Outra República está em formação: serviços públicos dilapidados pela privatização e gestão privada. Poder assenta-se em velhas práticas de coronelismo irrigadas por emendas parlamentares milionárias. Escândalos se alastram
Por Marcio Pochmann, em Outras Palavras
O desenlace do ciclo político da Nova República, que aconteceu após três décadas de sua existência, tem sido acompanhado pelo rearranjo institucional que aponta para a formação de outra República no Brasil. As suas principais características, ainda que aprisionadas durante o período pós-ditadura, ganharam rapidamente maior dimensão desde o curso do golpe de Estado iniciado ao final das eleições presidenciais de 2014, quando o candidato derrotado e sua base partidária não aceitaram a derrota.
Como se fosse uma espécie de Revolução de 1930 ao inverso, as forças derrotadas a partir da segunda metade da década de 2010 tomaram corpo suficiente para levar avante a desconstrução do acordo político da Nova República, estabelecido pela Constituição de 1988. Resumidamente, o fortalecimento republicano da burocracia através do Regime Jurídico dos servidores públicos civis, autarquias e das fundações públicas, da unificação e transparência do orçamento público e da representação democrática em partidos políticos nacionais.
Mas o que aconteceu, contudo, com o desenrolar de distintos governos, foi a fragilização dos compromissos constitucionais previamente estabelecidos ao longo do próprio ciclo político da Nova República. Assim, o regime jurídico único dos serviços públicos foi sendo dilapidado pela força da terceirização, da desestatização e da gestão privatizada da administração pública.
O orçamento público foi conduzido sem contemplar a unidade à seguridade social, assim como a asfixia imposta pelo presidencialismo de coalizão ao executivo fez do parlamento, em vez de representante político da nação, tomador e gestor de recursos públicos. Emendas impositivas de vários tipos, até orçamento secreto, têm sido práticas crescentes a destoar da perspectiva constitucional de unidade e transparência orçamentária.
Por fim, o desmonte do sistema partidário de representação política foi seguido pelo desaparecimento de lideranças nacionais, favorecendo a continuidade e a formação de novas oligarquias regionais. O aparecimento do chamado Centrão, ainda no governo Sarney (1986-1990), e das bancadas suprapartidárias (ruralistas, do boi, da bala, da bíblia e outras) originadas no processo constituinte, concederam artificialidade e descrédito crescentes para grande parte dos partidos políticos no Brasil.
É diante disso que se começa a perceber a reconfiguração da outra República atualmente em marcha. Um verdadeiro museu de imensas novidades que convergem com as experiências já adotadas durante o Império (1822-1889) e a República Velha (1889-1930). Da monarquia parece provir, por exemplo, o experimento do Poder Moderador, cada vez mais exercido atualmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em suas tentativas de reequilibrar as disputas entre os três poderes republicanos: executivo, legislativo e judiciário.
Da República Velha provém o esforço de recuperar o arranjo institucional que sustentou o sistema político daquela época. Ou seja, o tripé do poder assentado no mandonismo, clientelismo e coronelismo.
Desde o governo Temer (2016-2018), acentuado pelo de Bolsonaro, que o mandonismo tem sido mais acentuado pela prática da ocupação dos cargos públicos. Por não mais interessar os critérios mínimos republicanos como a competência técnica e a eficiência profissional, ganharam significância as indicações políticas fundamentadas no compromisso a quem manda, seja em cargos públicos civis ou não.
Assim, a desorganização provocada no interior da administração pública se alastrou. Os escândalos que se tornam públicos parecem revelar apenas a ponta do iceberg de negociatas e ilegalidades permitidas pelo mandonismo atual.
Por outro lado, o clientelismo tem avançado simultaneamente ao desmonte das políticas públicas de Estado. Seja na educação, ciências e tecnologia, agropecuária, economia, assistência social, entre outras, o governo opera cada vez mais atendendo às clientelas, não ao cidadão em geral. A destruição do programa Bolsa Família, entre outras políticas públicas, parece indicar o quanto o roteiro tradicional da eleição prévia de clientelas pelo governo de plantão visa atender a continuidade eleitoral a ser retribuída através do voto.
Nesse sentido, o coronelismo renovado se estabelece pela apropriação e comando do orçamento público em favor dos chefes de oligarquias regionais. No ano de 2021, por exemplo, cada um dos deputados federais, fora o orçamento secreto e outras iguarias orçamentárias, teve à sua disposição o valor de 16 milhões de reais de emenda impositiva a conectar poderes locais, clãs e distritos eleitorais, capazes de reproduzir as tradicionais oligarquias regionais.
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Imagem: Quinho