“Queremos combater na Ucrânia”. Por Eduardo Guimarães*

Que estrangeiros se alistem para defender um povo ou uma causa em outro país não é novidade. Mas o que move os “voluntários brasileiros” escapa das explicações convencionais. Exceto se a fantasia da guerra já não precisar de uma causa

No Outras Palavras

Em 5 de março de 2022, com o título “Prontos para morrer: brasileiros gastam até R$ 7 mil para ir à Ucrânia”, o UOL publicou uma matéria sobre a mobilização de voluntários brasileiros para combater na guerra da Ucrânia. O alistamento é feito na Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia, unidade militar criada pelo governo ucraniano com a finalidade de reunir voluntários estrangeiros para lutar contra a Rússia. O governo ucraniano declarou manifestar “apoio integral garantido”, mas que as despesas com a viagem devem ser assumidas pelos próprios voluntários.

A criação de unidades militares internacionais formadas por voluntários estrangeiros para combater em uma guerra não é uma novidade. Um clássico exemplo foi a criação das Brigadas Internacionais durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) destinadas a combater ao lado dos republicanos contra as forças fascistas do General Francisco Franco, apoiadas pela Itália fascista e pela Alemanha nazista. Também não é novidade a participação de brasileiros em unidades militares internacionais – as Brigadas Internacionais puderam contar com o apoio de brasileiros durante os combates.

A participação dos brasileiros nas Brigadas Internacionais foi motivada pela defesa do regime republicano espanhol. Tratava-se, portanto, de uma motivação política, e a defesa da república – ou, mais ainda, a luta contra o fascismo – não se reduzia a um povo ou a um Estado, mas devia ser internacionalizada, devia mobilizar todos os povos por uma mesma causa. Será que a participação dos brasileiros na Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia seguiu o mesmo princípio reconhecido na Guerra Civil Espanhola? Para responder a essa pergunta, vou me basear nas falas dos voluntários brasileiros publicadas na matéria do UOL.

Um dos voluntários é Adalton Silva (ex-militar). O ex-militar solicita apoio do governo federal “para embarcar à Ucrânia e ajudar os irmãos ucranianos”. A expressão “irmãos ucranianos” faz referência à existência de algum laço fraterno entre brasileiros e ucranianos. Provavelmente, a natureza desse laço fraterno poderia residir em uma mesma origem étnica ou histórica dos dois povos, o que não é verdade. Etnicamente, os brasileiros estão mais próximos de Angola do que da Ucrânia e, historicamente, mais da Argentina e do Uruguai. Talvez, a expressão seja uma alusão a uma suposta fraternidade universal, envolvendo todos os povos da Terra, e não especificamente brasileiros e ucranianos. Ainda assim, seria necessário explicar o motivo desses brasileiros se voluntariarem para combater na guerra na Ucrânia e não na guerra civil da Síria.

Antes de percorrer outro caminho de investigação, faz-se necessário esclarecer que não pretendo condenar a participação de voluntários estrangeiros na guerra da Ucrânia, incluindo voluntários brasileiros. Minha proposta é entender de que maneira surgiu tão rapidamente um grupo de voluntários brasileiros para combater uma guerra “aparentemente” sem grandes motivações ideológicas, políticas ou étnicas. Condenar a ocorrência de uma guerra, seja ela entre duas ou mais nações ou no interior de uma mesma nação (por exemplo, a perseguição de pretos e pobres conduzida pelo Estado brasileiro), é a reação esperada de qualquer pacifista ou antibelicista. No entanto, voluntariar-se para participar de uma guerra é uma reação muito diferente daquela condenação.

Como estava dizendo, se percorrermos outro caminho de investigação, talvez fique claro o motivo de alguns brasileiros rapidamente terem se voluntariado para participar na guerra da Ucrânia. Um evento da história recente ucraniana já vinha fascinando há alguns anos militantes e políticos bolsonaristas. Em 2014, manifestantes ucranianos pró-Europa invadiram prédios governamentais em protesto contra o presidente ucraniano pró-Rússia. Apesar de esse episódio ter sido acompanhado pela ascensão ou fortalecimento de grupos neonazistas e de extrema-direita, o peso desses grupos na política ucraniana ainda é motivo de debate. Por um lado, milícias armadas neonazistas foram assimiladas às forças regulares ucranianas e, durante o governo de Petro Poroshenko, ao Ministério do Interior. Por outro lado, a participação política de grupos neonazistas é pequena, de acordo com alguns pesquisadores, e a representação parlamentar de partidos de extrema-direita é pouco expressiva.

