Por Antonio Prado, em Terapia Política
Existe uma frase magnífica sobre o ressentimento, de autoria desconhecida, que diz que ele é como beber um copo de veneno e esperar que o outro morra. É o que parece: o ressentido vive em um ritual de autoflagelo e desapreço por si mesmo, que encontra em tudo e em todos a razão de seu descontentamento.
Toma um copo de veneno e espera, passivamente, que o mundo reconheça e desagrave seu sofrimento. Não se trata de personagem de ação, ativo, com as rédeas da vida nas próprias mãos. Assiste a vida com amargor, ciúme, inveja e raiva. Transforma-se em uma fonte reprimida de pulsões de morte, esperando sua catarse. Nietzsche escreve que é um sentimento de cativos escravizados, moralmente inferior, merecedor de desprezo.
Porém, há os que interpretam esta síndrome destrutiva e com potencial explosivo como um ato de resistência, de busca de Justiça contra os horrores infligidos a povos escravizados e perseguidos. A luta dos judeus por responsabilizar os criminosos nazistas no pós-guerra entraria nesta categoria. Logo, não seria um valor moral negativo, mas heroico, reparador.
Os judeus e humanistas que lutam contra as atrocidades em nossa civilização estão longe de ser ressentidos. São ativistas, negação da passividade típica do ressentido. Não estão aprisionados no próprio desespero, corroendo-se com a bile do recalcado. Pelo contrário, apoiam-se no sofrimento real de milhões de seres humanos, mortos e mutilados, física e mentalmente, para dizer em alto e bom som: Nunca mais!
Assim que adotamos aqui outra interpretação para o ressentimento – o de considerá-lo como um valor moral negativo, eticamente condenável. Do ponto de vista anímico, o ressentido sofre uma tortura psicológica permanente, alimentada por ele mesmo. Como ser senciente, merece ser tratado pelos especialistas da mente humana, pois sofre de uma patologia. Sabidamente, o ressentido resiste ao tratamento psicanalítico, pois sobrevive ao seu fracasso pessoal culpando o mundo. Ele não quer escapar desta rede.
Mas, aqui, o ressentimento não vem à nossa atenção como fenômeno da alma em sofrimento. Tampouco, o ressentido como célula do organismo social. O que nos interessa é o uso do ressentimento como veículo de manipulação política das massas.
Hannah Arendt em seu “Origens do Totalitarismo” se debruça sobre este tema, como o fizeram Freud e Reich. Porém, devemos estar alertas ao contexto específico de Arendt, ou seja, a ascensão do fascismo na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial e o fracasso da República de Weimar, sem abandonar as lições analíticas da autora.
O ressentimento como fenômeno coletivo também repousa sobre a memória dos agravos a um povo ou comunidade. Neste caso, uma memória manipulada pela ação política oportunista. Como os ressentidos não estão dispostos a perdoar, muito pelo contrário, remoem a vingança em fantasias de violência, são o alvo perfeito para a propaganda fascista, de redenção dos prejudicados.
Arendt afirma que a massa ressentida não permite a construção da política, que exige o reconhecimento do outro e não a sua destruição. O fascismo explora essa pulsão de morte dos pretensos prejudicados, que visa aniquilar o diferente, que o faz sentir-se ameaçado.
Na Alemanha de Weimar, a classe operária e a classe média vinham de uma derrota na Primeira Guerra Mundial que provocou imensas agruras materiais e morais. O orgulho alemão estava ferido pelas humilhações do Tratado de Paris, que impôs reparações que iam de desmobilização militar, perda de territórios, transferência de fábricas inteiras a reparações monetárias impossíveis de serem sustentadas por uma economia arrasada. Keynes se desligou da delegação que negociava o tratado e profeticamente denunciou que seria causa de outra guerra.
Após a Primeira Guerra, a Alemanha passou por hiperinflações, desemprego altíssimo e fome. Humilhação na derrota, hiperinflações, desemprego e fome são o caldo de cultura do nazifascismo. Weimar olhava Hitler com desdém e o tolerava como um espantalho anticomunista, já que tinha que lidar com a Revolução Russa e o próprio movimento dos comunistas alemães.
