Os ventos da ‘economia verde’ não sopram para o Quilombo do Cumbe

Localizada a duas horas de Fortaleza, comunidade tradicional foi impactada por instalação de usina eólica sem consulta à população local. Caso ilustra o conceito de racismo ambiental, que o movimento negro brasileiro levou a debate na COP26

Por Beatriz Jucá e Felipe Betim, no El País

Uma única estrada asfaltada e estreita, rodeada por dezenas de viveiros de camarão, empreendimentos turísticos e dunas com gigantescos cataventos brancos ao fundo desemboca no Quilombo do Cumbe, onde vivem 180 famílias. O nome da comunidade localizada a 150 quilômetros de Fortaleza é uma referência aos espaços onde escravos africanos organizavam a resistência no período colonial. Séculos depois, esse povo segue tendo de resistir. O fez quando as empresas de camarão se instalaram por ali, nos anos noventa. E quando chegou um dos maiores parques eólicos do Ceará, na década seguinte. A promessa de energia limpa foi cumprida, mas a instalação atropelou a comunidade tradicional, que passou a ser excluída também pela economia verde. Este último caso ilustra um conceito que o movimento negro brasileiro levou para debate à última cúpula do clima, celebrada em Glasgow: o racismo ambiental.

“O racismo é a ideologia mais longeva, que construiu grande parte da humanidade e que vem antes do liberalismo, do marxismo… Até hoje a sociedade está organizada sob o racismo”, explica a arquiteta e urbanista Dulce Maria Pereira, professora da Universidade Federal de Ouro Preto e ex-presidenta da Fundação Cultural Palmares (1996-2000). O racismo ambiental, diz ela, é uma das formas como a discriminação se materializa nos territórios. “Implica sempre no exercício de poder por meio da retirada dos vários grupos humanos de seus espaços, deslocando as pessoas ou submetendo-as ao interesse de grupos que obviamente não são os negros, indígenas, pescadores ou ribeirinhos”, explica. O resultado disso, segundo o historiador Douglas Belchior, cofundador da Uneafro e da Coalizão Negra por Direitos, que esteve na COP26, é “a falta de segurança ambiental nos territórios urbanos e rurais de maioria populacional negra, impactada pela expropriação, poluição hídrica e atmosférica, eventos climáticos extremos, despejo de resíduos, falta de saneamento básico, enchentes, deslizamentos, doenças”. Não é possível, ele argumenta, discutir justiça climática sem questionar a dimensão racial.

Era 2007 quando a marisqueira Cleomar Ribeiro da Rocha, presidenta da Associação Quilombola do Cumbe, ouviu falar pela primeira vez sobre os riscos de apagão e a necessidade de gerar mais energia. Na época, um parque eólico começava a ser estruturado no território ancestral onde nasceu, cresceu, casou e criou seus cinco filhos. Falava-se em progresso e nos empregos que seriam gerados pela instalação de uma usina de energia renovável, praticamente sem impactos para os nativos. Mas os viveiros de camarão já tinham deixado a comunidade ressabiada. As empresas privatizaram áreas próximas ao mangue, ocuparam as terras usadas para a agricultura e estenderam o caminho a ser percorrido para conseguir pegar mariscos.

“A infância da gente foi nas gamboas [braços do rio]. As mulheres iam pescar camarão nativo e arrastar siri e levavam as filhas. Hoje não temos mais acesso a muitas dessas áreas, foi tudo privatizado. A gente se sente como se estivesse sendo expulso do nosso lugar”, conta Cleomar. Era difícil, portanto, acreditar na bonança geral dos ventos das eólicas, e ela se juntou a outras pessoas da comunidade para questionar o empreendimento. Mal foram ouvidos. “Víamos as coisas acontecendo sem entender nada. Quando eles chegaram, a comunidade virou do avesso”, conta, sentada em uma canoa às margens do mangue de onde tira ostra e sururu.

“A energia é limpa, sua instalação, não”

O projeto, tocado inicialmente pela empresa Bons Ventos e hoje administrado pela CPFL Renováveis, foi instalado em uma comunidade dividida. A promessa de emprego fez parte dos moradores trocarem a pesca artesanal pela empresa. Casas simples dos pescadores passaram a ser alugadas por valores exorbitantes. A única estrada que leva ao Cumbe foi asfaltada para viabilizar a passagem dos veículos pesados e das enormes hélices dos aerogeradores de energia ―os cataventos gigantes vistos de longe. O asfalto é das poucas benfeitorias reconhecidas pela comunidade, antes ilhada, sem acesso à sede urbana de Aracati em dias de chuva. Rapidamente, a comunidade viu chegarem os mais de mil homens que atuariam na instalação do parque. “Uma série de problemas que nunca havíamos visto começaram a aparecer”, conta Cleomar.

