Não é principalmente uma guerra entre russos e ucranianos. Dois fatores de competição e conflito entre as grandes potências do mundo estão na sua origem, a começar pela nova fase da guerra entre Estados Unidos e Rússia. A Ucrânia se torna uma colônia.
A opinião é de Ricardo Petrella, economista e cientista político italiano, professor emérito da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e da Academia de Arquitetura de Mendrisio, na Suíça. É presidente do Institut Europeen de Recherche sur la Politique de l’Eau (IERPE), em Bruxelas, e da Universidade do Bem Comum (UBC), fundada em Antuérpia e depois na Itália e na França. É doutor honorário de oito universidades na Suécia, Dinamarca, Bélgica, França, Canadá e Argentina.
O artigo foi publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 16-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
Devemos impor um cessar-fogo imediato na Ucrânia. Armar a Ucrânia e manter as duras sanções econômicas contra a Rússia apenas acentuam e exacerbam a guerra. Não são a solução para a paz e para “libertar” os ucranianos, mas sim o instrumento, acima de tudo, para a derrota ou até para a morte da Rússia por asfixia econômica e, em segundo lugar, para submeter o futuro dos ucranianos aos interesses dos Estados Unidos e das potências da Europa ocidental. Na escalada atual, não são as cores do arco-íris, mas sim os cogumelos nucleares que estão no horizonte. Que absurdo.
Sabe-se que a guerra na Ucrânia – o país onde a Rússia nasceu, o Estado da Rússia – não é principalmente uma guerra entre russos e ucranianos. Trata-se de uma distorção da história atual propagada particularmente por aqueles que, a começar pelos Estados Unidos e pelos líderes dos países da Otan, provocaram a inaceitável invasão da Ucrânia pela Rússia e são corresponsáveis com a Rússia. Por que é assim? Tentemos entender.
A guerra na Ucrânia é o resultado, entre outras coisas, de dois grandes fatores de oposição e conflito entre países e grupos sociais dominantes em todo o mundo. Enquanto esses dois fatores não forem eliminados, haverá no máximo suspensões temporárias de guerras mundiais “localizadas”, que terminarão aqui com a “vitória” de alguns e lá com a “vitória” de outros. As vítimas continuarão sendo os habitantes da Terra, incluindo todas as espécies. A autodestruição da humanidade continuará sendo uma ameaça no horizonte.
Guerra de sobrevivência entre os EUA e a ex-URSS
Primeiro fator. A guerra de sobrevivência entre duas potências mundiais outrora fortes e incontestadas, mas em crise e cada vez mais enfraquecidas.
A “guerra na Ucrânia” faz parte da nova fase da guerra entre os Estados Unidos e a Rússia após o colapso e o desaparecimento da URSS em 1989 e o fim da Guerra Fria Leste/Oeste.
Por um lado, trata-se da guerra que os grupos sociais dominantes nos Estados Unidos (e, sob o seu impulso/imposição, nos países da Otan) travaram contra a Rússia nos últimos 30 anos para enfraquecer a sua potência política, econômica e militar, aproveitando a grave crise do regime em que o país havia caído em 1989.
É uma das guerras travadas pelos Estados Unidos para manter a sua posição de primeira potência mundial diante dos fatores de erosão e enfraquecimento que contribuíram para o retorno à força nos Estados Unidos do “povo americano” conquistador, nacionalista e racista, do qual Trump se tornou o defensor mais convicto.
Por outro lado, é a guerra de resistência contra a supremacia dos Estados Unidos e o contra-ataque a favor da restauração do poder perdido com o colapso da URSS que os grupos sociais dominantes na Rússia têm perseguido: a) em nível internacional, em um contexto de crescente fraqueza em relação ao seu inimigo da Guerra Fria; e b) em nível continental, a leste e a oeste da Rússia atual, em relação a países/Estados que se tornaram independentes e hostis à Rússia.
A recordação e, para Putin em particular, o fascínio pela potência da Rússia no passado, incluindo o período da URSS, foram e são, para a maioria dos atuais líderes russos, fontes de inspiração para a sua estratégia de poder bélico e despótico.
No entanto, Mikhail Gorbachev havia sido claro, sincero e acima até mesmo dos interesses de poder diretos da Rússia em uma mensagem oral pública aos Estados Unidos (e aos seus adversários russos) alguns meses antes da reunificação alemã em 1990. Ele os havia advertido a não cometerem o erro de ver o desaparecimento da URSS como uma vitória dos Estados Unidos e do sistema capitalista de mercado. A URSS, havia insistido, entrou em colapso por razões estruturais internas, porque o seu sistema havia se mostrado ineficiente, injusto e insustentável.
