encontrar máquinas nem garimpeiros. “Constatou-se que o garimpo havia destruído em torno de 50 hectares de vegetação e havia destruído todos os cursos d’água”, diz o relatório de maio.
Em 25 maio, na primeira incursão do Ibama à área, os fiscais destruíram acampamentos, apreenderam três espingardas e 4 quilos de mercúrio divididos em oito frascos. O mercúrio é metal usado para extrair ouro no garimpo, responsável pela contaminação de peixes nos rios da Amazônia. Nessa primeira incursão, os fiscais também localizaram no galpão então recém-construído documentos de Antônio Júlio Martins de Oliveira.
Cinco dias antes da primeira fiscalização do Ibama, indígenas de quatro aldeias da Menkragnoti se reuniram com o dono do garimpo e pediram a retirada dos garimpeiros do território. Uma delegação de dezoito indígenas reuniu-se com Antônio Júlio na noite de 21 de maio. Na ocasião, ele disse que, na falta de apoio dos indígenas ao garimpo, retiraria as máquinas da região. Mas não o fez.
Vídeos a que a piauí teve acesso mostram que o garimpeiro tentou o apoio dos indígenas para explorar ouro, em troca do pagamento de uma “porcentagem” do que fosse extraído. “Tô pedindo de coração, se vocês puderem entrar num acordo, eu acharia bom… Cabe aos senhores dizer assim, que vão dar essa oportunidade pra nós. Uma das melhores amizades que você pode pensar”, disse o garimpeiro.
Nessa mesma conversa, Antônio Júlio citou o nome do coordenador regional da Funai ao mencionar que a intenção do governo é “regularizar os indígenas trabalharem. Regularizar mineração, projeto de manejo, pecuária, plantar soja, que é o que Bolsonaro fala”.
O presidente Jair Bolsonaro apresentou projeto de lei ao Congresso em fevereiro de 2020 para regulamentar a mineração em terras indígenas. Desde então, aumentaram os pedidos de pesquisa mineral e exploração de lavra garimpeira nessas áreas. Nenhum desses pedidos registrados pela ANM (Agência Nacional de Mineração) até o final de setembro tem o nome do “colaborador” do coordenador da Funai.
A proposta de Bolsonaro está parada na Câmara dos Deputados há mais de um ano e oito meses. Mas o garimpo ilegal em terras indígenas aumentou 495% desde 2010, revela estudo divulgado em agosto pelo MapBiomas, com base em imagens de satélite. Outro estudo publicado neste ano identificou indícios de irregularidades em 28% da produção nacional de ouro em 2019 e 2020, correspondentes a 48,9 toneladas de ouro ou 9,1 bilhões de reais. Feito em parceria do Ministério Público Federal com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), o levantamento identificou que 96% das áreas desmatadas para mineração na Amazônia estão fora das permissões de lavra garimpeira que lastreiam o ouro comercializado no país no período.