O nazismo explorou as brechas da democracia alemã para crescer. Manipulou o ressentimento durante o entre guerras, acusando os judeus e os comunistas de culpados pela miséria alemã. Cultivou o ódio a todos os que considerava indignos da pureza alemã. Criou uma mitologia.
Hitler era um desordeiro tolerado, com suas tropas de choque e milícias civis que hostilizavam os que consideravam impuros: judeus, ciganos, negros, homossexuais, comunistas e esquerdistas e liberais em geral. Espalhava mentiras metodicamente que foram entrando nas mentes dos ressentidos da guerra e pós-guerra. O nazifascismo não foi um fiat lux, pois demorou duas décadas para chegar ao poder e pelo voto. O golpe veio logo depois.
Não precisamos dos detalhes da máquina de comunicação de massa do nazifascismo, basta saber que a mentira era seu método e a mobilização dos ressentidos seu objetivo, para capturar o poder.
As lições da História nos levam a interpretar a ascensão do neofascismo brasileiro ao poder, tomando emprestado os marcos analíticos até aqui apresentados.
Bolsonaro chega ao poder após 28 anos de uma trajetória política obscura e medíocre. Ganhou notoriedade ao ser expulso do exército por grave indisciplina, ao planejar ataques à bomba aos quartéis, como parte de um movimento reivindicatório salarial dos militares. Como tinha base e sua causa era considerada justa entre a soldadela, porém com métodos criminosos, a situação foi acomodada com a aposentadoria do então tenente, promovido a capitão, como de costume nas forças armadas. Nesta saída, candidatou-se a vereador e foi eleito.
Bolsonaro sempre defendeu publicamente causas da extrema-direita brasileira, a ditadura militar, torturadores, Pinochet, Stroessner, Hitler, milícias, matadores profissionais. Seus heróis são a ralé da humanidade. Foi eleito deputado federal e nunca fez nada, além de bravatas e agressões às mulheres e homossexuais parlamentares. Era considerado um ser pitoresco e apesar de defender abertamente o ataque às instituições democráticas, nunca foi condenado na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados por esse motivo.
Sua sorte começou a mudar com o golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff, a perseguição judicial e midiática a Lula e ao PT, e a eleição de Trump, nos EUA.
Os conservadores brasileiros, ao perceberem que dificilmente venceriam Lula no voto, começaram a desestabilizar a presidenta Dilma Rousseff no dia seguinte à derrota nas eleições. O derrotado Aécio Neves não reconhece a vitória de Dilma e usa de todos os expedientes jurídicos para impedir sua posse. Uma vez empossada para o segundo governo, Dilma foi sabotada cotidianamente no parlamento e na grande imprensa, sempre pronta a desestabilizar governos petistas. Aécio Neves, por sua vez, declarou que não a deixaria governar – só de farra.
Bolsonaro, claro, não era o candidato da direita tradicional, que o via e o vê como um palhaço – perigoso –, mas palhaço.
A crise internacional foi um dos elementos decisivos que criaram o ambiente para a derrocada do governo Dilma. O segundo foi a operação Lava Jato, o maior escândalo judicial da história contemporânea brasileira. Os promotores da Lava Jato e o juiz Moro foram elevados a heróis nacionais, apesar das denúncias abundantes de vícios processuais, que a imprensa passava ao largo.
A estratégia de desenvolvimento de Lula e Dilma tinha a Petrobras e as grandes construtoras do setor pesado como núcleo dinâmico. A exploração do pré-sal foi habilmente usada para ampliar o setor de máquinas e equipamentos pesados para produção e distribuição de petróleo, para a tecnologia de perfuração em águas profundas, para a indústria de helicópteros, navios petroleiros, barcos de suprimentos, refinarias. E para criar fundos de financiamento adicional à educação, saúde e ciência e tecnologia.
A necessária proteção dos campos petrolíferos reativou os programas de submarinos e submarino nuclear e de reequipamento das forças armadas, com fragatas, aviões de interceptação de 4a geração plus, e assim por diante.
A Lava Jato ataca esse núcleo dinâmico, afetando a credibilidade da Petrobras, e destruiu a capacidade de produção das construtoras pesadas. A queda dos investimentos da Petrobras e a paralisação das grandes construtoras geraram um efeito multiplicador tremendo na economia, reduzindo o PIB em vários pontos percentuais e aumentando em quatro milhões o número de trabalhadores desempregados.
