O que pode proteger a democracia dos fascistas não são os acordos e instituições, mas as emoções tomando as ruas, eletrizando o país. E um horizonte de mudanças profundas em uma sociedade que, sem elas, ruma para a auto-destruição
Vocês me desculpem voltar a 2013, pela enésima vez, mas essa minha obsessão cumprirá o papel de nos conduzir ao tema inescapável: o golpe que Bolsonaro está montando – e anunciando –, peça a peça, passo a passo. Qual a versão predominante nas esquerdas sobre 2013 (embora, felizmente, haja outras)? As ruas foram tomadas por fascistas e despolitizados, liderados por interesses internacionais, que visavam a derrocada do governo Dilma e a estigmatização do PT. Vocês sabem o que me impressiona nessa leitura simplificadora? A rapidez com que uma interpretação se consagra quando confirma convicções anteriores e reforça os próprios valores. É muito difícil reconhecer contradições e lidar com a complexidade.
Dizer que 2013 revelaria suas verdadeiras intenções no golpe parlamentar do impeachment é mais ou menos como afirmar que a Igreja Católica medieval teria desvelado as intenções verdadeiras do cristianismo primitivo, ou que o stalinismo teria desnudado a verdadeira essência do marxismo, ou que a mercantilização das calças rasgadas e dos demais itens associados ao mundo hippie teriam demonstrado o caráter intrinsecamente (pequeno-)burguês e capitalista do movimento libertário dos anos 1960, etc. Essa visão teleológica da história é primária, mas serve muito bem para resolver problemas complicados e classificar os fenômenos, conjurando sua multidimensionalidade. Essa perspectiva reducionista exclui do foco a política e a história, e oferece uma imagem de sabedoria e infalibilidade ao intérprete, do tipo: “Bem que eu avisei.”
O que houve em 2013, nas ruas brasileiras? A entrada em cena de velhos e novos personagens, o ensaio geral de protagonismos originais, a ressurreição de espectros que saíram dos armários para assombrar a democracia, fascistas, manipulações midiáticas e transnacionais, a CIA e seus congêneres, interesses e vontades legítimas se expressando, interesses e vontades ilegítimas se infiltrando, agentes comprometidos com mudanças anticapitalistas se pronunciando, defensores de bandeiras neoliberais desfilando. Enfim, Babel.
Estavam em cena, nas ruas e nas redes, as disputas de sempre, nossos atavismos imemoriais, e outros conflitos, surpreendentes, balbuciando, buscando suas dicções, se articulando, experimentando novas linguagens e, simultaneamente, tirando do baú figurinos arcaicos.
O caldeirão efervescente de uma sociedade em ebulição se derramou sobre ruas, praças e redes virtuais. Como escrevi na época, a sociedade entrava em convulsão e combustão, os grupos se mobilizavam, porque o Brasil melhorara, a despeito de tantos limites. Era hora de disputar avanços imediatos e rumos futuros. Energias se precipitaram, promovendo (de novo repito o que tantas vezes escrevi) o deslocamento de placas tectônicas.
Os governos do PT fizeram muito, apesar dos erros, mas justamente por conta do melhor que fizeram, a vitalidade social, despertada, reanimada, queria mais, desejava ser ouvida, ansiava por participação. A militância não cabia mais nos moldes tradicionais. O modelo estava exaurido, o corpo crescia e rasgava o coração, a juventude era outra, a periferia se tornava central – graças em parte a políticas do governo (devemos muito a Gilberto Gil, por exemplo) –, suas paixões mudavam a chave da militância, o tesão migrava do aparelho para os coletivos autogestionários, o ativismo independente ocupava as arenas. Já não era possível disfarçar: o vocabulário democrático-liberal envelhecera, até porque sua incompatibilidade com a experiêcia popular denunciava a hipocrisia que continha.
Os bons governos estão condenados à ingratidão. Se forem bem sucedidos, despertarão contra si forças poderosas, e a história será sinônimo de saltos qualitativos na dialética dessas contradições. Seremos devorados por nossos filhos, se cumprirmos nosso dever. Está aí a beleza e a tragédia da luta política. Entretanto, não idealizemos o passado. Ao lado da justa insatisfação e das nobres expectativas, em cada esquina, estavam à espreita o imperialismo, nossas oligarquias, as grandes corporações, as tramas perversas do agronegócio e o capital financeiro. E aí é que está o busílis.
