Mineradora canadense opera em território Mura antes de consulta prévia e ganha apoio de Bolsonaro para destravar mina de potássio

Por Renato Santana*, especial para o Observatório da Mineração

A Potássio do Brasil, controlada pelo grupo canadense Forbes & Manhattan, tenta conseguir a aprovação do que pode se tornar a maior mina de potássio da América Latina, em Autazes, no Amazonas.

ganhou mais um apoio declarado na última semana: o governo Bolsonaro. Sem cerimônia, a cúpula da administração federal, usando a guerra na Ucrânia, prometeu “destravar” o projeto ao presidente da Forbes, Stan Bharti.

Hoje, o processo está parado por falta de consulta prévia aos indígenas afetados. O grupo do Canadá tenta passar por cima dos direitos indígenas e ignora a existência de terras ainda não demarcadas no caminho da mina altamente lucrativa.

Para justificar os trabalhos de mineração já iniciados em áreas localizadas na TI Soares/Urucurituba, antes da Consulta Prévia aos Mura, a Potássio alega ter uma licença estadual emitida pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM).

A licença estadual é uma facilidade tentada pela mineradora, que parte do pressuposto de que a TI não está demarcada e, portanto, não se trata de uma Terra Indígena.

Com base nessa narrativa jurídica assimétrica à Constituição Federal, a reportagem do Observatório da Mineração ouviu os Mura e teve acesso ao Protocolo de Consulta do povo, conversou com entidades de apoio, o Ministério Público Federal (MPF), um pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e entrevistou advogado especialista em demanda territorial indígena e socioambiental.

“Sabemos que tem um interesse grande por parte do governo. Um empreendimento é como se fosse uma guerra contra nós, povos indígenas. O governo tá nos fuzilando. É nada mais do que dinheiro: olham como se a gente não existisse, não se importam com nossas terras, nossas vidas, nossa cultura e com o nosso bem. Vivíamos em um paraíso, mas quando se inicia essa ideia de minerar, nossa paz começa a ir embora e aí começa a guerra”, disse com firmeza o tuxaua Sérgio Freitas do Nascimento, de 40 anos, ao Observatório da Mineração.

Jogo de cartas marcadas

A mina de cloreto de potássio, matéria-prima para a produção de fertilizantes usado sobretudo pelo agronegócio, desperta a cobiça da Potássio desde 2010, quando foi descoberta.

Recentemente o projeto tomou força diante do lobby feito pela Potássio junto ao governo de Jair Bolsonaro, às declarações do presidente em utilizar a Guerra na Ucrânia como desculpa para aprovar o PL 191 – que autoriza mineração e outros projetos em terra indígena – e à possível entrada de sócios de peso como Blairo Maggi, ex-ministro da Agricultura e bilionário do agronegócio.

Vistos como “empecilhos”, ignorados e depois em parte cooptados pela Potássio do Brasil, os povos indígenas vivem sobre a imensa reserva considerada de “classe mundial”, capaz de garantir lucros significativos para o conglomerado canadense.

Em março, a invasão russa na Ucrânia fez o valor do potássio triplicar e atingir recorde histórico. O preço do potássio chegou a US$ 1,1 mil, mais do que o triplo do valor registrado em março de 2021, quando estava cotado a US$ 300.

A região de Autazes, a menos de 120 quilômetros da capital Manaus, abrange e impacta ainda o município de Careiro da Várzea, onde há duas terras demarcadas, Jauary e Paracuuba, e ainda uma terceira já com demanda conhecida e aberta pela Fundação Nacional do Índio (Funai) desde 2003, a Soares/UrucuritubaNestas terras vive uma população de ao menos 15 mil Mura ali estabelecidos desde meados do século XVI. 

A mina da Potássio recebeu a licença em 2015, mas logo foi paralisada por ação judicial impetrada pelo MPF e deferida pela 1ª Vara Federal do Amazonas. No processo há um vasto conjunto de violações empreendidas pela Potássio contra os Mura, como prospectar nas terras demarcadas, sem a Consulta Prévia, Livre e Informada determinada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), além da compra de terrenos em território indígena reivindicado.

De acordo com a Justiça Federal, a Potássio está proibida de fazer negociações individuais ou praticar qualquer tipo de assédio. O povo Mura elaborou um Protocolo de Consulta distribuído entre as aldeias.