O bloqueio político no Congresso, conduzido pelo infame Eduardo Cunha na Câmara e o senador Romero Jucá no Senado, impediu o governo Dilma de administrar a crise econômica, que estava sendo manejada de forma a reduzir seus efeitos sociais.
A Lava Jato e o bloqueio no Congresso, com os bilionários da mídia ansiosos por dar um golpe fatal no PT, criaram na população a ideia de que todas as mazelas do país se deviam aos governos do PT. Apesar de o governo Lula ter terminado com 87% de aprovação popular, esse matraqueio da direita e da grande mídia criou a mentira do populismo de esquerda que destruiu o país. Nada mais longe da verdade, mas a exploração dessas fake news foi bem sucedida, fazendo com que os estados com a maior porcentagem de classe média votassem em Bolsonaro, pois queriam “nosso Brasil de volta” – o deles.
A estratégia da direita tradicional deu em água. Aécio Neves foi incinerado pelas denúncias de corrupção, Eduardo Cunha foi preso, Serra desapareceu. Não havia nome para as eleições de 2018. Temer ficou estigmatizado como traidor e assim voltou às sombras.
Bolsonaro tem seu momento. Lula preso, os tucanos depenados e a Lava Jato bombando, seu caminho estava parcialmente desimpedido. Não totalmente, pois Lula, ainda que preso, conseguiu viabilizar um candidato competitivo, Fernando Haddad. Ex-ministro da Educação, ex-prefeito de São Paulo, professor universitário, doutor, com trajetória impecável. A escolha difícil do Estadão, Bolsonaro ou Haddad? Falso dilema, considerando a história do jornal e a diferença abismal de qualidade entre os dois candidatos.
Esse Bolsonaro candidato à presidência é, porém, apoiado pela extrema-direita internacional e se beneficiou da mesma máquina de comunicação que aprovou o Brexit, em prejuízo da Inglaterra, e que elegeu Trump. As fake news na era digital ganham proporções gigantescas e precisão nos diferentes públicos a serem manipulados. Este método foi criado pela Cambridge Analytica e difundido por Steve Bannon e sua ideia básica é explorar os temores mais profundos das pessoas e justificar os alvos dos ressentidos. Não é informar, é provocar emoções de asco e repúdio.
Ora, o Brasil não tem nenhuma semelhança com o contexto do pós Primeira Guerra na Alemanha de Weimar. Não houve guerra, não houve humilhação da pátria, a dívida externa foi paga, as reservas internacionais foram criadas pelo governo Lula e mantidas com Dilma. O desemprego era baixíssimo até 2015 e a inflação era mais alta, mas estava sob controle, e o Brasil havia saído do mapa da fome produzido pela FAO/ONU.
Que tipos de ressentimentos foram explorados, então? Basicamente três. O de parcela da classe trabalhadora afetada pela crise durante e após o governo Dilma, que comprou o discurso do PT como o partido mais corrupto da história do país. O que seria uma piada se não fosse tão sério. O de parcela da classe média tradicional, que viu seu espaço social ser invadido por segmentos emergentes com as políticas distributivas de Lula e Dilma. E, por último, mas não menos importante, o dos evangélicos neopentecostais, que resistiam ao avanço de uma cultura liberal nos costumes sociais.
O primeiro grupo, dos trabalhadores ressentidos, se acomoda bem no conceito nietzschiano. A sociedade de consumo mantém uma máxima que é a da insatisfação controlada. É da natureza desta sociedade criar uma corrida permanente por necessidades novas, criadas pela concorrência capitalista. Incluir parcelas da população na lógica do consumo de massas implica criar os meios para que a insatisfação seja aplacada, até que outra (ou outras) criada pelo sistema industrial a substituam. Logo, a distribuição de renda e o crédito ao consumidor são fundamentais para o funcionamento desta máquina de criação de insatisfações.
Um segmento da população, imerso na ideologia do mérito, não percebe, sem se sentir humilhado, que seu acesso recente aos bens e serviços desejados é resultado de uma política pública e não necessariamente de suas capacidades pessoais. E, paradoxalmente, é facilmente convencido de que o fracasso de uma política pública é a causa de seu infortúnio. A mobilidade social ascendente é mérito e a regressão, culpa do Estado ineficiente e corrupto.
