Audiências públicas no PAE Lago Grande (PA) foram marcadas pela defesa do território coletivo

Finalização do projeto de reforma agrária, que já dura 17 anos, foi a principal demanda apresentada às autoridades pelo assentamento

Lanna Paula Ramos, Terra de Direitos

Nos meses de abril e maio de 2022, as comunidades do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande, em Santarém (PA), participaram de audiências públicas promovidas pelo Ministério Público Federal (MPF), em parceria com o Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém (STTR) e a Federação das Associações de Moradores e Comunidades do PAE Lago Grande (Feagle). As audiências foram mais uma etapa da campanha “Não Abra Mão de Sua Terra” articulada pelas entidades representativas do assentamento, com o objetivo de garantir a finalização do projeto de reforma agrária da região – que dura 17 anos – a partir da escuta das comunidades.

“Nós sabíamos que não era fácil, muitos interesses, muitos entraves e os processos acabaram não andando. O pior de tudo isso é que a comunidade não teve respostas. Nós queremos uma resposta. Porque a gente quer a terra, mas não só pra ficar na terra. Com a posse coletiva a gente tem acesso às políticas públicas”, cobrou Ivanei Corrêa, da comunidade de Bom Futuro. Ele tinha 23 anos quando o processo de regularização do assentamento iniciou.

Os comunitários e comunitárias do PAE Lago Grande reivindicaram direitos básicos e fundamentais como saúde, educação e energia elétrica que ainda são escassos nas comunidades. Além disso, muitos dos momentos de fala foram dedicados a cobrar das instituições, especialmente do INCRA, a finalização do processo de regularização agrária do território.

Criado em 2005, o PAE Lago Grande sofre ainda hoje com a demora na entrega do Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU), um documento que garante a conclusão do processo, o acesso à terra, a programas de créditos do Incra e do governo federal de apoio à agricultura familiar. Sergio Silva, da comunidade de Porto Alegre, também foi um dos comunitários a tomar a palavra para reafirmar a tradicionalidade das comunidades e a necessidade de ação do INCRA. “Nós precisamos do nosso CCDRU. Nós somos filhos, nascidos e criados aqui. Nós não viemos de outro lugar pra cá. Nós precisamos morar dentro do que é nosso”, disse.

O representante do Ministério Público Federal ressaltou a necessidade de realinhamento estratégico do plano de reforma agrária da região a partir das demandas dos assentados e assentadas. “Essa audiência pública foi um ato que busca aproximar o Ministério Público Federal, e as demais instituições, da população do Lago Grande, pra gente poder ouvir a população e a partir daí poder traçar melhores estratégias que permitam a concretização de direitos”, afirmou o Procurador da República em Santarém, Gustavo Alcântara, na primeira audiência realizada em abril na comunidade de São Francisco. Além do MPF, também estiveram presentes nas audiências representantes da Defensoria Pública da União, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), da Polícia Federal, Militar e Civil, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Câmara Municipal de Vereadores e da Prefeitura de Santarém.

A assessora jurídica popular da Terra de Direitos, Luísa Câmara Rocha, que acompanha o STTR e a Feagle no processo do PAE Lago Grande, acredita que as audiências públicas foram momentos essenciais de escuta às comunidades. “Foram momentos muito ricos em que os comunitários e as comunitárias falaram sobre as fragilidades de alguns direitos, a violação de outros e a necessidade de efetivar, por exemplo, a regularização do PAE Lago Grande, porque aqui essa demora na finalização acaba gerando insegurança jurídica”, apontou.

Após 17 anos, a demora na consolidação do projeto de assentamento traz ainda conflitos fundiários. “As pessoas falam ‘o título coletivo não sai, então tenta conseguir o individual’ e isso vai fragilizando toda a política que envolve um projeto de assentamento que é justamente a coletividade”, declara Luísa Câmara Rocha, assessora jurídica da Terra de Direitos.

A venda de lotes de terra dentro do território é uma prática criminosa, no entanto, sem o documento definitivo de concessão de uso da terra os comunitários ficam expostos à grilagem de terra. A falta de assistência pública também é justificada com base no entrave da conclusão do processo no INCRA. Muitas vezes utilizado pelo poder público municipal para justificar a precariedade dos serviços públicos dentro do território. Essa denúncia foi feita pelas comunidades nas audiências.

