Destruição a mando dos Estados Unidos. Por Silvio Caccia Bava

Editorial do Diplomatique Brasil

Sérgio Moro foi uma peça-chave na guerra econômica praticada pelos Estados Unidos contra as empresas brasileiras que competem com as multinacionais norte-americanas. Essa guerra é mundial, não ocorre só no Brasil, e tem abatido empresas europeias e latino-americanas. Por vezes, essa guerra se estende a governos que buscam maior autonomia, tentando escapar do controle do império.

Desde 2008, 26 empresas pagaram multas de mais de U$ 100 milhões ao Tesouro norte-americano. As maiores empresas europeias foram as primeiras a serem atacadas por uma potência que se arroga o direito de atuar em qualquer país. Nos últimos vinte anos, empresas alemãs, francesas, italianas, suecas, holandesas, belgas e inglesas foram condenadas por corrupção, crimes bancários ou por não obedecerem às ordens norte-americanas a embargos impostos pelos Estados Unidos.1 Sobre elas recaíram multas colossais; foram praticamente banidas das concorrências e passaram a ser tuteladas por controladores designados pela justiça norte-americana. É o ataque pela via do lawfare. O resultado é que muitas delas quebraram e abriram campo para as multinacionais norte-americanas.

O governo brasileiro e os demais que foram pressionados pelos Estados Unidos aprovaram em seu território leis de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, que legitimaram a intervenção norte-americana. No Brasil, essa lei foi aprovada pelo Congresso em agosto de 2013 (Lei n. 12.846). É a base legal para o ataque às empreiteiras de obras públicas e à Petrobras; a base legal que foi dar na Lava Jato. Essa lei atende a um pacto internacional firmado pelo Brasil e trata da responsabilização administrativa e civil de empresas com práticas de corrupção contra a administração pública, nacional ou estrangeira.2

lawfare surgiu nos anos 1990 como uma nova modalidade de guerra. Trata-se do uso das leis contra o adversário, considerado inimigo, para causar o maior dano possível, acuá-lo por meio da coerção, deslegitimá-lo perante governos e opinião pública. É uma ação coordenada. Os serviços de inteligência e espionagem norte-americanos – Federal Bureau of Investigation (FBI) e National Security Agency (NSA) – coletam informações sobre as empresas a serem atacadas e seus executivos e as repassam ao Departamento de Justiça norte-americano (DOJ). Com essa munição, o DOJ investiga os principais executivos dessas empresas e, quando é o caso, manda para a prisão alguns deles. Assim, assassina reputações pessoais, impõe multas colossais a essas empresas e as pressiona de muitas maneiras para que assumam a culpa que lhes é atribuída.

Em 2014, o governo Obama passou a considerar a lei internacional anticorrupção como um instrumento legítimo de política externa dos Estados Unidos. O Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) é aplicável a todas as empresas que negociem ações nas Bolsas de Valores dos Estados Unidos, sejam elas norte-americanas ou não. O FCPA permite ao governo norte-americano, entre outras coisas, aplicar multas enormes, obrigar empresas a contratar monitor externo, declarar inidônea uma empresa e suspender sua presença nos mercados de valores mobiliários.3

O ataque à economia brasileira começou a ser preparado em 2007. A embaixada norte-americana investiu em cursos e seminários de formação com o objetivo de criar uma rede de especialistas locais capazes de defender as posições norte-americanas, sem que parecessem ser “peões de Washington”, nas palavras do embaixador Clifford Sobel.4

A embaixada criou o cargo de assessor jurídico residente e trouxe para o Brasil uma procuradora especializada na luta contra a lavagem de dinheiro e o terrorismo, leia-se: especializada no lawfare. A partir de 2008, durante dois anos, Karine Moreno-Taxman desenvolveu no Brasil o Projeto Pontes, organizando cursos e seminários para juízes, promotores e autoridades policiais brasileiras para que se apropriassem dos métodos de trabalho e da doutrina jurídica norte-americana (especialmente as delações premiadas). O Projeto Pontes se propunha também a construir métodos informais de relação entre norte-americanos e brasileiros, fora dos tratados judiciários de cooperação bilaterais.

Nesse momento, Sérgio Moro, então responsável pelo caso do Banestado, foi convidado a participar de um programa de relacionamento com o Departamento de Estado norte-americano. Em 2007, ele viajou para os Estados Unidos e foi a várias reuniões com o Departamento de Justiça, com o FBI e com o Departamento de Estado.

