“Pressão da Capes por ensino à distância foi gota d’água”

Cerca de 80 pesquisadores de órgão do MEC que avalia a qualidade de cursos de pós-graduação pediram demissão. O físico Fernando Lázaro, professor da PUC-Rio, puxou a fila da debandada e explica os motivos

por Bruno Lupion, em DW

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão do Ministério da Educação (MEC) responsável por avaliar cursos de pós-graduação, viveu uma crise sem precedentes na última semana. Cerca de 80 pesquisadores encarregados de examinar a qualidade desses programas de ensino e pesquisa renunciaram aos seus cargos, em protesto contra a atual direção, presidida por Cláudia Queda de Toledo.

Um dos que puxaram a debandada foi o físico Fernando Lázaro, professor da PUC-Rio, que era coordenador da área de Astronomia e Física. Ele e os outros dois coordenadores da área renunciaram aos seus cargos na terça-feira passada (23/11), e foram seguidos por 18 pesquisadores do setor. Depois, os coordenadores e pesquisadores das áreas de Matemática e Química fizeram o mesmo.

Os motivos se assemelham aos que levaram 37 servidores de outro órgão do MEC, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), que realiza o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a também pedirem demissão de seus cargos em novembro: falta de critério na execução de políticas públicas e pressão para atender determinados interesses.

A principal atividade da Capes é realizar a avaliação quadrienal dos programas de pós-graduação no país. Ela dá notas de 1 a 7 aos cursos, que servem de baliza para os alunos escolherem as instituições e influenciam na destinação de verbas para bolsas de estudo e pesquisas. A avaliação também é determinante para a abertura de novos cursos e pode levar ao fechamento dos piores. A última avaliação foi publicada em 2017, sobre o período 2013-2016, e a próxima deve ser apresentada no ano que vem, para o quadriênio 2017-2020.

Uma liminar judicial em setembro, porém, suspendeu a realização da avaliação em andamento e, segundo Lázaro, a Capes não se interessou em reverter a decisão, mostrando descaso pela análise da qualidade dos cursos. Ao mesmo tempo, ele relata que houve pressão para a definição de parâmetros que permitissem a abertura de cursos de pós-graduação à distância, filão lucrativo para instituições privadas de ensino e a “gota d’água” que motivou a debandada.

Após a repercussão da renúncia dos pesquisadores, a Capes obteve, nesta quinta-feira, uma decisão judicial que permite a retomada da avaliação quadrienal – porém, seus resultados devem ser mantidos em sigilo. Lázaro aponta outros problemas que motivaram a renúncia coletiva, como a falta de elaboração de uma nova política decenal para a pós-graduação – a última expirou em 2020 – e classifica a atual administração da Capes como “ruim”, resultado de uma gestão “confusa” no Ministério da Educação e de um “desastre absoluto” das políticas voltadas à ciência do governo Jair Bolsonaro.

DW Brasil: Por que o sr. renunciou ao seu cargo na Capes?

Fernando Lázaro: A suspensão da avaliação pela Justiça era um dos problemas. Ia ultrapassar o prazo dos nossos mandatos, que terminam no fim de março e início de abril, e não tinha horizonte de retomada. A Capes demorou um mês para recorrer à primeira instância, depois mais um mês à segunda. O juiz de segunda instância que negou a suspensão da liminar disse que a Capes não havia deixado claro a urgência necessária. Isso para nós representou claramente o desinteresse da atual direção. Que, por outro lado, tinha uma pressa enorme para abrir a avaliação [para a aprovação] de novos cursos.

Agora, devido a essa repercussão, a Capes se mexeu e conseguiu retomar a avaliação. Com o porém que o resultado não pode ser divulgado, é uma avaliação secreta.

Por que o Ministério Público havia pedido a suspensão da avaliação?

Foi um promotor do Rio de Janeiro que alegou que ela violava o princípio da anterioridade. Na visão dele, a avaliação de um programa de pós-graduação tinha que ser uma espécie de concurso público, no qual se sabe, por exemplo, que se não tirar nota sete de um número de julgadores não passa. Mas isso não se aplica a um programa de pós-graduação, não é possível definir a priori que para o programa ter a nota “x” ele precisa formar tantos mestres e tantos doutores, pois é uma avaliação por comparação.