Para o Procurador da República, Gustavo Alcântara, essa justificativa não se sustenta, pois juridicamente o PAE está criado e apto a receber políticas públicas que garantam direitos fundamentais às comunidades. “Eventual medida de georreferenciamento, de estabilização da questão fundiária, não deve ser vista – e não pode ser vista – como obstáculo a qualquer tipo de concretização de direitos: construção de postos de saúde, escolas, estradas vicinais, qualquer atividade do estado pra garantir outros direitos fundamentais não são condicionados a situação fundiária. Eventuais burocracias devem ser objeto de discussão internas dos órgãos para se buscar soluções e superar esses entraves”, afirmou.

Pressão externa e ameaças a lideranças

Enquanto não há a conclusão do processo do PAE Lago Grande, as mais de 150 comunidades e 35 mil pessoas que vivem no assentamento, também sofrem com a pressão externa de madeireiros, que promovem o desmatamento ilegal dentro do território, com o assédio de mineradoras para a instalação de empresas e com a grilagem de terras.

A não garantia do direito ao território coletivo por parte do governo têm colocado a vida dos comunitários em risco, como denunciou Darlon Neres, jovem participante da Campanha “Não Abra Mão da Sua Terra” e do grupo Guardiões do Bem viver. “Nós estamos sendo constantemente ameaçados. Tiveram lideranças nossas, comunitárias, que já receberam balas e tiveram que sair das suas casas por defender as nossas vidas, por defender as nossas causas e isso não pode mais acontecer. Isso é violação dos nossos direitos humanos. Porque o agronegócio, o desmatamento está avançando no território e nós não podemos deixar que isso aconteça com as nossas lideranças que dão a vida por esse território, que dão a vida por esse lugar”.

O Ministério Público Federal, as instituições e órgão públicos presentes registraram as demandas e denúncias feitas pelas comunidades. Alguns encaminhamentos foram tirados por parte do INCRA, que se comprometeu a construir uma agenda de trabalho junto a Feagle para dar andamento no processo de regularização.

Campanha “Não Abra Mão da Sua Terra”

As audiências públicas foram resultado das articulações da campanha “Não Abra Mão da Sua Terra” desenvolvida pelo STTR, Feagle em conjunto com as organizações Terra de Direitos, FASE, o coletivo Guardiões do Bem Viver, o grupo Mãe Terra, a mídia independente Tapajós de Fato, Pastorais sociais, Pastoral da juventude e a Comissão Pastoral da Terra.

Nos primeiros meses deste ano, os comunitários/as saíram em visita as comunidades do PAE Lago levando informações a respeito da preservação do território e do direito à terra. O objetivo era combater a venda ilegal de terra dentro do território e convocar os comunitários para a defesa do território coletivo e da agricultura familiar. A campanha percorreu as regiões Arapixuna, Lago Grande e Arapiuns, que compõem o PAE Lago Grande e visitou no total 123 comunidades, 12 aldeias indígenas, 3.102 famílias e mobilizou mais de 500 jovens nas oficinas de comunicação popular.

Francisco Xavier, do grupo Guardiões do Bem Viver e da Feagle, foi um dos jovens que estiveram em campo conversando com a população do Lago Grande. “Essa luta já vem há muito tempo no nosso sangue, nas nossas raízes, então a gente já vinha estudando nosso território há muito tempo. A gente foi pra campo com a vontade de levar informação, a gente acredita que 95% das famílias que a gente visitou a falta de informação tava muito grande. A campanha fortaleceu mais a comunidade para estar nessas audiências públicas”, destacou. 

Boletim “Amazônia: territórios de lutas e resistências”

Na segunda audiência pública, na comunidade de Murui, foram entregues exemplares do material “Amazônia: territórios de lutas e resistências”, um boletim informativo produzido pela Terra de Direitos com registros das articulações construídas por indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais da região que tem o apoio da assessoria jurídica popular da organização.

A luta dos comunitários do PAE Lago Grande está presente no texto “ PAE Lago Grande: luta coletiva em defesa do território e da agricultura familiar”. 

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Imagem: Comunitários e comunitárias do PAE Lago Grande na primeira audiência pública realizada na comunidade de São Francisco (Foto: Lanna Ramos)

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