Por isso – sublinhou – a prioridade devia ser dada à construção de um novo sistema de segurança econômica e política europeia, garantidor de relações pacíficas Leste-Oeste entre todos os povos europeus. Assim, ele retoma uma proposta anterior que havia feito aos Estados Unidos para o desmantelamento coordenado das armas nucleares. A proposta foi rejeitada pelos Estados Unidos, que preferiam apenas uma redução no número de mísseis de ogivas nucleares, e, por isso, Gorbachev respondeu: “Ok, então eu mantenho a capacidade de lhes destruir não 6.000 vezes, mas 3.000 vezes”.
A história ocorreu de outra forma. Os Estados Unidos e os países europeus (e a Rússia de Putin) absolutamente não ouviram a mensagem de Gorbachev. Os Estados Unidos fizeram de tudo para fortalecer o seu controle militar da Europa (para eles, esse é o significado da “segurança europeia”) e, para esse objetivo, com o acordo e a submissão dos aliados europeus, agiram para estendê-lo geopoliticamente por meio da integração na Otan de todos os países que têm fronteiras europeias com a Rússia (excluindo a Bielorrússia).
A história dessa extensão, composta por tratados e acordos não respeitados e promessas não mantidas, especialmente por parte dos Estados Unidos e, em virtude da aliança, dos europeus, está bem resumida em um longo e rigoroso artigo de Hall Garden, professor da Universidade Americana de Paris, publicado em Other News no dia 25 de fevereiro [disponível em inglês aqui].
Diante de um “inimigo” sistêmico, ao perseguirem a sua estratégia de dominação de longa data “Paz por meio do poder”, os Estados Unidos alcançaram o seu objetivo. “Venceram.” Mas o que venceram? O que a União Europeia ganhou?
Pensem. Este é o máximo da hipocrisia: para financiar o envio de material bélico e de ajuda econômica aos ucranianos para fortalecer o seu exército, a Comissão Europeia recorreu ao “Fundo Europeu para a Paz”, dotado de seis bilhões de euros. Sem dúvida, pensava que a paz poderia ser construída armando as pessoas!
Ao apoiar os Estados Unidos na extensão da Otan a leste, os europeus acabaram ganhando uma guerra em casa.
O que os ucranianos ganharam, além de aceitarem se tornar uma colônia militar dos Estados Unidos e das potências europeias, da França e sobretudo da Alemanha? Uma colônia que obviamente não se limitará a ser colônia apenas na esfera militar, mas que também já o é em âmbito econômico e financeiro. Será ainda mais colônia nos próximos anos.
Nas condições atuais da União Europeia, a “vitória” dos Estados Unidos se traduzirá em uma submissão e dependência cada vez maiores da Ucrânia às regras e aos interesses dos mercados financeiros globais e aos imperativos do mercado único europeu. A liberdade e a independência dos ucranianos se tornarão palavras vazias sem referências concretas.
Quanto aos russos, eles não ganharam nada até agora. Pior. Os grupos sociais que os dominam se saem mal sob todos os pontos de vista, aos olhos, entre outros, de uma opinião pública ocidental e ocidentalizada fortemente moldada e manipulada pelo sistema de informação global dominado pelas mídias ocidentais.
Somente os grupos sociais dominantes nos Estados Unidos parecem ser vencedores. Sim, eles venceram estendendo o seu controle militar (e político) sobre toda a Europa (excluindo a Bielorrússia). Além disso, estão conseguindo transformar a Otan em uma estrutura militar poderosa e orientada em nível global ao serviço da manutenção do poder dos Estados Unidos em todo o mundo, também em vista das suas outras guerras, especialmente a nova guerra contra a China (e a Índia).
Isso também graças a uma radical transformação do poder militar por meio das novas tecnologias dominadas pela inteligência artificial (dados, sistemas de gestão, comunicação e decisão, sistemas de satélites, novas energias, redes, plataformas etc.).
É nesse contexto que deve ser interpretada a estratégia de expansão a leste da Otan. Aos Estados Unidos não interessam a liberdade e a independência dos ucranianos. Os Estados Unidos estão interessados principalmente em reduzir o poder da Rússia. Venceram, mas provocando a guerra na Europa, depois do Iraque, do Afeganistão, da Líbia, da Síria… É incrível que o governo italiano tenha anunciado uma participação de tipo militar na guerra na Ucrânia!