O segundo tipo de ressentimento já tem outras características. Identificado por Norberto Elias, é chamado de ressentimento dos estabelecidos. Como esse tipo é muito usado, mas sem explicitação das origens teóricas, a citação de um trecho de Elias pode reforçar a abordagem.
“Esse ressentimento surge quando um grupo outsider socialmente inferior, desprezado e estigmatizado, vê-se pronto a exigir a igualdade não apenas legal, mas também social, quando seus membros começam a ocupar na sociedade majoritária as posições que lhes eram antes inacessíveis, ou seja, quando começam a entrar diretamente em competição com os membros da maioria enquanto indivíduos socialmente iguais” (Elias, 2001, p. 136 in: Grin, Monica, 2013, sn)
O conceito de Elias esclarece o mal-estar de segmentos da classe média tradicional brasileira ao ter de receber em seu espaço social trabalhadores afluentes, por aumento de renda e crédito. No caso brasileiro, há um componente adicional, o racismo. A mobilidade social do período Lula e Dilma tem cor. São pretos e pardos consumindo bens e serviços, antes reservados à classe média branca.
Os shoppings centers, cinemas, lojas de eletrodomésticos, aviões, universidades, hospitais passam a ser frequentados por essa nova população. A classe média tem um apreço pela diferenciação e ter pobres, pretos e pardos consumindo seus símbolos de status e prestígio lhe causa um tremendo mal-estar. A cronista socialite Danusa Leão expressa cruamente o ressentimento dos estabelecidos. Disse ela: – que graça tem ir a Paris se eu posso encontrar meu porteiro lá? Os exemplos são abundantes, mas esse é emblemático.
O terceiro tipo de ressentimento está no âmbito da pauta dos costumes. Os governos do PT sempre tiveram uma pauta liberal neste aspecto. O PT se associa e apoia os movimentos contra a discriminação religiosa, de estado civil, de cor, raça, sexo, opção e condição sexual, apoia as pessoas com necessidades especiais. Defende os direitos humanos no seu sentido mais amplo e civilizatório: todos nascem iguais em direitos e dignidade. Para os evangélicos neopentecostais essa é uma pauta ofensiva.
O ressentimento aqui é dos estabelecidos e dos que querem se estabelecer. Os neopentecostais têm uma doutrina de difusão da fé, segundo seus preceitos. Suas igrejas são formadas por pessoas que superaram histórias de vida complicadas, saindo de vários vícios e problemas pessoais. Numa leitura benigna, a pauta liberal os ofende e desvaloriza seus esforços pessoais. Em outra leitura, não excludente, os pastores dessas igrejas manipulam a boa-fé de seu rebanho, visando fins econômicos e políticos.
A questão é que a máquina digital de comunicação de Bolsonaro, usando a metodologia da Cambridge Analytica, gerou, e ainda gera, mensagens na medida para cada grupo específico e bombardeia os celulares e computadores dessas pessoas. Ao trabalhador convencido pelo matraquear da grande mídia sobre a corrupção do PT envia fotos da casa dos filhos do Lula, que na verdade são sedes de escolas rurais ou museus; falam de heranças milionárias de sua esposa, bilhões escondidos no exterior e assim por diante. O sujeito pelejando para consumir a nova geladeira e televisão de 80 polegadas fica indignado, aquele que não pode mais comer a picanha maturada no fim de semana, também.
Para a classe média tradicional, reeditam todas as bobagens sobre o comunismo, Venezuela e Cuba e a senhora de Higienópolis já sente que seu bairro virou passagem de gente diferente, por causa do PT. Para os neopentecostais, enviam mensagens falando da mamadeira de piroca, da pedofilia e fetos abortados. A ideia é causar o horror.
Foi explorando esses ressentimentos que a extrema-direita chegou ao poder no Brasil. E com a covardia e corrupção das instituições democráticas, pode permanecer.
(Publicado simultâneamente com a ABED – Associação Brasileira de Economistas pela Democracia)
Nota: Esse texto tem como referência, Maria Rita Kehl, Hannah Arendt, Mônica Grin, Baudrillard, Bresciani-Turroni. Agradeço a boa troca de ideias com José Prado, Solange S. do Prado e Ademir Figueiredo.
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Ilustração: Mihai Cauli
Enviado para Combate Racismo Ambiental por Sonia Rummert.