Em debate promovido pelo Cebes, o economista Francisco Funcia propõe ampliar a parcela da União no financiamento da Saúde, partir para a Reforma Tributária, cobrar a dívida ativa e – é claro – revogar a Emenda Constitucional 95
Por Flávio Dieguez, em Outra Saúde
À medida que cresce a mobilização nacional para defender o Sistema Único de Saúde (SUS) e organizar a sua transformação para torná-lo 100% público, aumenta o interesse em ampliar os debates sobre os graves problemas do país. Os adeptos e promotores da mobilização pela Saúde esperam que as grandes decisões nesse campo sejam expostas de maneira o mais ampla possível. Quando se adota uma perspectiva que prioriza a vida e a saúde, tendo em vista o desenvolvimento do povo brasileiro, nota-se logo que grande parte de nossas dificuldades decorre de uma economia excludente, hostil à democracia e à soberania nacional e um entrave persistente ao desenvolvimento do povo brasileiro.
Isso fica especialmente claro quando se observam de perto as despesas do país – o Brasil gasta 9,6% do seu PIB com Saúde, calculam os especialistas. Mas a maior parte desse gasto, dizem eles, cabe a setores privados – não públicos. Nessa equação, um ponto central é a dificuldade que persiste por 30 anos de financiar o SUS de maneira adequada. “É necessário que coloquemos essa questão de modo que possamos seriamente participar desse debate”, assinalou em um evento recente Lúcia Souto, presidenta do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde).
No complicado esquema das despesas públicas brasileiras, Lúcia preocupa-se, particularmente, com a possibilidade de assegurar que o SUS funcione tal como está previsto na constituição de 1988. O que os estudos existentes sugerem a esse respeito? Os obstáculos persistem, nota ela. Mas pode-se argumentar, por outro lado, que também ganha força a ideia de que é necessário assegurar o direito à saúde, assim como também aumenta a percepção de que as políticas de austeridade fiscal, impostas por uma velha ortodoxia econômica, tiveram efeitos muito negativos sobre as condições de vida e saúde das populações.
Este artigo procura reunir informações que podem orientar os debates suscitados pela mobilização nacional em defesa do Sistema Único de Saúde. Sua intenção é didática, e aproveita principalmente uma exposição do economista Francisco Funcia, organizada pelo Cebes, na qual sistematizou as questões mais relevantes para se pensar o problema do financiamento do SUS. Francisco é vice-presidente da ABrES (Associação Brasileira de Economia da Saúde) e secretário de Finanças de Diadema (SP).
Ele participou de uma live com o economista Carlos Ocké-Reis, autor do livro SUS: o desafio de ser único; com Lúcia Souto; e com José Noronha, diretor do Cebes. Apesar de ter uma resposta inequívoca de que é, sim, possível financiar o SUS de maneira adequada, Francisco prefere apresentar um conjunto de questões que não têm solução fácil. Naturalmente, há outras maneiras de encarar o problema, mas esta, com certeza, ajuda muito a organizar o debate. “Essa é uma pergunta muito desafiadora”, disse ele, apontando as opiniões divergentes sobre a questão. “Há quem pense que a Saúde não cabe no orçamento, e aí vale tudo para justificar o não atendimento às necessidades de saúde da população”.
Outros acreditam que cabe, mas não acham que há uma proposta prática sobre como se deve proceder. Por isso o atual debate é tão importante, diz o especialista, porque abre-se, com ele, a possibilidade de solucionar as diferenças de pensamento de modo claro e abrangente. Veja nas próximas páginas porque pode ser importante considerar inúmeros aspectos e circunstâncias das políticas públicas no Brasil para realizar um debate produtivo e fazer avançar a proposta de um SUS “100% público”.
Uma primeira observação importante a respeito do financiamento do SUS é considerá-lo como parte do financiamento das políticas públicas brasileiras, no geral. A ideia é que, para poder dizer que o SUS constitucional pode ser financiado, é preciso ter um olhar não segmentado, ou setorial, inclusive levando em conta o pacto federativo. Ou seja, que em termos das políticas públicas, União, estados e municípios têm autonomia de ação e competências específicas estabelecidas na constituição. Isso vale para a saúde em particular – quando se fala do SUS, está-se falando de uma proposta que deve contemplar o financiamento tripartite.
Além disso, também é muito importante não confundir o financiamento, nesse caso, com um crédito bancário – como uma linha de financiamento da Caixa Econômica Federal, ilustra Francisco. “É importante deixar claro que no setor público só pode ser gasto aquilo que está previsto no orçamento. Que há uma estimativa da receita e uma previsão de despesa”. Essas questões estão juntas e, na opinião dele, a discussão deve abranger o financiamento do Estado brasileiro, de maneira geral. “O SUS está condicionado a isso”.
Ele assinala que essa situação é histórica, surgiu com a própria constituição, chamada de constituição cidadã. Ela descentralizou as ações sociais, disse: definiu que seriam descentralizadas e que seriam realizadas prioritariamente no âmbito dos municípios, onde estariam diretamente sob a atenção dos moradores das regiões onde elas são realizadas. Acontece que a constituição manteve centralizada a competência de tributar: significa que perto de 69% de toda a arrecadação tributária são de impostos de competência federal.
Depois de feitas as transferências, a União ainda fica com 57% e, contraditoriamente, no caso da saúde, o gasto federal aparece com 42%. Isto é, a União fica com mais da metade da receita, mas com menos da metade do gasto público com a saúde. Então, é preciso aumentar o gasto federal para equilibrar essa conta. Não é correto, inclusive, dizer que estados e municípios devem fazê-lo, como se diz frequentemente. Não é bem assim, alerta Francisco, porque a alocação da receita para estados e municípios tem crescido nesses últimos tempos. Tanto que 58% dos gastos em saúde são feitos por eles.