É como se fosse uma corrida de cem metros rasos na Olimpíada e o cara dissesse que quem ficar abaixo de dez segundos é medalha de ouro. Não existe isso, é o mais rápido naquele dia. Não se define a meta a ser atingida, a meta é o melhor resultado possível. É isso o que ocorre na avaliação, a meta é o melhor desempenho possível em aspectos conhecidos: produção intelectual, formação de recursos humanos, destino dos mestres e doutores formados, capilaridade de contatos internacionais e nacionais, impacto na sociedade. Em um dado momento, você olha o que foi feito, e os programas que se comportaram de maneira exemplar têm uma nota maior.

Se a avaliação não for concluída no ano que vem, o que acontece?

Segue valendo a de 2016, não existe outra.

Como era a pressão para autorizar novos cursos?

Achamos estranho, em particular, uma pressa enorme para que preenchêssemos, de uma hora para outra, um formulário sobre ensino à distância. Em uma área que fazer mestrado e doutorado à distância é inviável, porque física é uma atividade basicamente experimental.

Fomos comunicados às dez da noite de uma sexta-feira [12/11], véspera do feriado de 15 de novembro, que caiu numa segunda, que teríamos que preencher uma tabela sobre ensino à distância até o meio-dia da próxima sexta-feira [19/11]. O e-mail com as planilhas chegou na terça-feira, então teríamos que adequar o que a gente entende como ensino à distância para todas as áreas em três dias.

No caso do mestrado e doutorado em física pura, além da necessidade de convivência entre aluno e orientador, há a questão da infraestrutura. Na graduação, o laboratório de ensino é uma mola, um pêndulo, coisas simples. Na pesquisa, o laboratório tem equipamentos que custam meio milhão de dólares para começar.

A questão do formulário foi a gota d’água. Decidimos que não íamos entregá-lo, e então tínhamos que pedir demissão. Depois, os consultores apoiaram a nossa decisão. A mesma coisa aconteceu na Matemática e na Química.

A Capes já tem ferramentas para facilitar o crescimento das pequenas instituições que estão começando, mas isso não foi levado em consideração e foi priorizado o ensino à distância, que é uma forma incompatível com a pesquisa e a formação de pesquisadores em física.

Os cursos à distância atendem especialmente instituições do setor privado?

Sou professor da PUC há 40 anos, não tenho restrição ao fato de ser público ou privado. Minha restrição é ao fato de ser de boa ou má qualidade. A preocupação é manter no ensino à distância o mesmo nível de qualidade cobrado do presencial.

Na área da física, a gente oferece bolsa para o sujeito fazer a pós-graduação. No ensino à distância, a dinâmica que acompanhamos na graduação é a oposta. São instituições privadas que cobram mensalidade. É um perfil diferente daquelas envolvidas na pós-graduação presencial.

Houve outros motivos que levaram à renúncia da Capes?

Sim, há outros problemas. Por exemplo, uma portaria que regulamenta o Qualis, uma espécie de ranking das revistas [científicas], que desestruturou todo o processo que vinha sendo feito desde o início desse quadriênio.

E tem um problema maior que é a definição do programa nacional de pós-graduação. Isso é uma política de Estado decenal, pactuada entre todos os agentes. O último se encerrou em 2020 e até hoje não foi sequer aberta a discussão para 2021-2030, a não ser que esteja sendo decidido em gabinete fechado.

Qual a sua avaliação da gestão de Cláudia Toledo à frente da Capes?

É uma gestão ruim. Mas, justiça seja feita, não é só ela. Estou na Capes há três anos e meio e ela é a quarta presidente nesse período. No Brasil, quando treinador de futebol perde jogo é demitido. Aparentemente na Capes há um processo mais ou menos parecido. É compreensível que, quando mudou o governo, fosse trocado o segundo escalão do ministério. Mas no atual governo já estamos no terceiro presidente, cada um com uma visão diferente, e em alguns casos com pouco conhecimento do sistema de pós-graduação. O primeiro era ex-reitor do ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica], o segundo era do Mackenzie, a terceira é de uma escola isolada de Direito. Não é o caso de jogar a responsabilidade na pessoa, é resultado de um processo confuso de gestão do Ministério da Educação.

E como o sr. avalia a postura do governo federal em relação à pesquisa e ensino?

Um desastre absoluto. O CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] foi espremido no orçamento, temos um fundo nacional de ciência e tecnologia que não é aplicado. A questão do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], do meio ambiente, da saúde. Pouco apreço à ciência. Isso é a característica principal do governo federal, que acha que ciência, de modo geral, não é importante.

Fernando Lázaro: gestão do MEC é “confusa” e atuação do governo sobre pesquisa e ensino é “desastre absoluto” (Foto: privat)

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