Multiplicaram-se os bares e o assédio às mulheres da comunidade, que passou a atrair também a prostituição. “Houve uma geração que as pessoas chamavam de filhos dos ventos, porque as mulheres não sabiam quem eram os pais”, conta João do Cumbe, historiador que cresceu na comunidade. O ambiente tranquilo se foi. A passagem de veículos pesados pela estrada fazia tremer as casas de taipa dos quilombolas e causou até rachaduras nas paredes da tradicional Igreja Nosso Senhor do Bonfim. Cleomar e João contam que foi preciso brigar para evitar até mesmo que um aerogerador fosse instalado dentro do cemitério da comunidade, que guarda a honra dos mortos e uma cruz onde os locais costumam rezar. “Foi um inferno que vivemos. É por isso que repetimos aqui que a energia é limpa, a instalação, não”, resume João do Cumbe.

“A economia verde não pode seguir esse modelo, fruto da escravidão da terra e dos povos, originários e africanos, mudando apenas de nome, com uma lavagem verde, mudando de cor”, defende o historiador Belchior. Ele não vê outra saída se o objetivo for, por exemplo, preservar os rios e florestas: “A titulação e reconhecimento dos territórios quilombolas é parte fundamental na garantia de direitos constitucionais da população negra, assim como as demarcações de terras indígenas em todo território brasileiro. São os povos e comunidades tradicionais que ainda defendem e preservam a floresta.”

Em 2009, o Cumbe aproveitou um feriado de 7 de Setembro para fechar a estrada e exigir uma série de reivindicações. Para se chegar ao parque eólico, é preciso passar por dentro da comunidade, e o acesso foi interrompido por 19 dias. Os quilombolas queriam garantias de mitigação dos impactos em duas décadas e pediam para serem beneficiados com algum tipo de isenção por aquela energia. Também queriam garantir a preservação da igreja e o acesso à praia onde costumavam pescar ―que sempre ocorreu pelas dunas, agora cercadas. Conseguiram avançar pouco nas negociações e até hoje não têm nenhum subsídio elétrico, mas reabriram a estrada. “Nós, que reclamávamos, passamos a ser vigiados e vistos como ameaça. A estratégia deles até hoje é a mesma dos colonizadores do passado: nos dividir para conquistar nosso território”, critica Cleomar.

Com o passar dos anos, após a instalação completa do parque, os empregos para os nativos rarearam —eles atuavam basicamente no trabalho braçal, para cavar as valas de instalação dos aerogeradores, contam os moradores. E os impactos foram se acumulando. As dunas ganharam uma estrada de pedregulhos por onde passam os veículos responsáveis pela manutenção dos equipamentos. Pássaros em sua rota de migração morriam ao se chocar com as hélices. À noite, luzes vermelhas piscam nos aerogeradores, com potencial para desorientar as tartarugas que desovam na região. A intervenção humana também acelerou o processo de movimentação das dunas, e o paredão de areia parece cada vez mais próximo da comunidade.

As tentativas de resolver um problema acabaram gerando outros. “O grande fetiche é por ônibus elétrico, a nitrogênio, a água, mas os prefeitos são incapazes de discutir o sistema de transporte atual nas grandes capitais”, compara o geógrafo Diosmar Filho, que também chama a atenção para o impacto das novas fontes de energia instaladas no Nordeste. A região é responsável por mais de 86% da energia eólica produzida no país, assim como da maior parte da energia solar. Em julho deste ano, a produção de energia eólica ultrapassou a marca de 11.000 megawatt/hora, o suficiente para abastecer toda a região. “Os municípios estão abrindo mão de ISS e os Estados, de ICMS, para que as empresas venham, tenham acesso a terras públicas e se instalem”, destaca Diosmar. “O seu modelo é tão excludente e violento como o das barragens das hidrelétricas, que colocaram debaixo d’água comunidades quilombolas e indígenas”, complementa.

Excluídos pela energia do futuro

É este o sentimento de parte da comunidade do Cumbe. “Se a energia limpa fez o que fez com a gente, imagina a suja!”, diz Cleomar. “Quando o mar não dava peixe, as lagoas que se formam nas dunas e o mangue davam nosso sustento. As dunas só ganharam importância aos de fora quando a eólica chegou”, conta. Durante algum tempo, até mesmo o direito de passar por dentro do parque para chegar até a praia foi interrompido, em parte pelo risco de transitar na área. Os cabos e fiações são identificados na duna com palhas de coqueiro e algumas placas. A Defensoria Pública teve de intervir para garantir aos nativos o acesso, por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). A esta altura, os quilombolas já tinham percebido: seguiriam excluídos até mesmo pela energia do futuro.