Com a pandemia, porém, a pré-consulta sequer foi iniciada enquanto a Potássio seguiu com os trabalhos, compras de terrenos e se beneficiou da ajuda que o governo Bolsonaro vem oferecendo.

Para Bolsonaro, “a questão do fertilizante é sagrada”. De acordo com o governo, o Brasil poderia ser autossuficiente dos insumos que vêm de países europeus caso possa haver mineração nas terras indígenas.

A informação é falsa, como estudos do próprio governo desmentem. Segundo análise recente de dois órgãos federais, os problemas que o mercado brasileiro de fertilizantes encontra são a concentração do setor na mão de poucas empresas, a falta de investimento em novas tecnologias, grande desperdício, deficiências de logística e a indexação do preço à variação cambial do dólar americano.

Apoio direto de Bolsonaro e de ex-senador próximo de Blairo Maggi, que quer sociedade no negócio

Diante da oportunidade que o contexto oferece, o setor mineral intensificou o lobby junto ao governo federal e parlamentares. Matéria da Reuters mostrou que a Potássio do Brasil se reuniu com Jair Bolsonaro e a ministra da Agricultura Tereza Cristina em 28 de março.

O banqueiro Stan Bharti, dono da Forbes & Manhattan, levou ao presidente o projeto de US$ 2,5 bilhões da mina de Autazes. Bolsonaro reafirmou que o potássio é “estratégico para o Brasil” e que o governo está “empenhado em destravar esses processos”.

ex-senador Cidinho Santos (PR), do Mato Grosso, ex-suplente de Blairo Maggi no Senado e investigado por esquemas de corrupção, participou da reunião. Em post no Instagram, Santos disse que a mina “não está situada em área indígena” e que algumas aldeias ficam a “mais de 150 km de onde será feita a exploração”.

É mentira, como esta e outras reportagens mostram.

Blairo Maggi, como noticiamos no Observatório, quer firmar sociedade com Stan Bharti para escoar o potássio produzido em Autazes para os principais estados do agronegócio brasileiro. Em nota, a Amaggi, empresa de Blairo, confirmou a parceria, mas disse que não forneceria mais detalhes. Maggi negou, no entanto, que defenda a aprovação do PL 191, mas sim um “Plano Nacional Emergencial para aumentar a produção dos insumos”.

Não por acaso, pouco antes da reunião em Brasília, executivos da mineradora canadense demonstravam enorme confiança na liberação do projeto em Autazes. A escassez global de fertilizantes causada pela guerra seria o “gancho” para isso, exatamente o mesmo discurso de Bolsonaro. “Nossa expectativa é que a suspensão do licenciamento caia nos próximos meses”, disse Adriano Espeschit, presidente da Potássio do Brasil, que também esteve presente no encontro.

O encontro entre Stan Bharti, Cidinho Santos, Espeschit e Jair Bolsonaro ocorreu em uma semana intensa para os Mura. Na terça-feira, dia 29 de março, a juíza Jaiza Maria Pinto Fraxe, da 1ª Vara Federal do Amazonas, realizou uma inspeção judicial na aldeia Soares, TI Soares/Urucurituba.

A juíza verificou as áreas afetadas pelo projeto da Potássio do Brasil, tratou de possíveis pressões que os indígenas vêm sofrendo e pediu que o povo apresentasse uma agenda com base no Protocolo de Consulta elaborado pelos Mura.

A inspeção conduzida pela Justiça Federal, que será usada em relatório, levantou dados importantes para a análise do caso, segundo participantes ouvidos.

A Potássio do Brasil informa que a exploração de potássio ocorrerá a 800 metros abaixo do solo com estimativa de uma produção de 2,44 milhões de toneladas por ano. As reservas estimadas, porém, são de 800 milhões de toneladas, o que faria de Autazes a maior mina de potássio da América Latina.

“Querem oferecer emprego para a retirada desse minério. Que a gente trabalhe nisso. Pra gente isso é escravidão. Não sabemos os benefícios. Estamos nos preparando para uma guerra, como todo Mura diz”, afirma um indígena que preferiu não se identificar por motivos de segurança.

Mineradora perfura terra Mura sem consulta

O MPF afirma que a perfuração exploratória de depósitos de potássio pela empresa começou na região ainda em 2009 sem consultar o povo Mura. Os indígenas confirmam a informação acrescentando que desde esse período a Potássio do Brasil passou a pressionar para a compra de terrenos na TI Soares/Urucurituba.

