“Nosso país é desigual por escolha, não por destino.”
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Enquanto no início dos anos 70 o mundo debatia a melhor maneira de assegurar o acesso universal à justiça, com equilíbrio de forças e recursos entre litigantes econômica, política e socialmente desiguais
na perspectiva de que a solução das controvérsias também pudesse representar justiça social, o Brasil buscava recuperar e fortalecer uma sua instituição que o tempo revelaria ser talvez a mais eficiente à conquista desses arrojados objetivos: a Defensoria Pública.
Em alguns Estados era tímida experiência, em outros, etapa inicial da carreira do MP, a Defensoria Pública avançou no fim daquela década e início dos 80 na direção da autonomia institucional que se revelava essencial à tutela jurídica das pessoas e grupos sociais vulneráveis.
Não foram êxitos sem custos, tampouco avanços livres das reações de “domesticação” de Defensores e Defensoras que litigavam contra o Estado, contumaz devedor de prestações sociais básicas, e contra as elites atrasadas que fundavam sua riqueza na exploração dos vulneráveis.
O modelo brasileiro de DPs revelou-se um êxito e pelos mesmos motivos um incômodo aos acostumados à repartição estamental das riquezas e distribuição desigual dos sacrifícios.
A consolidação paulatina da autonomia e o crescimento das DPs, sempre que possível retardado por estratégias elitistas, conformavam-se à semelhança das redes neuronais e não de células territorialmente isoladas, o sonho das elites filantropistas.
A organicidade da instituição implicava um intenso e constante processo de comunicação entre seus integrantes, com compartilhamento de experiências e soluções que retroalimentavam e retroalimentam, tal como correia de transmissão, as ações em toda a cadeia de intervenção de DPs.
O conhecimento acumulado e a percepção do funcionamento do sistema traduzem as práticas singulares em cada “núcleo” das DPs para uma linguagem comum e coletiva, identificando padrões de violação de direitos que vistos apenas pelas lentes de cada caso não seriam notados.
Muito antes da mediação e restauratividade serem conhecidas pelos nomes as DPs já as praticavam, pacificando conflitos sem intervenção do Poder Judiciário. Novos direitos surgiam no ambiente cultural das classes sem poder de representação no Congresso, classes cuja voz eram DPs.
Áreas remotas do Brasil viveram a realidade da “inclusão jurídica” pelas mãos de DPs da União e dos Estados. Uma “inclusão jurídica” que não é para “inglês ver”, mas postulação com as promessas de justiça material concreta e universal.
As DPs, ao contrário do que desejam os poderosos, senhores do atraso, não são “escritórios de advocacia pública celulares” espalhados e incomunicáveis.
São estruturas “neuronais” intercomunicáveis, vasos por meio dos quais passam estratégias e conhecimento que convertem a previsível derrota na 1ª instância em vitória e jurisprudência firmes nos tribunais superiores.
Temas “indigestos” como racismo, a prestação social (educação, saúde, lazer) privilegiando mais ricos, seletividade penal, tortura, constrangimentos de moradia e mobilidade, entre outros, ganharam uma perspectiva sistêmica visível nos processos coletivos e demandas estratégicas.
Como sublinhei, o êxito do modelo brasileiro de Defensoria Pública é a razão das constantes reações orientadas à desestruturação e enfraquecimento da instituição. Nosso país é desigual por escolha, não por destino.
O SUS com o PNI, o INEP com o ENEM e as DPs com sua ação articulada em todos os setores, internamente em cada DP, e externamente, entre as diversas DPs, contrariam a lógica do poder excludente que recusa o controle da sociedade democrática.
Vacinação não universal, mas paga por quem pode, Universidades não “universais”, mas restritas aos que por “direito de herança” as podem cursar e “justiça” para os de sempre, na distribuição de prêmios e castigos, são conveniências dos colonizadores de seu próprio povo.
Um projeto, diria Darcy. As sinapses dessa rede neuronal que são as DPs são as “informações”. As informações que DPs requisitam “ligam pontos” e configuram a “rede comunicacional” que leva a injustiça sofrida na rua, no campo e na casa aos tribunais como padrão e não como exceção
Impedir essas sinapses é também um projeto. Não interessa o argumento empregado para isso, sua hipotética vestimenta jurídica. A “tese” é pretexto.
Sem o poder de requisitar informações as DPs veem rompidas as ligações que alimentam um sistema virtuoso, que somente não o é para quem apoia o seu poder na permanência do atraso e na exploração política e econômica das carências.
O SUS é inconstitucional. O ENEM é inconstitucional. Um sistema orgânico de Defensorias Públicas com poder de requisição é inconstitucional. Constitucional, pelo visto, para parcela de nossas elites, é a doença, a fome, o analfabetismo e a submissão. O Brasil não merece o Brasil.
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