Europa, je t’aime moi non plus. Por Margarida Calafate Ribeiro

Quando o meu pai voltou a Portugal, trouxe o colonialismo com ele e nunca foi capaz de deixá-lo para trás. O meu pai era o colonialismo. Portanto, o meu pai era também injustiça e violência. Talvez eu não saiba muito bem, numa perspetiva histórica, o que era o colonialismo – muito provavelmente escapa-me; mas sei muito bem o que era o meu pai, o que pensava e dizia, e esse é um conhecimento prático do colonialismo que nenhum historiador possui, exceto pela mesma experiência vivida. (Isabela Figueiredo, Caderno de Memórias Coloniais)

“Medaille” e “Patrice” estão, na realidade, na mesma linha. Para mim, é mais do que lógico fazer música sobre esse tema, porque cresci com ele. São coisas que herdei da minha família e dos meus pais. Assim, é perfeitamente lógico eu estar a fazer este tipo de música. Há tanto mistério a rodear o assassínio de Patrice que é importante, especialmente agora, 60 anos depois da sua morte, dizer alguma coisa sobre isso, e dar-lhe relevo de novo. Quanto ao colonialismo, ele ainda se faz sentir na nossa sociedade de hoje. (Pasi)

No Buala

Nas discussões contemporâneas em torno da Europa pós-colonial, os conceitos de memória e pós-memória assumiram uma importância crescente, dando destaque a um aspeto de grande relevância política: a questão colonial não terminou com aqueles que a levaram a cabo ou que a sofreram. Passou para as gerações seguintes através das figuras do ex-colonizador e do ex-colonizado. Estas “personagens” reencenam uma complexa fantasmagoria profundamente relacionada com o espectro mais íntimo do subconsciente europeu: o seu fantasma colonial que se manifesta inter alia sob a forma de “transferências de memória” colonial — como racismo, segregação, exclusão, subalternidade – ou sob a forma de “erupções de memória”, e assim questiona a essência das sociedades multiculturais europeias, desenhadas pelas heranças coloniais e alimentadas por vagas migratórias.

Recentemente questionamentos sobre os silêncios, os não ditos, as ambiguidades, as histórias privadas e públicas sobre os vários passados coloniais e os seus reflexos no presente europeu, começaram a ganhar novos sujeitos políticos, um caráter concreto na arena política e decisória e uma grande repercussão mediática, criando um movimento europeu sem precedentes. Debates sobre a descolonização e as suas múltiplas fases, o reconhecimento de crimes durante a época colonial e as guerras coloniais, as coleções museológicas europeias, a restituição, as formas de ensinar a história colonial, o questionamento sobre os modos do diálogo Norte-Sul começam a marcar as agendas políticas. São indícios de uma Europa complexa a desembaraçar-se do passado, a descolonizar-se das suas ex-colónias, a libertar-se das imagens do ex-colonizador e do ex-colonizado, a olhar para os fantasmas contidos nos seus objetos museológicos, e, portanto, são sinais de uma Europa que, ao rever as suas narrativas nacionais, equaciona outro futuro. Um futuro em que as histórias, os objetos, as imagens sobreviverão nas mãos dos filhos, quando já não houver a memória direta da experiência. Essa ausência da experiência, e reivindicação de uma herança é a pós-memória. 

Memoirs Filhos de Império e Pós-memórias Europeias estuda a diversidade da Europa contemporânea, e seu principal objetivo é entender os desafios de viver numa Europa pós-colonial. Concentrou-se nas memórias intergeracionais dos filhos e netos daqueles que viveram os dias finais do colonialismo e nas lutas pela independência nas antigas colónias africanas da Bélgica, França e Portugal: República Democrática do Congo, Argélia, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

O caráter inovador do projeto encontra-se nas suas questões de pesquisa, que nunca tinham sido colocadas à escala europeia: Como se deu, na Europa atual, a transferência de memórias do fim do colonialismo nas suas múltiplas dimensões? Qual o impacto cultural e artístico dessa memória latente na Europa contemporânea?  