A mineradora desde sempre considerou a TI como “não-indígena” por se tratar de vilas localizadas entre as terras indígenas demarcadas do povo Mura. A Potássio foi obrigada pela Justiça Federal a arcar com as custas do processo de consulta.

Para a mineradora canadense, no entanto, a não demarcação, que acontece por burocracia excessiva da Funai e por processos emperrados pelo próprio governo Bolsonaro, aliado do negócio, a exime de responsabilidade de estar atuando dentro de terra indígena.

O tuxaua Sergio rechaça a conclusão da mineradora de que a TI Soares/Urucurituba não é indígena. Soares tem em mãos documento de 2003, que comprova a existência da TI na lista de “levantamento prévio” Funai, junto de outras cinco TIs.

Em outro documento, com data de agosto de 2007, disponibilizado em reportagem da Amazônia Real, o então coordenador-geral de Identificação e Delimitação da Funai, Paulo Santilli, confirma a reivindicação de comunidades de Autazes, incluindo Soares, e pede que elas sejam objeto de estudo de um grupo técnico (GT).

Já em um terceiro documento, de dezembro de 2018, a TI Soares/Urucurituba aparece na condição de “aguardando qualificação” desde 2016.

Para o tuxaua Mura, não há mais nenhuma informação ou esperança de que o GT será constituído pela Funai do atual governo. De qualquer maneira, há a reivindicação informada ao órgão indigenista estatal em pelo menos três ocasiões distintas, o que comprova que o Estado está ciente da demanda, como os documentos atestam.

Grupo canadense não atendeu a nenhum pedido do MPF

Sobre o empreendimento, o procurador Fernando Merlotto Soave diz que o MPF no Amazonas passou a acompanhar o caso depois de receber informações de que a Potássio do Brasil começou a realizar estudos e procedimentos na região sem qualquer consulta às comunidades.

“Em julho de 2016, expedimos recomendação ao Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) para que cancelasse a licença já expedida, e à Potássio do Brasil, para que suspendesse as atividades de pesquisa na região até a realização das consultas nos moldes previstos na legislação. Nenhum dos pedidos foi atendido”, afirma Soave.

O MPF levou o caso à Justiça, por meio da ação nº 19192-92.2016.4.01.3200. Este é o processo que tramita na 1ª Vara Federal do Amazonas. A concordância em realizar as consultas nos moldes previstos pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) só veio após o MPF impetrar a ação.

A apuração que resultou na ação do MPF constatou que, desde 2009, vinham sendo realizadas pesquisas de campo, autorizadas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), atual Agência Nacional de Mineração, para a identificação das jazidas dentro da Terra Indígena Jauary, sem que fossem consultadas as comunidades potencialmente atingidas.

“O estudo de impacto ambiental do empreendimento classificou o porte do empreendimento como “excepcional” e afirma ser “muito alta” a interferência nos referenciais socioespaciais e culturais nas comunidades tradicionais e indígenas da região”, frisa Soave.

Atualmente, está pendente de análise no processo pela Justiça Federal no Amazonas a definição do Instituto de Meio Ambiente dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) como órgão competente para o licenciamento, considerando que a questão afeta diretamente terras indígenas, posicionamento defendido pelo MPF e pelos próprios indígenas Mura. O Ipaam, estadual, não é competente para dar a licença.

De acordo com a Funai, ressalta Soave, a questão da demarcação da TI Soares/Urucurituba precisa ser decidida antes de qualquer andamento na consulta, posição também defendida pelo povo Mura na ação judicial.

Mas a Funai, sob o atual governo, se recusa a demarcar terras indígenas, cumprindo promessa de campanha do próprio Bolsonaro.

“Quando começaram a fazer a perfuração, nós não tínhamos sido consultados. Foi então aí que começou a guerra. O empreendimento pode estar fora da aldeia Soares, mas está dentro da TI. Os advogados deles diziam que não estava na aldeia, mas está dentro do nosso território. E os nossos sagrados? A construção da estrada M-254 destruiu nosso sítio arqueológico. Por isso solicitamos os especialistas da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) para nos assessorar”, diz Rita Milena Pereira Correia Mura, conhecida como Milena Mura, que preside a União das Mulheres Indígenas Mura.

