Portaria publicada pelo ministro da Justiça concede honraria ao agrônomo Evandro Biesdorf, afastado de demarcações no MT por favorecer ruralistas; lista de agraciados inclui defensores do Marco Temporal e o presidente anti-indígena da Funai
Por Bruno Stankevicius Bassi e Mariana Franco Ramos, em De Olho nos Ruralistas
O presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) não foi a única personalidade anti-indígena homenageada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública por supostamente atuar em defesa dos povos originários. Além dele e de dez ministros,a portaria nº 47 concede a “medalha ao mérito indigenista” a outras quinze pessoas, entre servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Polícia Federal e outros órgãos públicos. A portaria foi publicada na terça-feira (15), mas a cerimônia de entrega ocorreu nesta sexta-feira (18), com Bolsonaro a exibir no Palácio do Planalto um vistoso cocar.
Um dos nomes que se destaca na lista é o do agrônomo Evandro Marcos Biesdorf, afastado de dois grupos de trabalho da Funai por suspeita de favorecimento a interesses ruralistas. No primeiro episódio, ainda em 2019, Biesdorf foi alvo de uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF), solicitando sua remoção do comitê de revisão da Terra Indígena (TI) Batovi, em Gaúcha do Norte (MT), após identificá-lo como um dos articuladores da redução de área da TI Ituna-Itatá, habitada por povos isolados no Pará. Em 23 de agosto de 2021, o juiz federal Ciro Arapiraca decretou que a Funai afastasse o servidor e formasse um novo grupo composto por antropólogos.
O segundo caso envolvendo o atual coordenador de geoprocessamento da Funai se refere à TI Piripkura, em Colniza (MT), onde vivem os últimos integrantes da etnia que dá nome ao território, dizimada na década de 1980.
Nele, Biesdorf e o geógrafo André Luiz Welter foram afastados pelo juiz Frederico Pereira Martins em novembro de 2021, acatando a alegação do MPF de que os dois haviam participado da elaboração da Instrução Normativa nº 9/2020, que autorizou o registro de imóveis rurais em terras indígenas não-homologadas, como é o caso da Piripkura. Assinada pelo presidente da Funai, o ruralista Marcelo Xavier, a medida teve como mentor o secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia, ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) e histórico inimigo dos povos do campo.
O próprio Xavier foi um dos homenageados pelo governo. Confira aqui o perfil do presidente da Funai feito pelo observatório durante a série Esplanada da Morte, em 2020: “Chefe da Funai foi aliado de invasores de terra indígena no MT“.
CONFIRA A LISTA DE HOMENAGEADOS PELO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
Além de Biesdorf e Xavier, a lista de agraciados com a medalha do mérito indigenista inclui defensores da tese do Marco Temporal, como o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Jorge Oliveira e o advogado-geral da União Bruno Bianco Leal; agentes de segurança que conduziram operações polêmicas em TIs, como o diretor da PF, Marcio Nunes de Oliveira, e o chefe da Força Nacional, Antônio Aginaldo de Oliveira; e até mesmo um integrante do TCU herdeiro de bandeirantes cujo irmão desmatou 11 mil hectares na TI Sangradouro.
Receberam a homenagem, ainda, indígenas considerados aliados do presidente, como Gerson Warawe Xavante e Irisnaide de Souza Silva. O diretor da Polícia Federal, Marcio Nunes de Oliveira, determinou em janeiro o emprego da Força Nacional em conflito interno na TI Serrinha, no Rio Grande do Sul. Segundo os Kaingang, a violência é estimulada por arrendatários e por atores ligados ao agronegócio local.
IRMÃO TRABALHA PARA MULTIS DOS TRANSGÊNICOS
Servidor da Funai desde 2018, Biesdorf cursa doutorado em Fitotecnia na Universidade Federal de Viçosa (UFV), onde pesquisa sementes transgênicas, pragas agrícolas e eficácia de agrotóxicos. Em seu currículo, constam colaborações com o irmão, Elivelton Maciel Biesdorf, que já trabalhou para diversas multinacionais do agronegócio, em especial da área de sementes, caso de J&H, Bayer e Dupont. Ambos atuaram juntos no Instituto Federal do Mato Grosso (IFMT).