Em 2009, numa conferência anual de policiais federais brasileiros, em Fortaleza, Moro abriu os debates e convidou a assessora jurídica da embaixada norte-americana a falar para quinhentos policiais sobre “a luta contra a impunidade”. Em sua fala, ela apontou duas questões centrais: “Para que o Judiciário possa condenar alguém por corrupção é necessário que o povo odeie essa pessoa” e “A empresa deve sentir que realmente abusou de sua posição e exigir sua condenação”. Como se pode observar, não se trata de fazer cumprir a lei, mas de usar a lei como instrumento de coerção.

Moro, a partir de então, passou a defender uma linha dura no combate à corrupção, a adoção de delações premiadas, escutas telefônicas, uma maior elasticidade na apresentação de provas e mesmo a instrução de ordens preventivas de prisão.

Em 2013 foi aprovado pelo Congresso Nacional o projeto de lei anticorrupção, que incluiu a maioria dos mecanismos da lei norte-americana sobre práticas de corrupção no exterior. Pela lei norte-americana, todas as grandes empresas do mundo podem ser alvo de sua atenção. A nova lei brasileira abriu espaço para seu uso como arma de guerra no lawfare nacional. Nesse mesmo ano, em novembro, o procurador-geral adjunto do DOJ anunciou a viagem ao Brasil do chefe da unidade da luta internacional contra a corrupção para treinar promotores brasileiros.

A espionagem da NSA direcionada à presidenta Dilma Rousseff, denunciada em 2013, foi mais um elemento desse cenário.

Em 17 de março de 2014 foi formada a Lava Jato, criada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Para coordenar a Lava Jato foi designado o procurador Deltan Dallagnol, então com 34 anos. Sérgio Moro integrou a equipe.

lawfare teve início. O objetivo norte-americano era reduzir a influência do Brasil na América Latina e na África, e atacar as gigantes brasileiras da construção Odebrecht, Camargo Corrêa e OAS.

Thomas Shannon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil, declarou, em 2013, a preocupação norte-americana com o projeto brasileiro de integração econômica da América do Sul. Segundo o embaixador, a Odebrecht teria se tornado parceira do governo brasileiro para a construção de um bloco internacional coeso de orientação progressista e de esquerda, o que atrapalhava os planos dos Estados Unidos para a América do Sul.5

Em outubro de 2015, dezessete membros do DOJ e do FBI visitaram confidencialmente os integrantes da Lava Jato em Curitiba e, durante quatro dias, receberam informações do Ministério Público Federal (MPF) que iriam subsidiar a ação norte-americana contra empresas brasileiras. Dois promotores do DOJ, em um pedido de vista, declararam que se dirigiam a Curitiba “para reuniões com autoridades brasileiras a respeito da investigação sobre a Petrobras, com o objetivo de levantar evidências adicionais sobre o caso e conversar com advogados sobre a cooperação de seus clientes com a investigação em curso nos Estados Unidos”. Vários dos delatores premiados da Lava Jato foram abordados por eles.

Os integrantes da Lava Jato repassaram aos norte-americanos nomes de empresários que poderiam ser chamados a colaborar com a justiça norte-americana. Informações sobre delatores como Alberto Youssef e Nestor Cerveró, assim como sobre dezesseis delatores que fizeram acordos com o MPF em 2014 e 2015 em troca da prisão domiciliar, foram repassadas aos norte-americanos.6

Essa não é a única prática ilegal do grupo da Lava Jato. Por ordem dos promotores, sem nenhum amparo legal, foram grampeados os telefones dos advogados de Lula e dele próprio. Uma das gravações, uma conversa entre Lula e a então presidenta Dilma Rousseff, foi encaminhada para a Rede Globo por Sérgio Moro, e sua divulgação contribuiu para o golpe que iria depô-la alguns meses depois, por meio do artifício do impeachment, sem nenhuma acusação que o justificasse. Não importou que esse vazamento seja crime.

Desde 2014, Leslie Backschies, chefe da unidade internacional do FBI, tem a tarefa de ajudar os integrantes da Lava Jato.7

A Odebrecht foi a primeira vítima. As resistências de seus proprietários foram vencidas quando o DOJ ordenou ao Citibank, que tem a conta da empresa nos Estados Unidos, que intimasse a Odebrecht a encerrar sua conta ou os valores iriam a liquidação judicial, o que a levaria à exclusão do sistema financeiro internacional e à falência. Em fins de 2016, a Odebrecht “concordou” em colaborar.

Em 2017, a popularidade de Moro e da Lava Jato era alta. E Lula foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, acusações feitas “por fatos indeterminados”. Em 7 de abril de 2018, Lula foi preso a mando de Sérgio Moro, medida que afrontou a Constituição brasileira e tirou da eleição presidencial de 2018 seu candidato mais forte. É de notar a anuência e o silêncio do Supremo Tribunal Federal em relação a esse novo crime.

