O papel das ruas no pós-Bolsonaro

Em 2018, ex-capitão baseou sua campanha nas redes sociais. O troco, agora, pode vir de outro chão. Luta para vencer o fascismo deve nascer no asfalto — periferias e centros urbanos — e estabelecer um programa de transformações reais

por Márcio Calvet Neves*, em Outras Palavras

Introdução

O argumento central deste artigo é que, mesmo no mundo digital, a política, particularmente a política econômica, continua sendo feita nas ruas. A análise sobre o que acontece nas vias urbanas, e não no espaço virtual, é que ajuda a antever como candidatos vencedores se comportarão no futuro em relação à economia.

A linha de raciocínio adquire relevância para o exame do cenário das eleições de 2022. Como exemplo, para ajudar a sanar dúvidas em relação aos rumos da política econômica de um futuro governo Lula-Alckmin, por enquanto visto com incerteza por progressistas e conservadores. Uma das grandes qualidades de Lula sempre foi o tom conciliador e moderado no exercício do poder, mas, por outro lado, ao contrário de 2002, a situação macroeconômica do Brasil hoje demanda alterações mais profundas para corrigir resultados catastróficos materializados desde o governo Temer. Ao se aliar com Alckmin, para que lado Lula tenderá?

O que aqui se defende é que decisões de política econômica não são tomadas apenas pelas lideranças políticas vencedoras de eleições majoritárias. A mobilização popular é essencial para forçar líderes e partidos a agirem e aprovarem as medidas necessárias no Congresso. São as ruas que traduzem a vontade popular, não a internet.

Não se ignora o argumento de que no mundo atual o principal palco de manifestação política passou a ser as mídias sociais. É fato que nas eleições de 2018 a campanha virtual foi essencial para a vitória de Jair Bolsonaro. Entretanto, usando a ocupação do espaço urbano para fins políticos na cidade do Rio de Janeiro como exemplo, o que este artigo sustenta é que, em última análise, é nas ruas que se pode antever para que lado uma eventual campanha vitoriosa irá tender na condução da política econômica. Espaço virtual e físico se relacionam, mas é o espaço físico que transforma em elemento tangível a vontade popular, incentivando os políticos a tomarem as medidas exigidas pelo eleitorado.

Espaço Virtual e Espaço Físico no Rio de Janeiro pós-2016

O visionário Manuel Castells, em 2002, previu as principais características do capitalismo no mundo digital, entre as quais a ascensão do nacionalismo, a transformação das relações de trabalho, o aumento da exclusão social e a polarização política. A polarização seria resultado de uma nova forma de ação, baseada em mensagens diretas e propaganda personalizada, com a intenção deliberada de aniquilar a reputação dos adversários. Neste cenário, Castells já alertava para a necessidade de termos uma melhor compreensão sobre a relação entre o espaço virtual e o espaço físico nas disputas políticas e econômicas.

O Brasil dos últimos anos confirma o alerta de Castells, mostrando como o espaço virtual, o espaço físico e as decisões de política econômica se relacionam.

Tomando como exemplo a cidade do Rio de Janeiro, o que chama a atenção na ocupação do espaço nos protestos que levaram à queda da presidenta Dilma Rousseff é que as manifestações, combinadas nas mídias sociais, ocorreram na Avenida Atlântica, na zona nobre da cidade. Até então era o bairro do Centro o tradicional palco de manifestações políticas, tanto de movimentos progressistas quanto de movimentos conservadores (tais como a Marcha pela Família com Deus pela Liberdade em 1964, a passeata dos cem mil em 1968, o movimento das Diretas Já em 1984, as passeatas a favor do impeachment de Fernando Collor em 1992 e os protestos de 2013 – que começaram como uma revolta progressista contra os preços das tarifas de transporte e terminaram como um movimento conservador contra “tudo que está aí”).