Não pretendo me alongar nesse debate, mas me interessa sublinhar a interpretação singular da história recente da Ucrânia realizada pelos bolsonaristas. Provavelmente, tenha sido esse o motivo que levou o deputado federal Daniel Silveira (na época filiado ao PSL) tuitar, em 2020, que estava “na hora de Ucrânizar (sic) o Brasil”. A então militante bolsonarista Sara Winter também já havia declarado ter sido “treinada na Ucrânia”. O elogio das invasões aos prédios governamentais ucranianos entre 2013 e 2014 também já havia sido feito no site Vida Destra, do advogado Fábio Talhari. Ou seja: não é de hoje nem de ontem que a Ucrânia assumiu no imaginário bolsonarista e além, por conta da movimentação de grupos neonazistas e de extrema-direita na história recente da Ucrânia, um lugar politicamente privilegiado, alvo de fascínio e admiração.

Talvez, seja possível confirmar a suspeita de que a motivação dos voluntários brasileiros para combater na Ucrânia seja política: defender um país que se tornou no imaginário bolsonarista um modelo a ser seguido. Seja como for, o interesse dos voluntários brasileiros não é casual, pois o fascínio pela imagem que havia sido elaborada sobre a Ucrânia já circulava nas redes sociais, grupos de WhatsApp e declarações de bolsonaristas. De algum modo, havia se formado uma imagem positiva desse país do leste europeu.

Ao fascínio pela imagem dos grupos de extrema-direita da Ucrânia veio se juntar um outro fator. Bruno Evans, ex-militar e voluntário brasileiro, disse estar “disposto a morrer na guerra, se necessário”. O sacrifício de um cidadão pelo seu país ou de um revolucionário pela sua causa não é um tema novo. A literatura a respeito dos sacrifícios cometidos pelos soldados durante a guerra em nome de seu país ou de sua causa é abundante. Esse sacrifício está associado a uma fantasia que mescla o heroísmo e a imortalidade. O herói – nesse caso, Bruno Evans –, disposto a realizar sacrifícios em nome de um país, inclusive sacrificar a própria vida, torna-se um herói, pois é elevado a uma condição superior em relação ao restante da humanidade, mas também se torna imortal, já que seus feitos serão lembrados pelas gerações vindouras.

Não há nada de especial nessa fantasia – na verdade, desde cedo as crianças elaboram fantasias de heroísmo. O herói está disposto a sacrificar tudo – menos o próprio sacrifício, pois é somente por meio dele que se adquire valor e reconhecimento. Contudo, se prestarmos atenção a uma outra fala de Adalton Silva, a ideia de um heroísmo baseado no sacrifício torna-se um pouco menos nítida. O ex-militar e voluntário brasileiro declara, em nome de sua equipe, que “Não queremos levar ninguém para morrer, ainda que estejamos dispostos a dar a vida pela guerra”. Aqui o cenário muda: dar a vida pela guerra? O sacrifício cometido na guerra visa a própria guerra? O soldado vai ao campo de batalha em nome da própria batalha? A guerra deixa de ser realizada em nome de uma nação ou de uma causa para ser conduzida em nome dela mesma. A guerra é o fim.

Parece-me que cometer sacrifícios na guerra e para a guerra vem marcando a disposição do bolsonarismo desde seus primórdios. Ao seu redor, será possível escutar heróis e heroínas dispostos a lutar pela família tradicional, pelo predomínio das igrejas cristãs e pelo conservadorismo. Entretanto, o núcleo duro do bolsonarismo revela uma disposição ao sacrifício pelo sacrifício, à guerra pela guerra. Entramos aqui naquela obscenidade própria do fascismo, como nos esclareceu Slavoj Žižek. Segundo Žižek, diante da pergunta “qual o programa a título do qual os fascistas pedem para governar a Itália?”, Mussolini respondeu: “Nosso programa é muito simples: queremos governar a Itália”. Poderíamos parafrasear essa fala de Mussolini da seguinte maneira. À pergunta “qual o programa a título do qual os voluntários brasileiros pedem para combater na Ucrânia?”, os voluntários responderiam: “Nosso programa é muito simples: queremos combater na Ucrânia”.

*É psicanalista e editor. Também possui mestrado em educação e graduação em história e filosofia. Associado à rede de psicanálise Inconsciente Real.

Em Laranja Mecânica, filme de Stanley Kubrick de 1971, o protagonista é um sociopata ultraviolento, numa clara referência ao nazismo. Reprodução

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