Avá-Guarani, Itaipu e PGR: análise comparativa entre as ACOs 3300 e 3555

Artigo compara duas ações, sob diferentes gestões da PGR, voltadas a indenizar os Avá-Guarani e responsabilizar o Estado pelas violações na construção de Itaipu

Por Osmarina de Oliveira [1] e Clovis Antonio Bringhenti [2], no Cimi

No dia 29 de outubro de 2019, cinquenta dias após ter sido protocolada, a Ação Civil Originária (ACO) 3300, que cobrava reparação pelos danos causados ao povo Avá-Guarani em decorrência da construção da usina de Itaipu e buscava responsabilizar o Estado brasileiro pelas violações praticadas contra os indígenas, foi extinta a pedido do Procurador-Geral da República (PGR) Augusto Aras, recém empossado em cargo de confiança do presidente da República Jair Bolsonaro. A justificativa apresentada para a extinção da ação foi sua “superficialidade documental”. Para superar essa debilidade, argumentou o PGR, precisariam ser produzidas novas provas: Em face do exposto – e objetivando a continuidade dos estudos voltados à adequada solução da questão jurídica posta –, o Ministério Público Federal requer a extinção do processo sem resolução de mérito, nos termos do art. 485, VIII, do Código de Processo Civil, reservando-se esta Procuradoria-Geral da República a possibilidade de ajuizamento de nova demanda.[3]

Os Guarani ingressaram com pedidos no STF para reverter a ação, já que eram parte do processo e não foram consultados, mas o ministro Alexandre de Moraes negou reabrir o processo, embora tenha aceitado os Guarani como litisconsórcio passivo.

Ainda que o argumento do procurador não tenha convencido aos Guarani e seus apoiadores, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF) tratou de produzir novas provas. Foram produzidos dois novos documentos.

O primeiro foi o Relatório da Pesquisa “Avá-Guarani X Itaipu Binacional”, organizado pelo Observatório Indígena, coordenado por docentes da Universidade de Brasília (UnB), do qual fazemos parte, além de Marcelo Zelic, organizador do Armazém Memória. Apesar de não agregar novas fontes, esse relatório auxiliou na sistematização de um conjunto de informações disponíveis nos arquivos do Armazém Memória e chamou a atenção para um mecanismo de protelação da efetivação do direito indígena, que consiste em solicitar novos estudos, desconsiderando os que já foram realizados e criando um ciclo vicioso que se repetiu desde os anos 1980, onde vários estudos foram realizados e desconsiderados década após década, conforme aponta o documento.

O outro documento, intitulado “Atlas do Desterro Oco’y-Jakutinga” e organizado pelo professor Paulo Tavares, geógrafo da UnB, trouxe um conjunto de informações novas, baseadas em documentos encontrados pelas pesquisadoras Osmarina de Oliveira e Maria Lucia Brant de Carvalho, como mapas das margens do rio Paraná e do Projeto Integrado de Colonização (PIC) Ocoy I e II, em que é possível identificar a cobertura vegetal nativa da região no período que antecede o início da represa, ainda preservada, e a presença dos Guarani na região, ajudando a superar uma lacuna que eram as “provas” da presença Guarani no PIC Ocoy, para além do Jacutinga. Até o momento, poucos são os documentos anteriores à década de 1970 que trazem informações sobre a existência de aldeias nas margens do rio Paraná – ausência que é contrariada pela viva memória dos Guarani.

No dia 16 de dezembro de 2021, a PGR ajuizou uma nova ação contra a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Itaipu Binacional, a ACO 3555 – que deveria superar as “debilidades” da ação anterior, a ACO 3300, ajuizada pela então PGR Raquel Dodge. Para nossa surpresa, os novos documentos identificados pelos pesquisadores sequer são citados na ação protocolada por Aras, quanto mais agregados. Causa estranheza essa atitude. Se eram provas que faltavam e elas foram apresentadas, por que não agregá-las ao novo documento?

Comparativamente, a ACO 3555 é sintética, não detalha informações importantes que constam na ACO 3300. Se o objetivo era agregar novas informações e trazer provas mais robustas, o processo está falho. Percebe-se que, ao contrário do alegado, documentos e fontes foram suprimidos

Ainda sobre esse aspecto, é importante destacar que a ACO 3555, do ponto de vista histórico, está pouco fundamentada e deixou de lado o levantamento documental realizado pela antecessora do PGR Augusto Aras e publicado pelo próprio MPF, como elemento probatório da ACO 3300. Há inúmeras lacunas que, como peça inicial, nos preocupam, como por exemplo a informação de que o PIC Ocoí incidia sobre as duas unidades sociológicas, o que não é verdadeiro.Tanto o terço territorial, destinado ao assentamento de colonos, quanto os dois terços restantes, alagados, incidiram integralmente sobre o território de duas unidades sociológicas Avá-Guarani: Ocoy-Jacutinga e Guasu Guavirá…. (ACO 3555).