Memoirs foi construindo uma resposta abrangente para as suas perguntas realizando dezenas de entrevistas a descendentes de segunda e terceira geração de ex-colonizadores, ex-combatentes e ex-colonizados que vivem em França, na Bélgica em Portugal, analisando as suas representações artísticas em cinco áreas – artes visuais, literatura, artes performativas, cinema e música – lendo múltiplas obras críticas, acompanhando os eventos políticos e participando nos debates dos últimos anos, com comunidades académicas, ativistas, artistas e outros agentes culturais. Foi este longo caminho de conhecimento co-produzido entre diversos atores, com uma programação académica e cultural própria, a publicação de mais de 40 artigos científicos, 50 capítulos, 6 livros e uma newsletter que já conta mais de 140 números, que possibilitou um sólido conhecimento e permitiu avançar para  uma parceria internacional construída à volta de um tema tão novo e tão urgente como aquele que é veiculado pela exposição Europa Oxalá1 e que exigia um compromisso múltiplo – desde as instituições, aos curadores e artistas, desde académicos a agentes culturais, desde cenógrafos a tradutores, editores e jornalistas em vários países.

Com este projeto com múltiplas iniciativas e parcerias determinantes para o seu sucesso e extensão para outras áreas e públicos queremos contribuir para o debate sobre a crise de identidade que a Europa está a atravessar, porque não conseguiu lidar com o trauma da memória colonial e a sua herança pelas gerações seguintes. Os três países em estudo comparativo neste projeto ajudam-nos a abordar o domínio das subjetividades da geração da pós-memória, especificamente as dos filhos e netos dos antigos colonizadores e dos antigos colonizados que, paradoxalmente e de diferentes formas, se sentem hoje simultaneamente excluídos e parte integrante do projeto europeu. Esta herança é uma questão intrigante uma vez que as memórias que muitos dos nossos entrevistados receberam dos seus pais e avós, que vieram das ex-colónias, colidem com a invisibilidade de uma herança colonial na narrativa nacional e na memória oficial dos países europeus onde nasceram e vivem e dos quais fazem parte. A descolonização não é, portanto, um acontecimento histórico. É um processo contínuo que afeta não apenas os países descolonizados, mas também e, profundamente, o continente colonizador que foi a Europa.

As entrevistas que realizámos não foram apenas momentos de recolha de dados para um projeto. Foram momentos de co-produção de conhecimento e de consciencialização histórica do entrevistado sobre o sujeito social e político europeu que ele constitui e de como a sua história familiar se integra na história do seu país e da Europa. Para alguns dos artistas envolvidos, estas entrevistas foram também uma oportunidade para a reflexão crítica, a partilha e a criatividade. Em vários casos, desenvolveram-se novos projetos de colaboração para lançar luz sobre o significado dos encontros coloniais no enquadramento da auto-consciencialização pós-colonial da Europa. A descolonização da Europa é exatamente um dos temas que os artistas com quem trabalhamos estão a desenvolver, integrando a experiência colonial e aqueles e aquelas que durante séculos nomeamos abstratamente como “o outro” nas diferentes narrativas, como podemos ver em várias obras de arte e, de forma mais direta, em obras literárias.

O desafio a que hoje se lançam não é apenas o da luta pela narrativa como o concebeu Edward Said, mas é também o de uma luta pela história, pela escrita das páginas em branco de uma história ainda por contar, o que implica não apenas outras formas, mas também outras linguagens, e outras “personagens”. Hoje, estas histórias (embora normalmente silenciadas pela invisibilidade dos seus sujeitos) aparecem em discursos anónimos e representações artísticas, mostrando a pós-memória como um legado ativo e apontando para a possibilidade de um futuro europeu comum.

É desta forma que se está a proceder a uma mudança epistémica na forma como concebemos a história europeia e das suas nações feitas de histórias aparentemente comuns, mas que geram memórias muito diferentes. Na verdade, só se recalibrarmos a forma como abordamos a Europa como conceito histórico, político e social dinâmico, poderemos compreender a profundidade das fraturas e das tensões nas sociedades europeias contemporâneas e proceder à descolonização das pessoas, tanto na figura do ex-colonizado como na do ex-colonizador, construindo uma cidadania da memória que possa acolher os espectros e gerar o futuro de uma democracia com memória. 

O nosso objetivo é manter a conversa a nível político, social e cultural, e o Colóquio final do Memoirs  — Constelações da pós-memória na Europa pós-colonial — a realizar na Culturgest em Lisboa, no dia 4 de Novembro representa sobretudo um novo começo de uma conversa a continuar. 