“Não havia muita referência na época. A energia limpa era uma demanda nossa, de que o capitalismo se apropriou. Essa história de economia verde aqui caiu por terra”, afirma João do Cumbe, de 48 anos, enquanto nos guia em um passeio pela comunidade e pelo parque eólico, apontando as placas que indicam a área das dunas como “propriedade privada”. Do alto de uma tirolesa colocada em um complexo turístico na região, mal se vê as casas dos nativos. A paisagem está tomada por dezenas de viveiros de camarões. Ao fundo, no topo das dunas de areia branca, os aerogeradores cortam o céu azul. João do Cumbe orienta o caminho da estrada aterrada na duna por onde circulamos em um carro popular enquanto lembra dos tempos em que se podia circular livremente pelas lagoas naturais formadas de janeiro a março. “Parecia até os Lençóis Maranhenses”, compara. “Quem protege o meio ambiente são as comunidades tradicionais. Somos os guardiões deste patrimônio. Eu existo em função da duna, do mangue, da lagoa. É aí que opera o racismo ambiental: tratam o assunto como se nós não tivéssemos direito à duna, ao mangue e à lagoa.”

As intervenções externas ampliam o medo de perder um território que vem encolhendo substancialmente ao longo dos anos. Reconhecida como um quilombo pela Fundação Palmares, a comunidade do Cumbe ainda luta pela regularização fundiária, etapa fundamental para ganhar o reconhecimento do Incra, responsável pela titulação dos territórios quilombolas. “Nós chamamos isso aqui de cercamento expulsivo”, explica João do Cumbe. “Se já é difícil conseguir a regularização fundiária normalmente, imagina em um lugar cercado pela carcinicultura, por uma usina eólica e por empreendimentos turísticos.” O Cumbe fica próximo à praia de Canoa Quebrada, um polo de turismo local.

Nem mesmo a identificação de sítios arqueológicos após um estudo solicitado pelo Iphan, que indicou ocupação humana na região há pelo menos 7.000 anos, barrou o avanço do parque eólico na época de sua instalação, entre 2007 e 2009. O salvamento dos objetos, que poderia durar anos, foi feito em poucos meses, e as mais de 40.000 peças foram direcionadas a um museu do Rio Grande do Norte, onde permaneceram por anos para só agora serem repatriadas em um museu da comunidade, uma das compensações conseguidas na pauta de reivindicações com o fechamento da estrada em 2009.

O que diz a empresa responsável

O EL PAÍS questionou a CPFL Renováveis sobre o que a empresa faz para minimizar o impacto dos aerogeradores no Cumbe. “O empreendimento possui todas as licenças e autorizações pertinentes junto às autoridades competentes. Todos os aspectos do projeto foram observados e suas respectivas medidas de controle ambiental foram estabelecidos pelo órgão ambiental competente e estão sendo cumpridas integralmente pela companhia”, respondeu a companhia em nota.

Este jornal também questionou quantos empregos o parque eólico gera atualmente para a comunidade e se existe algum plano para beneficiá-la diretamente pela produção de energia, como seus moradores demandam, entre outros pontos. “Ao longo dos últimos anos, foram implementados inúmeros projetos sociais por meio de ações diretas como a construção do Museu Arqueológico e Comunitário, para permitir o repatriamento de vestígios arqueológicos da região”, explicou a companhia. Ela também destaca projetos de capacitação profissional “com o objetivo de fortalecer a mão de obra local e, consequentemente, aumentar a participação local no mercado de trabalho”. Para isso, continua, foram ofertados cursos para a população local, como culinária e corte/costura, gerando “frutos positivos também apoiados pela CPFL através do fornecimento de tecido e insumos para produção, visando a confecção de máscaras e ecobags para incentivar a economia local”.

“Não reconheço mais o lugar onde nasci”

“Ainda não sei dizer se essa eólica é uma coisa boa ou ruim. Pra mim, nunca foi bom. Eu não condeno a eólica nem nada. Mas eles devem tirar aí milhões de energia, e beneficiam o Cumbe em quê? Nada. Estão ganhando dinheiro às nossas custas e mudando tudo aqui”, diz o pescador aposentado Antônio Ferreira de Oliveira, de 70 anos. Da porta de sua casa, um imóvel de tijolo aparente próximo ao mangue, ele vê dezenas de aerogeradores com suas hélices girando incansavelmente.

Antônio se aposentou logo que o parque foi instalado. Ele cresceu no Cumbe, sonhando com o tempo do inverno, quando comia mel e puxa-puxa dos engenhos da região. Viu a plantação de cana de açúcar acabar e os viveiros de camarão ocuparem áreas agrícolas e mudarem os rumos da comunidade. Até a quantidade de peixes diminuiu. O despejo frequente de produtos químicos pela carcinicultura nos aquíferos contaminou o lençol freático, salinizou a água e desestabilizou o meio ambiente. “Hoje me dá uma tristeza ver tanta árvore morta, o mangue morrendo. Caranguejo ainda tem aqui, porque o caranguejo veio pra levar o mundo nas costas. Vou pescar e, às vezes, não pego nenhum peixe, mas caranguejo ainda tem”, conta. “Hoje eu olho pro Cumbe e digo que conheço, mas não reconheço o lugar onde eu nasci.”

Quilombo do Cumbe, cercado pelo parque eólico, tanques de carcinicultura e empreendimentos turísticos. Foto: FERNANDA SIEBRA / El País

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