Defendida por ruralistas e pela atual direção da Funai, a autorização para plantio de sementes transgênicas é um dos diversos pontos questionados por líderes indígenas no Projeto de Lei (PL) nº 191/2020, que libera mineração em terras indígenas e foi aprovado em regime de urgência na Câmara sob articulação da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA): “Ruralistas deram 54% dos votos que aprovaram urgência na mineração em terras indígenas“.
Antes de assumir a Coordenação-Geral de Geoprocessamento (CGGeo) do órgão indigenista, em 2020, ele havia sido apontado para integrar grupos de trabalho para revisão e demarcação de terras indígenas sob a coordenação de Joany Marcelo Arantes, afastado junto a ele nos dois processos movidos pelo MPF relativos às TIs Batovi e Piripkura.
Joany foi secretário parlamentar do deputado Homero Pereira (PSD-MT), já falecido, ex-presidente da FPA e autor do Projeto de Lei (PL) nº 490/2007, que transfere para o Congresso a atribuição de demarcar terras indígenas.
SEM MEDALHA, SENADOR RURALISTA CONECTA HOMENAGEADOS
Na CGGeo da Funai, Biesdorf gerencia projetos de georreferenciamento em TIs e possui participação relevante na regularização fundiária dos territórios. No caso da TI Ituna-Itatá, cuja tentativa de redução baseou o pedido de afastamento do servidor pelo MPF, houve ainda a intervenção direta do senador Zequinha Marinho (PL-PA) sobre um relatório que apontava a existência de povos isolados na área sob restrição de uso, tentando remover esta menção.
Vice-presidente da FPA no Senado, Marinho também se conecta a outros dois agraciados com a medalha do “mérito indigenista”. Em 2020, quando o ministro do TCU Jorge Antonio era secretário-geral da Presidência, o senador paraense se reuniu com ele para discutir “conflitos agrários na pretensa terra indígena Ituna-Itatá”. O parlamentar é defensor declarado de empresários como Jassonio Costa Leite, apontado como um dos principais grileiros da região.
Além do ex-secretário, Marinho também é próximo da deputada Carla Zambelli (União-SP), cujo marido, o coronel da Polícia Militar Antônio Aginaldo de Oliveira também foi homenageado. Atual chefe da Força Nacional, Oliveira comandou, em 2008, a operação “Arco De Fogo”, realizada em parceria com Ibama, Funai e PF, para combater crimes ambientais e “plantio de maconha” em Reservas Indígenas da Amazônia Legal. Cinco anos depois, a Justiça anulou as ações e extinguiu as multas aplicadas, na ordem de R$ 550 mil.
IRMÃO DE MINISTRO DESMATOU ÁREA INDÍGENA
Afastado dos holofotes desde sua saída da Câmara, em 2005, o ex-deputado João Ribeiro Nardes ocupa desde 2012 o cargo de ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). No ano seguinte, escreveu um livro contando a saga do trisavô, o bandeirante Pedro Ribeiro Nardes, que no século XIX “guerreou” contra indígenas na região que hoje abrange o município de Bauru (SP).
Em entrevista ao jornal JCNet, quando do lançamento do livro, Nardes defendeu o legado controverso de seu antepassado: “Ele foi dado como morto, inclusive em uma carta destinada ao então governador porque sumiu depois do confronto com os indígenas”, afirmou.
A tendência ao conflito com os povos originários segue no DNA da família. Nardes é irmão do produtor de soja José Otaviano Ribeiro Nardes, um dos principais líderes ruralistas de Primavera do Leste (MT). Ex-presidente do Sindicato Rural da região, ele foi responsável por um plano que prevê o desmatamento de 11 mil hectares de cerrado na TI Sangradouro, em Poxoréu (MT).
O “projeto”, como ele denomina, teve apoio de Bolsonaro e de Marcelo Xavier. “Sem o apoio do presidente da República e da Funai nós não teríamos conseguido”, disse José Nardes à coluna de Rubens Valente, no UOL. “Só conseguimos em função do total apoio. A Funai em Brasília é uma extensão do nosso projeto”. O fazendeiro pretende plantar soja, arroz e milho no local.
–
Imagem principal (Reprodução): Bolsonaro ao lado do ministro da Justiça, Anderson Torres, e de Marcelo Xavier, presidente da Funai, em auto-homenagem