E no caso apenas dos gastos municipais, a proporção é alta também: eles representam 31% de tudo que se gasta com saúde. De fato, eles aplicam muito acima do piso, que é de 15% da receita que é a base de cálculo. E não se pode esquecer que os municípios precisam atender outras necessidades consideradas como determinantes sociais de saúde: habitação, transporte, saneamento. Não podem, obviamente, ficar privados dos recursos para essas finalidades.
Tendo essas circunstâncias e condições em mente, Francisco defende uma posição que parece inspirada pela prudência: de que é preciso condicionar o esforço pelo financiamento adequado do SUS à realização de uma reforma tributária. “É importante que a gente tenha em mente que a melhoria da capacidade de financiamento das políticas de saúde necessárias para que a gente possa fazer com que a saúde caiba no orçamento depende de uma reforma tributária”.
Essa reforma não deve acabar com as fontes específicas da seguridade social, como é sugerido em certas propostas de reforma em curso. Ela deve ter como orientação fazer incidir uma maior parte da arrecadação sobre o patrimônio, a renda e a riqueza – ao contrário de hoje, em que a incidência recai sobre a produção e o consumo. Essa orientação atual recebe muitas críticas porque é regressiva, tende a onerar mais aqueles que têm mais baixa renda. Então, ao buscar novas fontes de financiamento, é preciso lembrar que o Brasil é um dos poucos países que não tributa dividendos, por exemplo.
Nessa linha, Francisco chama a atenção para um fato tão relevante quanto pouco noticiado: a fonte potencial de recursos representada pela dívida ativa brasileira. Ela hoje representa 2,4 trilhões de reais, disse ele, e desse total, de acordo com a Procuradoria Geral da República, são cobráveis 800 bilhões. Mas o Brasil só arrecada 24 bilhões de dívida ativa ao ano – cerca de 3% dos 800 bilhões. “Ou seja, tem que ser priorizada essa cobrança de dívida ativa”. Outro fato igualmente importante: uma proposta coordenada pelo Conselho Nacional de Saúde, o projeto Saúde+10, que aumentaria essa arrecadação em 50 bilhões, de 24 para 74 bilhões de reais.
Isso mostra o espaço fiscal disponível no país, pondera Francisco. E esses recursos podem ser acessados dependendo apenas de uma ação administrativa, enfatiza. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) registra inclusive que o Saúde+10 teve bom respaldo popular. Em 2013 reuniu 1.200 pessoas na Esplanada dos Ministérios e conseguiu coletar 1 milhão 250 mil assinaturas para dar entrada a um Projeto de Lei de Iniciativa Popular, na Câmara dos Deputados, que reivindica 10% da receita corrente bruta da União à saúde pública. Para que o projeto dê entrada na Câmara e vire lei é preciso arrecadar 1 milhão e 500 mil assinaturas de cidadãos.
E, afinal, existe a tarefa politicamente complexa mas fundamental, que é revogar a Emenda Constitucional (EC) 95, do “teto de gastos”, que congelou as despesas públicas. Assim como a mais recente EC 109, também chamada de subteto, que estende restrições fiscais a estados e municípios. Essas medidas prejudicaram as despesas públicas, inclusive com a saúde, lembra Francisco, e não resolveram o problema do déficit público. O especialista da ABrES destaca que existe uma proposta elaborada por um grupo de estudiosos do qual ele faz parte, que mostra que o teto de gastos reduziu fortemente as despesas com o SUS.
“Apuramos que tem 37 bilhões de reais perdidos, entre 2018 e 2021, por conta da mudança da regra que era de 15% da receita corrente líquida, que já não era adequada”. E as despesas foram congeladas por 20 anos, enfatizou ele. “Então está se confirmando o que dizíamos nos debates: a perda estimada do SUS vai ser da ordem de 30%”. Em cinco anos já foi de 37 bilhões, lembrando que soma-se mais 11 bilhões por conta da mudança no Pré-Sal, que impacta o que seria distribuído para a Saúde.
Do lado propositivo da luta pelo SUS, Francisco lembra que existe já uma nova proposta de novas formas de controle dos gastos públicos, estabelecidas pela PEC 36. A proposta é de 2020 e foi assinada por muitos senadores, encabeçados por Rogério Carvalho (PT-SE), afiliados a muitos partidos, como o MDB, PP, PSD, PDT, PSL. Ela propõe metas plurianuais para a administração pública federal e revoga, a partir de 2023, a regra de ouro e o teto de gastos.
Francisco também menciona uma petição pública aprovada em 2020-2021 pelo CNS, que teve mais de 600 mil assinaturas. Ela determina que deveria haver um piso de emergência para o SUS, de 168 bilhões de reais (na época) para garantir que não houvesse redução de recursos para a Saúde, com o eventual recuo da pandemia. Essa demanda refere-se a cirurgias eletivas adiadas, ou a tratamentos crônicos postergados. E não se pode esquecer das inovações tecnológicas em curso, novos medicamentos, que, caso não haja financiamento, podem ficar depreciados.
Ao mesmo tempo, a população idosa cresce 3,8% ao ano e é preciso pensar nesse fato em termos das novas fontes de recursos que serão necessárias ao SUS. O especialista encerrou suas observações insistindo na sua tese pessoal: “lutar pelas condições adequadas de financiamento do Estado brasileiro, para que isso possibilite o financiamento adequado do SUS, são duas coisas que precisam estar atreladas à nossa prioridade de luta no nosso campo da defesa do Sistema Único de Saúde”.