Em 2019, diante das denúncias feitas pelo The Intercept das conversas entre membros da Lava Jato, hackeadas por Walter Delgatti, ficou evidente a manipulação política da justiça pelos membros da Lava Jato, liderados por Moro. O STF reconheceu a inconstitucionalidade da prisão de Lula, que foi libertado em novembro desse ano.

Sem Lula na disputa, Bolsonaro se elegeu e, para surpresa geral, Moro foi convidado e aceitou ser o novo ministro da Justiça. O juiz que condenou o candidato que liderava as pesquisas foi convidado pelo presidente eleito. Foi um escândalo internacional. Mas fez sentido. Nas palavras de Moro: “A Lava Jato foi quem mais combateu o PT”. A declaração mostra a parcialidade do julgamento. Tal engajamento político levou o STF a votar e aprovar a moção de suspeição do juiz Sérgio Moro, em junho de 2021.

Como ministro, Moro teve vida curta. Assumiu em 2019 com a posse do novo governo e demitiu-se em abril de 2020, colecionando uma série de atritos com o presidente, entre eles a disputa pelo controle da Polícia Federal (que é atribuição do ministro), que para Bolsonaro é vital para evitar a prisão de seus filhos por delitos de várias ordens, e também porque o presidente o via como um ministro bem avaliado na opinião pública e concorrente à sua reeleição. Assim, Bolsonaro foi esvaziando os poderes de Moro e o colocou em situação insustentável; por fim, enviou uma mensagem: “Tenha a dignidade de se demitir”.

Sem alarde, Moro se mudou para os Estados Unidos e foi convidado para ser diretor de um setor do escritório Alvarez & Marsal, especializado em serviços de consultoria, aprimoramento de desenho de negócios e gestão de recuperação. Essa empresa com escritórios em 28 países e mais de 5 mil funcionários em quatro continentes, com escritório no Brasil, é administradora judicial da Odebrecht e tem como clientes a OAS, a Galvão Engenharia e outras afetadas pelas iniciativas do lawfare norte-americano. Entre seus quadros estão Steve Spiegelhalter, ex-promotor do DOJ; Bill Waldie, agente especial aposentado do FBI; e Robert DeCicco, ex-NSA. É evidente o envolvimento da A&M com processos de lawfare.

Seis meses após entrar como diretor-gerente de uma área, Moro foi rebaixado a consultor, e a A&M nega que ele faça parte de sua equipe permanente. Moro se demitiu da empresa em outubro de 2021 e voltou ao Brasil para ser candidato a presidente, mas, se não der, se propõe a ser candidato a senador. Se eleito, se beneficiará da imunidade parlamentar e assim evitará enfrentar o julgamento dos crimes que praticou.

No Congresso norte-americano há uma preocupação com o envolvimento dos agentes do DOJ com a Lava Jato. Parlamentares democratas suspeitam do envolvimento do Departamento de Justiça dos Estados Unidos “em procedimentos investigativos e judiciais recentes no Brasil, que geraram controvérsia substancial e são vistos por muitos no país como uma ameaça à democracia e ao Estado de direito”. Um documento assinado por vinte parlamentares, tendo à frente a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, questiona o secretário de Justiça, Merrick Garland, sobre o assunto.8

1 Frédéric Pierucci e Matthieu Aron, Arapuca estadunidense – Uma Lava Jato mundial, Kotter, Curitiba, 2021, p.326.

2 Disponível em: tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edição-semanal/lei-anticorrupção.

3 Disponível em: studioestrategia.com.br/2020/08/31/lei-anticorrupcao-americana.

4 Gaspar Estrada e Nicolas Bourcier, “Le naufrage de l’opération anticorruption ‘Lava Jato’ au Brésil” [O naufrágio da operação anticorrupção “Lava Jato” no Brasil], Le Monde, 11 abr. 2021.

5 Disponível em: conjur.com.br/2019-jul-12/brasil-atrapalhava-planos-eua-america-sul-embaixador.

6 Disponível em: apublica.org/2020/03/como-a-lava-jato-escondeu-do-governo-federal-visita-de-fbi-e-procuradores-americanos.

7 Gaspar Estrada e Nicolas Bourcier, op. cit.

8 Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/parlamentares-dos-eua-cobram-explicacao-do-governo-sobre-relação-de-americanos-com-lava-jato-25050747.

Ilustração: Claudius

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