Governo Bolsonaro tem foco em expandir projetos de mineração que beneficiem o agronegócio

O agronegócio forma a base de apoio de Jair Bolsonaro. E o lobby mineral e do garimpo encontrou no governo atual um aliado fortíssimo para os seus interesses.

Juntando os dois setores, a exploração de fertilizantes como o potássio está na pauta do governo há anos. Em janeiro de 2021, ao anunciar novas descobertas de minas de potássio, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, declarou: “A pesquisa voltada a minimizar a dependência de agrominerais importados é uma ação estratégica e uma meta do Programa Mineração e Desenvolvimento”.

O PMD, conforme reportagem exclusiva do Observatório da Mineração, foi literalmente ditado por associações do setor mineral. O programa, lançado no fim de 2020, norteia as metas do país para a mineração.

O diretor-presidente do Serviço Geológico do Brasil, Esteves Pedro Colnago, reforçou a importância da parceria mineração e agronegócio para a “soberania nacional”, na visão do governo: “Uma das nossas linhas de atuação é fomentar o descobrimento de novas jazidas para commodities estratégicas como o fosfato e o potássio, por meio de diversos projetos de prospecção, principalmente diante da preocupação em atender à projeção do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento de aumento de cerca de 27% da nossa produção de grãos na próxima década”.

Ano passado, a crise política em Belarus, maior fornecedor mundial de potássio, já gerava preocupação. Pouco antes da guerra ser declarada, Bolsonaro, Tereza Cristina e uma comitiva foi até a Rússia tentar garantir o abastecimento.

Em 11 de março, Bolsonaro finalmente lançou o Plano Nacional de Fertilizantes, que tem o objetivo de reduzir a dependência externa dos produtos, que supera 90% no caso do potássio.

Atualmente, o Brasil é responsável por cerca de 8% do consumo global de fertilizantes, sendo o quarto do mundo, atrás apenas de China, Índia e Estados Unidos. O principal nutriente aplicado no Brasil é o potássio, com 38%, seguido por cálcio, com 33%, e nitrogênio, com 29%. A maior cultura agrícola brasileira é a soja, que demanda mais de 40% dos fertilizantes aplicados.

Potássio do Brasil se nega a reconhecer o território como indígena e diz que não faz incidência política

Em resposta aos questionamentos do Observatório da Mineração, a Potássio do Brasil insiste em afirmar que o projeto está “100% fora de Terras Indígenas e a empresa tem firme compromisso em trazer um empreendimento para Autazes com o que há de mais moderno em termos de tecnologia, sem esquecer dos cuidados com as pessoas e com o meio ambiente”.

Disse ainda que a “Constituição de 1988 autoriza a Mineração em Terras Indígenas. Entretanto, o Projeto Potássio Autazes está 100% fora de Terras Indígenas”. A informação é inverídica: o PL 191, inclusive, tramita para regulamentar artigo da Constituição que veta a mineração em TIs.

Questionada sobre como a Potássio realiza suas incidências políticas, a mineradora afirmou que não realiza incidências políticas.

A realidade, como provado, é diferente.

Além da reunião recente de Stan Bharti com Jair Bolsonaro e Tereza Cristina, em 15 de março os executivos da Potássio do Brasil se encontraram anteriormente com a agora ex-ministra da Agricultura (que deixou o cargo para concorrer ao Senado no Mato Grosso do Sul) no Canadá e anunciaram a intenção de dobrar a capacidade de produção na mina de Autazes para 5 milhões de toneladas por ano, o que cobriria quase metade da necessidade brasileira de potássio.

Sobre o processo de Consulta Prévia, a Potássio disse que “acredita e apoia a Consulta ao Povo Mura como mais uma ferramenta de levantamento de situações que, porventura, não tenham sido ainda identificadas pelos diversos técnicos já contratados pela Potássio do Brasil para identificar potenciais impactos sociais, ambientais e econômicos, tanto dos indígenas quanto dos não-indígenas”.

*Renato Santana é jornalista com quinze anos de experiência em reportagens e assessoria de comunicação. Há pouco mais de dez anos cobre a questão indígena e socioambiental. Venceu o Prêmio Wladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos na edição de 2010.

*Maurício Angelo é fundador, diretor-executivo e editor do Observatório da Mineração.

Edição: Maurício Angelo

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