Vejam bem, estavam todos lá, direta ou indiretamente. A história borbulhava no calor das chamas e dos brados, a desordem era fértil, grávida de felicidade e traição, prenhe de virtude e veneno. Deus e o diabo estavam soltos, no meio da rua. O futuro foi sendo definido pelo que se fez com aquela precipitação extraordinária de energias. Não foi a irrupção de 2013 que moldou os anos seguintes; o que determinou as veredas futuras foi o que se fez com 2013, para onde e como se canalizaram aquelas energias – e o descaso com que se tratou seu potencial transformador positivo. Dilma deu sinais interessantes e parecia disposta a entrar na disputa pelos sentidos que estavam em jogo e pela canalização do desejo de participação. Michel Temer, então vice-presidente, interveio, imediatamente, sem cartas, sutilezas e mesóclises. Basicamente, ele mimetizou as ações policiais que barbarizaram nas ruas: “Mãos na parede, fique onde está, não se mexa”. Ou seja, o establishment não daria ouvido aos “baderneiros”. Aos “vândalos”, bala, porrada e bomba. Aquilo – eis as palavras do poder – não passava de provocação à autoridade do Estado. Dilma se imobilizou, e imobilizada se manteria, dois anos depois, ante o avanço golpista da Lava-Jato.
Os verdadeiros vândalos – ora, ora, que novidade! – vestiam terno e gravata, e evocaram a sagrada família quando encenaram a farsa do impeachment. Não foi 2013 que deu o golpe, o golpe foi dado por quem negara 2013 e pressionara o governo a endossar a repressão. Tanto é verdade que Temer concluiu seu mandato nas cordas com 5% de apoio. Seu governo era impopular e antipopular. A opinião pública estava farta dos minuetos da Corte. E quem o sucedeu foi quem se ligou às ruas, mesmo que exclusivamente ao lado sombrio das ruas, ao que havia nelas de regressivo e brutal. Mas se ligou às ruas, apostou no aquecimento da mobilização, embora defendesse e praticasse a repressão de seus adversários, tratados como inimigos.
Bolsonaro foi o único ator político sintonizado com o fato (que ele leu pelo avesso) de que as energias precipitadas em 2013 haviam sido produzidas pelo dinamismo conflagrado e agonístico da sociedade brasileira, quando confrontada com a expansão da cidadania, a elevação de expectativas e a concretização de algo próximo ao que se denominava democracia. As ruas, como vimos, haviam sido medo, ressentimento e também esperança e gregarismo não necessariamente agonístico. Ele sabia que 2013 fora um fenômeno decisivo, um divisor de águas, e que o futuro se decidiria na disputa pelo direcionamento daquelas energias disruptivas e refratárias ao confinamento anterior.
Sua candidatura nasceu como uma proposta de metabolização pela direita, pela ultradireita fascista, das energias precipitadas no deslocamento de placas tectônicas. Piero Leirner, em seus escritos, mostra que o Exército decidiu apostar em Bolsonaro antes de 2014. As antenas dos militares já diagnosticavam a exaustão, nos meios populares, do pacto de 1988. A democracia reduzira-se a rituais vazios, as instituições estavam ocas, as liturgias do poder simulavam uma coreografia farsesca: era esta, em suma, a percepção predominante nos meios populares. Os conflitos sociais de uma sociedade tão brutalmente racista e patriarcal, e tão despudoradamente desigual, não cabiam nos arranjos mal-ajambrados que salvaram o país das garras da ditadura, contudo, não serviam a uma sociedade ávida por mudanças de verdade. Os fascistas esfregavam as mãos com o fracasso da democracia.
Não vou me deter no exame do conservadorismo brasileiro, em que se combinam alguns elementos explosivos, porque nos levaria muito longe e já escrevi bastante a respeito. Aqui, o propósito é focalizar apenas a importância da interpretação de 2013 para nosso futuro imediato.
A Lava-Jato foi um empreendimento gestado fora do Brasil e por elites nativas, visando à liquidação das esquerdas para a implantação de um projeto neoliberal extremado. Ela acendeu a fogueira na qual arderam os últimos vestígios de credibilidade daquilo que, até 2013, entronizava-se como “representação política” ou “política democrática”. Ora, se a democracia está em ruínas, concluíram os fascistas, este é o momento de dar-lhe o tranco fatal, antes que outros o façam, até porque os ventos sopram a nosso favor (os ventos sopravam as cinzas de muita dor acumulada em nossa história sangrenta).