A guerra como modo de ser
Isso nos leva ao segundo fator. A guerra se tornou um modo de ser do mundo econômico, tecnocientífico e cultural dominante.
O espírito de guerra é intrínseco à economia dominante. A economia de mercado financeirizada nos educou à guerra, a pensar e a participar das guerras: do petróleo, do trigo, dos computadores, das mídias, dos contêineres, das vacinas, dos smartphones, dos carros, do arroz, das bananas, das universidades, das redes, das patentes, da inteligência artificial, do espaço.
A guerra está nas nossas cabeças, em várias formas e palavras: competitividade, lucratividade, liderança. Número 1, conquista do mercado, resiliência, adaptação, inovação… Nos últimos anos, fomos convencidos de que a China é agora o inimigo, o nosso “inimigo sistêmico”, porque seria o novo concorrente da supremacia global. A perda dessa supremacia pelos Estados Unidos é vista como uma terrível ameaça ao futuro, à nossa liberdade…
Os desastres ecológicos, em particular o clima em ebulição, nos fizeram entender a fragilidade da sobrevivência e, portanto, acentuaram essa profunda infiltração da cultura da guerra, fazendo-nos acreditar mais uma vez na necessidade de sermos os mais fortes, os mais resilientes, desta vez em nível global. Assim, o imperativo da dominação mundial tomou conta de qualquer visão de cooperação, solidariedade, partilha e ajuda recíproca. A guerra entrou nas nossas mentes como a chuva na Noruega.
Daí as grandes dificuldades encontradas, especialmente devido aos Estados Unidos, em encontrar soluções globais comuns para os desastres ecológicos. Daí a rejeição por parte dos mais fortes, liderados pelos Estados Unidos e pela União Europeia, de um plano global justo e solidário de luta contra a Covid-19 baseado em vacinas acessíveis a todos os habitantes da Terra, imediatamente, na quantidade medicamente necessária.
Nesse contexto, os milhões de “eus” superam os milhares de “nós”, e os países com poder nuclear acreditam, e sobretudo os mais poderosos entre eles, que manter o seu poder em níveis mais altos do que os outros é uma condição necessária e indispensável para a sua sobrevivência. E como a força militar está cada vez mais tecnologizada e ligada ao poder financeiro a fim de capturar a inovação tecnológica e os mercados globais, qualquer perda de mercados tecnologicamente preciosos é vista como estrategicamente perigosa para o poder econômico e, portanto, para o poder militar.
No passado, eram os militares que guiavam a inovação e a tecnologia. Hoje é o contrário e ainda pior: são os imperativos econômicos e financeiros que constrangem os militares a produzirem armas nucleares. A inaceitável expansão da força militar da Otan e a reação defensiva da Rússia, que persegue a segurança com meios inaceitáveis, estão alinhadas com essa cultura generalizada da guerra.
O que fazer?
A sabedoria e a preocupação em salvaguardar o futuro pacífico da humanidade e a sobrevivência do mundo nos levam a priorizar três linhas de ação, que sejam sustentadas por uma forte mobilização dos cidadãos.
Em primeiro lugar, o fim imediato das hostilidades in loco e permitir que as negociações entre os russos e os ucranianos decidam o que vem a seguir. Em seguida, a proibição de ações como o envio de armas e dinheiro aos ucranianos ou aos russos; a suspensão imediata das sanções contra a Rússia.
Além disso, um compromisso da Otan de interromper o processo de integração da Ucrânia na Otan (lembremos que os franceses e os alemães eram contrários a isso no início dos anos 1990) e da Rússia de abandonar qualquer hipótese de recorrer às armas nucleares; a convocação de uma Convenção Europeia para definir um novo tratado sobre a segurança europeia.
Por fim, lançar as bases, a partir do tratado da ONU já existente sobre a proibição das armas nucleares, para a redefinição de um Pacto de Segurança Global, em particular por meio de aplicações muito concretas nos setores da energia, da água, das sementes, da saúde, dos transportes, da informação e do conhecimento. Nunca antes a segurança global para todos, baseada na responsabilidade comum pelos bens essenciais à vida, foi tão óbvia, necessária e urgente.
*Gostaria de dedicar estas reflexões a Mikhail Gorbachev, como homenagem a uma das maiores figuras políticas do século XX, fervoroso defensor das relações de confiança e transparência entre os cidadãos e das relações pacíficas entre os povos, o único estadista que – na época presidente da URSS, a segunda maior potência militar do mundo – ousou propor oficialmente o desmantelamento coordenado das armas nucleares.