Comparativamente, a ACO 3555 é sintética, não detalha informações importantes que constam na ACO 3300. Se o objetivo era agregar novas informações e trazer provas mais robustas, o processo está falho. Percebe-se que, ao contrário do alegado, documentos e fontes foram suprimidos. Isso pode ser observado rapidamente no tamanho das iniciais: a ACO 3300 possui cerca de 150 mil caracteres, ao passo que a ACO 3555 possui aproximadamente 58 mil, ou seja, é quase dois terços menor. Sabemos que não é o tamanho das iniciais que importa, mas os 150 mil caracteres da ACO 3300 não se repetem e se complementam, fundamentando uma peça bastante embasada.

As reduções não foram apenas na fundamentação histórica e no tamanho da peça, ela se revelou reduzida também nos pedidos e nos réus, como veremos a seguir. A ACO 3555 excluiu o estado do Paraná como réu na ação. Algo estranho, uma vez que o relatório da Comissão Estadual da Verdade Tereza Urban (2017) é fecundo em demonstrar como o Estado participou de todos os atos de violações, em especial territoriais. Antes de entrarmos nas particularidades das ações, veremos o que há de comum entre elas.

Nos pedidos há algo em comum entre as duas ações, que é a “citação dos réus para que, querendo, ofereçam defesa a esta ação”; a “intimação dos indígenas tradicionalmente originários do Tekoha Ocoy-Jacutinga e do Tekoha Guasu Guavirá, os já identificados e os que venham a ser identificados por meio dos estudos realizados de acordo com o pedido formulado no item ‘5’, para que, nos termos do art. 232 da CF, tenham conhecimento da presente ação, possam ser ouvidos e sejam-lhe assegurados meio efetivos de participação processual, em cumprimento à Convenção 169 da OIT”; e, fundamentalmente a “intimação da República do Paraguai para, querendo, integrar esta ação em vista da natureza jurídica da ré Itaipu Binacional”.

A ACO 3300 inclui também a necessidade de “ampliação do rol de testemunhas, com vistas a possibilitar a oitiva dos sobreviventes” e a “oportunidade para provar as alegações por todos os meios em direito admitidos, sobretudo os seguintes: perícia antropológica; perícia ambiental; prova testemunhal; inspeção judicial; juntada de documentos e relatórios no Inquérito Civil”. Por esses elementos, fica demonstrada que a ACO 3300 era mais completa.

Nas ações diretas de reparações há uma imensa diferença entre as duas ações.  A ACO 3555 entende que a reparação é apenas a devolução de terras aos indígenas em quantidade igual à que ocupavam antes da formação do lago.6) condenar a Itaipu Binacional a indenizar os Avá-Guarani descendentes das territorialidades do Ocoy-Jacutinga e do Guasu Guavirá pelos territórios e perda dos recursos naturais e imateriais que tradicionalmente possuíam, mediante aquisição de áreas de iguais qualidade, extensão e condição, como medida reparatória necessária. (Grifamos). (ACO 3555)

O item 10, onde são mencionados os direitos socioculturais violados, remete à necessidade de estudos para identificar as famílias e pessoas que tiveram remoção forçada, dando a entender que não se trata de uma indenização coletiva, mas pontual. Novamente, o mecanismo de protelação da efetivação de direito é acionado pela Procuradoria-Geral da República, condicionando a novos estudos a definição do direito, além de repetir a estratégia de negação sofrida pelos Avá-Guarani, que no passado tiveram a identidade negada e o caráter coletivo suprimido, individualizando o problema para economizar as despesas da empresa.10) condenar a União, a Funai, o Incra e a Itaipu Binacional, solidariamente, a reparar, preferencialmente in natura, os danos materiais e morais causados pela violação dos direitos territoriais, étnicos e socioculturais da etnia Avá-Guarani das territorialidades do Ocoy-Jacutinga e do Guasu Guavirá, resultantes da construção da UHE de Itaipu, por atos e omissões consistentes na negação da existência, identidade e presença dos Guaranis nos territórios tradicionalmente ocupados e pela remoção forçada dos indígenas sem indenização e reassentamento, de forma a ser definida após os estudos requeridos no item “5” e consulta livre e informada aos descendentes das comunidades afetadas (os já identificados e os que venham a ser identificados), com a preservação do seu modo de vida, usos e costumes (grifamos) (ACO 3555).

Como, no entendimento do procurador Augusto Aras, expresso na peça, os impactos não foram para além de perda territorial e algumas remoções, a causa não ultrapassaria o montante de R$ 10 milhões. A título ilustrativo, se consideramos que os Guarani utilizariam a verba para aquisição de terras, e considerando o montante de R$ 100 mil o valor por hectare de terra no oeste do Paraná, a cifra permitiria a compra de módicos 100 hectares.Requer provar o alegado por todos os meios juridicamente admitidos, sobretudo perícia antropológica, ambiental, prova testemunhal, inspeção judicial, juntada de documentos e relatórios.
Embora de valor inestimável, por cautela dá-se à causa o valor de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). (ACO 3555)

Nessa ação, o caso do esbulho do Tekoha Guarani Kuê – que não foi coberto pelo represamento de Itaipu – em Foz do Iguaçu, na década de 1970, de responsabilidade da Funai e Incra, não entra nas tais compensações, mesmos que sejam fartas as provas de violações e crimes praticados pelos referidos órgãos e seus servidores, todos identificados.