A escolha da Avenida Atlântica pelo movimento conservador foi uma ruptura na ocupação do território político e uma ressignificação do espaço público. Ao optarem por um lugar e um horário (domingo de manhã) nacionalmente associado às finalidades recreativas da elite como local de protesto, os organizadores deixaram claro como queriam que o movimento fosse visto pelo restante do país. A escolha da orla carioca foi uma decisão deliberada de identificar a localização urbana dos protestos nascidos nas redes sociais com demandas econômicas de exclusão que estão na origem do movimento virtual. O sucesso não teria sido o mesmo se os protestos tivessem ficado restritos às redes sociais, pois foi só com a ocupação do espaço público que o movimento recebeu a adesão de partidos convencionais e da grande mídia. A visão dos manifestantes, em sua maioria, brancos de classe média ou alta, tomando um dos metros quadrados mais caros do Brasil antecipou o que estava por vir: dois governos seguidos caracterizados por políticas econômicas de estado mínimo e comandados sem freio pelo mercado, refletindo as aspirações econômicas da elite e sua visão de sociedade excludente.

E por que o movimento conservador decidiu abandonar o bairro do Centro? A resposta é que Centro e Copacabana como palcos de manifestações políticas visualmente se opõem: um que reconhece o transtorno e outro que prioriza o controle e a limitação da cidadania (tão evidente nas manhãs de sábado e domingo, em que blitz policiais são rotineiramente montadas nas entradas da Zona Sul). O Centro, para os moradores da elite da Zona Sul e da Barra da Tijuca, é uma representação de ruído, poluição e confusão. Simboliza um caldeirão de diferentes classes e raças, um mundo do qual tais cidadãos de classe alta querem escapar. Contrasta significativamente com a imagem da princezinha do mar aos domingos, posterchild de um Brasil idealizado. Copacabana jamais seria palco de demandas de movimentos sociais originários da periferia urbana, que desafiassem a exclusão social.

O contraste ficou mais evidente porque os movimentos progressistas jamais abandonaram o centro, solidificando uma polarização na ocupação do espaço para fins políticos que não havia ocorrido na cidade até 2015 e perdura até hoje.

O fato de os movimentos sediados na Avenida Atlântica em 2016 e 2018 terem saído vencedores resultou na erosão dos direitos dos mais pobres, por meio inúmeras mudanças na legislação, tais como a reforma trabalhista, o teto de gastos, a autonomia do Banco Central, a delegação de poder decisório para Confederações de Indústria, Serviços e Comércio para definir autuações fiscais, a legitimação do investimento da elite brasileira no mercado acionário local por meio de empresas sediadas em paraísos fiscais, entre outras. O resultado, como sabemos hoje, foi um aumento contínuo da desigualdade, da concentração de renda, da pobreza e da fome no período de 2016 a 2022.

Conclusão

Mesmo no mundo digital, em que disputas políticas nascem e se multiplicam nas redes sociais, é na ocupação do espaço urbano que as pautas político-econômicas adquirem identidade visual para todo o País, se tornando tangíveis. Aplicando o exemplo da cidade do Rio de Janeiro para as eleições de 2022, uma forma de tentar antecipar a maneira como a economia será conduzida numa eventual aliança entre Lula e Alckmin é ver com que locais a campanha será identificada. Se as vitórias recentes dos movimentos de Copacabana levaram à concentração de renda e ao ataque aos direitos sociais, o que se espera é que nas eleições de 2022 partidários de uma democracia inclusiva tomem as ruas de bairros que representem a recuperação da cidadania inclusiva.

Referências

Castells, Manuel. (2010). An introduction to the information age, in G Bridge & S Watson (eds), The Blackwell City Reader, Wiley-Blackwell, pp. 40–48.

Garmany, Jeff; Pereira, Anthony W. (2018). Understanding Contemporary Brazil. Routledge. https://doi.org/10.4324/9781315175959

*É membro do conselho deliberativo do IJF e Mestre em ciência política pela Universidade Federal Fluminense

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