O Almirante Negro e os Heróis Nacionais

Senado aprovou em outubro inclusão de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata, no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. Após mais de cem anos, Marinha ainda a considera uma rebelião que não merece homenagem.

Por Álvaro Pereira do Nascimento, Deutsche Welle

Não me atrai a consagração de heróis ou heroínas da pátria. O herói de hoje pode ser o vilão de amanhã, haja vista as recentes imagens de monumentos derrubados por manifestantes, revoltados com o brutal assassinato de George Floyd, por um policial branco. Também temo discursos patrióticos emocionados, que procuram um inimigo a ser combatido pelos “filhos” da pátria. A história está repleta de patriotas genocidas e eles ainda estão por aí.

Mas se existe um Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, um campo de disputas deve ser aberto para grupos sociais diversos reivindicarem seus nomes preferidos. Difícil será a unanimidade entre todos, todas e todes.

Mas quem merece o título? E por quê? Posições político-ideológicas, racistas, etnocêntricas, sexistas, religiosas e nacionalistas aparecem nesses momentos em discursos geralmente conflitantes. Daí a importância da democracia na contenção de injustiças.

Em 28 de outubro último, um desses conflitos ocupou o debate que aprovou o PLS n.º 340/2018, na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado. O líder da Revolta da Chibata, João Cândido Felisberto, foi indicado para o Livro de Heróis e Heroínas da Pátria.

Era filho de um ex-escravo e uma escrava, nascido de ventre livre em 1880. Trabalhou na fazenda onde nasceu, perambulou e chegou à Escola de Aprendizes Marinheiros. Formou-se em 1895, logo após oficiais da Marinha comandarem a Revolta da Armada, que destruiu vários prédios e navios da fazenda nacional.

Embora elogiado por superiores, juntou-se a outros marinheiros incomodados com a falta de um projeto coerente e moderno para a Marinha. Faltava educar colegas indisciplinados, aumentar o soldo, punir oficiais violentos e extinguir os castigos corporais, sobretudo a chibata. Daí por diante oficiais passaram a odiá-lo e a persegui-lo até sua morte.

Oficiais se posicionaram contra qualquer lembrança do Almirante Negro, nem sempre de forma “civilizada”. Em 1934, o jornalista Aparício Torelly afirmou ter sido sequestrado por “oficiais da Marinha”, espancado e largado em lugar remoto. A razão foi publicar matérias enaltecendo a revolta no seu jornal. Caso fossem identificados, aqueles oficiais hoje entrariam na lista dos “Predadores da Liberdade de Imprensa” da organização internacional Repórteres Sem Fronteiras. O almirante Oliveira Bello, anos depois, referiu-se a João Cândido como “criatura imperfeita, por complexos originais […] individualidade destituída de propriedade e fibras para reagir, lutar e vencer”. Perda de tempo, citar outras ações e falas como essas. O certo é que esses oficiais procuravam apagar João Cândido e a Revolta da Chibata da História.

Em 2008, o marinheiro e seus colegas foram anistiados, e um monumento a João Cândido pôde ser instalado em frente a uma base da Marinha no centro histórico do Rio de Janeiro. Mais treze anos se passaram, e o Senado aprovou o PLS n.º 340 de 2018. A Marinha enviou uma nota aos senadores reprovando o Projeto. Argumentou que os marinheiros não haviam esgotado “outras formas de persuasão e convencimento”, além de quebrarem a hierarquia e a disciplina militares. Daí, a Marinha não reconhecer “o heroísmo das ações daquele movimento e o [considerar] uma rebelião”.

Instituições militares impedem diálogos francos e abertos entre indivíduos de patentes diferentes. Os limites são definidos em regulamentos militares, que ordenam quem inicia e encerra a conversa. Ultrapassar o superior hierárquico pode ser punido por insubordinação.

Havia 22 anos da abolição, em 1910. Muitos oficiais nasceram em casas-grandes ou sobrados com serviçais negros e negras. A formação familiar, os valores e costumes expostos e acionados cotidianamente, e a identidade na cor da pele punham negros e brancos em condições sociais e políticas desiguais.

A cidadania republicana não visou incluir negros e negras no pós-abolição. O recente retrocesso na política de demarcação de territórios quilombolas demonstra que a república não é a mesma para todas as cores.

A cidadania republicana foi racializada para evitar que egressos do cativeiro gozassem dos mesmos espaços de poder que a elite branca e poderosa da época. Impediu marinheiros de votarem, enquanto oficiais militares tornaram-se deputados federais e até presidentes, através do voto ou da bala.

Se havia uma cidadania racializada entre os civis, perseguindo negros com teorias eugênicas, algo ainda mais grave existia na Marinha, na qual milhares de negros ocupavam as patentes mais baixas, não podendo ser oficiais e sendo “corrigidos” por castigos corporais. Um dos revoltosos de 1910 chegou a afirmar que a Marinha parecia uma fazenda de escravos.

João Cândido venceu seus oponentes brancos, tornou-se um Mestre Sala dos Mares nas engenhosas estrofes de João Bosco e Aldir Blanc e tem seu nome cada vez mais lembrado. Vários meninos negros terão mais um herói negro ao lado de Zumbi dos Palmares, caso o projeto de lei seja aprovado na Câmara dos Deputados. Estamos de olho.

*Este artigo compõe a Ocupação da Rede de HistoriadorXs NegrXs em veículos de comunicação de todo o Brasil neste 20 de novembro de 2021.

*Álvaro Pereira do Nascimento é professor doutor em História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Imagem: João Cândido lendo o manifesto dos revoltosos – Reprodução

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