A ACO 3300, ao contrário, admitia que houve diferentes violações e responsabilidades e que, por cada uma delas, cabia indenizações. A ação anterior, em síntese, pedia:

  1. Responsabilização civil pelos atos de discriminação e negação da existência;
  2. Danos morais coletivos “com vistas a reparação da lesão e sanção pelos atos ilícitos e a inibição de condutas de tal gravidade” na ordem de R$ 50 milhões por ano desde a implantação da Usina;
  3. Danos materiais pelas remoções forçadas na ordem de R$ 100 milhões anuais desde a implantação da usina;
  4. Compensação financeira anual de R$ 100 milhões anuais desde a implantação da Usina, em forma de compensação (royalties) a ser aplicada em projetos;
  5. Condenação da Funai, que seria obrigada a demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelo povo, e da Itaipu, que teria a atribuição de reparar as terras que foram alagadas em igual tamanho.

A ação também previa que a Itaipu fosse condenada a fazer um pedido de desculpas público.

Em ambos os processos, há previsão quanto à modificação no currículo escolar, para inserção do tema da territorialidade e da remoção forçada dos Guarani no Oeste do Paraná, bem como ações para promover a cultura e combater o racismo. O que a ACO 3555 trouxe de novidade foram as medidas emergenciais (liminares) de assistência e proteção das comunidades.

É necessário que se encerre a prática de protelar a efetivação dos direitos devidos à comunidade Avá-Guarani, incorporando os estudos já realizados ao longo de todas as décadas passadas e as provas documentais já consolidadas, inclusive pelo próprio MPF, e demais relatórios disponíveis e juntados na ACO 3300

São brevemente essas as nossas considerações. Certamente novas leituras evidenciarão outros elementos que passaram despercebidos. Reconhecemos a importância da PGR ter ingressado com essa ação, mesmo não sendo como gostaríamos e lutamos (Guarani e apoiadores) para que fosse feita. Importante destacar que desde 2015 os xamãs (Oporaíva) Guarani e os líderes políticos se reuniam a cada seis meses em assembleia no Ocoy, com presença dos Avá-Guarani (paranaenses) no Paraguai e Mbya da Argentina (iguaçuenses), todos impactados pela represa, para rezar e pensar estratégias políticas. Vale destacar a presença dos Avá do Paraguai, em especial do Tekoha Sause e da equipe da Conapi, nas pessoas de Mariblanca Baron e Claudia Cáceres. O objetivo à época era uma ação conjunta, mas em 2018, após avaliação dos Procuradores da República, chegou-se à conclusão de que seria melhor fazer a ação apenas do lado brasileiro e intimar a República do Paraguai para que, caso tivessem interesse em ingressar no processo, em vista da natureza jurídica da ré Itaipu Binacional, pudessem fazê-lo posteriormente.

Cremos que o fundamental, no momento, é o ingresso dos Guarani na ação, e imediatamente incluir os elementos faltantes, fazendo valer o compromisso assumido pelo Brasil com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), pois, como vimos, a ACO 3300 além de mais fundamentada, continha um conceito de reparação mais amplo. Assim, aceitar os Guarani como parte ativa do processo e incorporar à ACO 3555 seus reclamos é parte da necessidade jurídica de reparação que o Brasil necessita; e fundamentalmente, no caso em questão, é necessário que se encerre a prática de protelar a efetivação dos direitos devidos à comunidade Avá-Guarani, incorporando ao processo os estudos já realizados ao longo de todas as décadas passadas e as provas documentais já consolidadas, inclusive pelo próprio MPF, e demais relatórios disponíveis e juntados na ACO 3300.

Na ACO 3300, se passaram 50 dias até que a ação fosse extinta. A tramitação da ACO 3555 já ultrapassa a duração de sua antecessora. Esperamos que ela seja julgada, os Guarani reparados e os culpados punidos.

Foz do Iguaçu, 07 de fevereiro de 2021


*O texto final contou com revisão e colaboração de Marcelo Zelic, do Armazém Memória.

[1] Membro do Cimi e mestranda no PPG-IELA da Unila. Pesquisa e história e cultura dos Guarani no Oeste do Paraná e desenvolve trabalho com as comunidades Guarani. [email protected]

[2] Professor de História na Unila. Coordenador do Observatório da Temática Indígena na América latina (Obial). Membro do Cimi. Pesquisa e atua com o povo Guarani. [email protected]

[3] PETIÇÃO SDHDC/GABPGR Nº 345518/2019. Acesso em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/ACO3300Itaipu.pdf

Imagem: Indígenas Guarani às margens do lago de Itaipu (PR). Foto: Paulo Porto

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