Aqui o roteiro sofre uma reviravolta: a direita que usa garfo e faca fez o cálculo pela metade. A primeira metade: seria preciso destruir Lula e acuar as esquerdas. A outra metade: gerar uma alternativa crível e capaz de dialogar com a sensibilidade popular. Não basta destruir o adversário. Com sua proverbial autossuficiência, os chamados liberais não atentaram para o pangaré que disparava na baia à sua direita. Então, para garantir a agenda neoliberal, renderam-se ao capitão, a quem interessava a aliança, mais por oportunismo eleitoreiro do que por convicção, evidentemente.
O resto da trama nos traz à data de hoje. O governo devotado à destruição tem sido, efetivamente, um desastre completo. Com isso, e por colar-se ao poder, embora adote atitudes que agridam o decoro, dia após dia, houve um desgaste. O capitão tem de fazer das tripas coração para provar que continua sendo a grande liderança antissistema, sem abdicar do programa neoliberal – durma-se com um ruído desse tamanho. Além disso, Lula está de volta, e há a fome, o desemprego, a carestia, o desalento, e houve a pandemia, a devastação da Amazônia e tudo o mais.
Sem realizações a exibir e insistindo em mascarar-se como outsider, o presidente não cessa de ameaçar as combalidas instituições, atravessadas por disputas internas ferozes. Ameaça, seguidamente, as eleições e garante que as Forças Armadas estão e estarão a seu lado. As oposições e a oposição representada nas instituições revelam-se frágeis, a despeito de exceções admiráveis. O que o chefe do Executivo nos promete é luta, não sucessão ou continuidade, é golpe. Enquanto isso, entre as elites, reina a pusilanimidade, quando não o mais desavergonhado adesismo.
Por que 2013 é ainda tão relevante? Por que sua interpretação ainda é decisiva? Porque Bolsonaro construiu sua trajetória ao poder, canalizando energias que nunca chegaram a ser institucionalmente processadas. Ele buscou canalizá-las, dotando-as de significados específicos, excluindo outros sentidos e outros afetos que também fluíram nas ruas. A vontade de mudança foi metabolizada e incorporada como ódio, e o contexto nacional mais do que nunca suscita repulsa, tornando o ódio o afeto regente. Bolsonaro mira os inimigos: Lula e os democratas de todos os matizes. Há, no ar, a crença – talvez, a ilusão – de que o bom senso prevalecerá, os interesses das grandes maiorias prevalecerão, a razão triunfará, desde que a campanha jogue luz sobre os problemas concretos do povo, enquanto, por cima, o candidato busca articular apoios amplos e se mostrar palatável ao establishment. Não discordo, por suposto. De fato, não há outro caminho.
Entretanto, e aqui concluo, introduzindo uma pitada de pimenta no bom senso predominante entre os que defendemos a candidatura de Lula: entretanto, há energias que se manifestam sob a forma de emoções coletivas contagiantes. Com 30% de votos, setores policiais e milicianos armados e dispostos, a eleição pode ser alvejada, um dia antes, um dia depois, em modalidades distintas, segundo os mais diversos estratagemas (não falta imaginação, nem faltarão juristas para racionalizar o golpe). A sentença pode ser: “Não quero cancelar as eleições, pelo contrário, quero eleições justas, por isso, vamos adiá-las e mudar as condições de sua realização, em defesa do que manda a Constituição, blá, blá, blá.” E tome fogo nas ruas. O que sustentará o que nos resta de democracia não serão as instituições (se pudéssemos contar com elas, o presidente já teria perdido o cargo no primeiro crime de responsabilidade cometido).
A blindagem da democracia serão emoções tomando as ruas para dizer não ao golpe, eletrizando o país, comovendo o país. Se as lideranças não trabalharem a conexão com as ruas, temo que os prognósticos não poderão ser balizados apenas por pesquisas de intenção de voto, infelizmente. Não se vence uma guerra com luvas de pelica. E para que os afetos nas ruas retomadas não sejam meros espelhos do ódio bolsonarista, é preciso apontar para um horizonte de transformações profundas de uma sociedade que se dirige para a autodestruição, seja pela crise climática, seja pelo modo de vida que criamos para nós mesmos. Lula não falará do pós-capitalismo, é óbvio, mas dialogará com a ânsia profunda e utópica por mudança, mudança em todas as dimensões. O que está no ar pode ser inconsciente, mas nem por isso menos real e sentido. É preciso expor o nervo da utopia à eletricidade do mundo e às capacidades individuais e coletivas de reimaginá-lo.
*Antropólogo, cientista político, escritor e ex-secretário nacional de segurança pública.