A parte da manhã (10h-13h) é dedicada a apresentar os resultados do projeto, uma plataforma digital de artistas e obras da pós-memória com mais de 350 artistas e mais de 1200 obras, por Fernando Cabral (Sistemas do Futuro) e os livros A cena da pós-memóriaO presente do passado na Europa pós-colonial, organizado por António Sousa Ribeiro, que constitui uma cartografia do projeto, com textos de António Pinto Ribeiro, António Sousa Ribeiro, Bruno Sena Martins, Ettore Finazzi-Agrò, Fátima da Cruz Rodrigues, Felipe Cammaert, Fernanda Vilar, Graça dos Santos, Margarida Calafate Ribeiro, Paulo de Medeiros e Roberto Vecchi; o livro de António Pinto Ribeiro Novo Mundo – Arte Contemporânea no tempo da pós-memória, ambos da editora Afrontamento.

Da parte da tarde (14h30m-19h30m) estaremos com académicos, artistas, diretores de museus, curadores e jornalistas à volta de mesas redondas com seguintes questões: 

— Transmitir a memória com António Sousa Ribeiro (Diretor do CES-UC), Fátima da Cruz Rodrigues (CES-UC), Graça dos Santos (Universidade de Paris-Nanterre), Hélia Santos (CES-UC), Margarida Calafate Ribeiro (CES-UC), com a moderação de Sandra Inês Cruz; 

— Representar a memória, com Katia Kameli (artista visual), Aimé Mpane (artista visual), Paulo Faria (escritor), Zia Soares (atriz e encenadora), António Pinto Ribeiro (CES-UC e programador cultural), com a moderação de Vitor Belanciano; 

— Expor a memória com António Pinto RibeiroKatia Kameli, Aimé Mpane; Guido Gryssels (Diretor do Museu Real de África Central/ AfricaMuseum, Tervuren); Miguel Magalhães (Diretor, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa); Jean François Chougnet (Presidente do MUCEM, Marselha), com a moderação de Liliana Coutinho

A conferência final, intitulada “Cidadania da Memória: Legados Polémicos do Colonialismo e do Genocídio”, está a cargo de Michael Rothberg (UCLA-Universidade da Califórnia, Los Angeles), um dos maiores especialistas em estudos da memória.

De longe, mas sempre connosco, estarão Roberto Vecchi, Paulo de Medeiros, Fernanda Vilar, Felipe Cammaert e Helena Rebelo membros da equipa do projeto.

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624); MAPS – Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT – PTDC/LLT-OUT/7036/2020). Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.  

1.Ver António Pinto Ribeiro, “A exposição Europa Oxalá”, MEMOIRS NEWSLETTER, n.º 142, de 16 de Outubro de 2021. Europa Oxalá é uma exposição internacional que tem lugar de Outubro de 2021 a Março de 2023, em três instituições de três países – França (MUCEM- Marselha), Portugal (Fundação Gulbenkian, Lisboa), Bélgica (Africa Museum, Tervuren, Bruxelas). Os comissários da exposição são António Pinto Ribeiro, Katia Kameli e Aimé Mpane.

Ilustração: © Mauro Pinto, Sem título da série C’est pas facile [cortesia do artista]

Margarida Calafate Ribeiro – Investigadora-coordenadora no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, onde coordena o projeto Memoirs: Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC Consolidator Grant nº 648624).  Das suas publicações destacam-se Uma história de regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-colonialismo (2004),  África no feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial (2007) e a organização de vários livros: Fantasmas e fantasias imperiais no imaginário português contemporâneo (com Ana Paula Ferreira, 2003); Moçambique: das palavras escritas (e Paula Meneses, 2008); Lendo Angola (com Laura Padilha, 2008); Literaturas da Guiné-Bissau: cantando os escritos da história (e com Odete Semedo, 2011); Antologia da memória poética da Guerra Colonial (com Roberto Vecchi, 2011), Patrimónios de Influência Portuguesa – modos de olhar (com Walter Rossa, 2015) e Geometrias da Memória: configurações pós-coloniais (com António Sousa Ribeiro, 2016). 

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