O evento reuniu lideranças indígenas, organizações indigenistas e representantes dos países que integram a ONU; a política anti-indígena do governo Bolsonaro foi amplamente denunciada
POR ADI SPEZIA, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI
A política anti-indígena do governo brasileiro foi amplamente denunciada por lideranças indígenas, suas organizações e organizações indigenistas durante a 21ª sessão do Fórum Permanente das Nações Unidas para as Questões Indígenas (UNPFII 21). Nesta sessão, realizada de 25 de abril a 6 de maio, em Nova York (USA), a Aty Guasu – a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, a Associação do Povo Karipuna, a Organização de Mulheres Indígenas Mura de Autazes/AM, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Rede Iglesias e Mineria e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) realizaram contribuições ao evento.
Com o tema “Povos indígenas, negócios, autonomia e os princípios de direitos humanos da devida diligência, incluindo o consentimento livre, prévio e informado”, o Fórum visa aumentar o diálogo e conscientizar sobre o tema, bem como promover a integração e a coordenação das atividades relacionadas às questões indígenas com o sistema da Organização das Nações Unidas (ONU).
A fala do governo brasileiro durante o evento foi amplamente criticada e denunciada pelas lideranças e organizações indigenistas presentes no Fórum Permanente. Erileide Domingues, jovem liderança do povo Guarani e Kaiowá, representando a Aty Guasu, destacou os impactos das políticas estatais e suas consequências aos povos originários.
“No Brasil, com a autorização e ausência do Estado, os pecuaristas usam agrotóxicos como arma de envenenamento e intimidação contra o meu povo, assim como seu poder econômico para escapar impunemente de seus crimes. E, quando o Estado nos nega o direito à nossa terra e, consequentemente, nosso direito à vida, adota políticas genocidas”, desmente a jovem indígena à afirmação do representante do Brasil de que “o Estado segue comprometido com as questões e direitos dos povos indígenas, de acordo com a Constituição do país e os instrumentos internacionais em que somos parte”.
Tsitsina Xavante, liderança do Povo Xavante, reforça haver enfrentamento dos povos originários frente ao agronegócio e aos monocultivos, que não reconhecem a agricultura tradicional indígena como um meio econômico, menos ainda como uma prática tradicional que não prejudica o meio ambiente.“No Brasil, existem dois projetos de lei que nos impactam diretamente. Um que vai tirar o estado de Mato Grosso da Amazônia Legal. O que isso quer dizer? Se retirar o Mato Grosso da Amazônia Legal dá margem para o estado ter mais plantação da monocultura e do agronegócio, consequentemente, haverá maior utilização de agrotóxicos”.
Desde 2008, o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos, inclusive banido em diversos países, mas de livre comercialização no país, segundo a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
“Esses agrotóxicos não prejudicam somente nossa alimentação, o ambiente, mas prejudica principalmente os lençóis freáticos. O estado de Mato Grosso constitui três biomas, o Pantanal, o Amazônico e o Cerrado. O Cerrado é conhecido por ser o berço das águas, por apresentar as principais bacias hidrográficas. Ou seja, sem água, sem vida”, reforça Tsitsina Xavante, que ainda aponta outro Projeto de Lei (PL), o PL 6299/2002, mais conhecido como o “Pacote do Veneno”, que incentiva o uso de veneno nas produções agrícolas.
Para os indígenas, há por parte do Estado brasileiro uma “clara intenção de extinguir e destruir” os povos indígenas no Brasil, como pode ser visto nos discursos do presidente, “um discurso odioso e integracionista, que tem eco em partes da sociedade e que promovem uma visão de que não somos humanos, mas animais”, chamou a atenção Erileide.
A Constituição Federal de 1988 reconhece aos povos indígenas o direito originário aos seus territórios, suas práticas sociais, línguas e tradições. No entanto, Beto Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), alertou para a atual conjuntura que o Brasil enfrenta.
“Há um retrocesso gravíssimo e que vem afetando diretamente os povos indígenas isolados. Se, para nós, povos que já mantêm um largo tempo de integração com a sociedade, quem dirá os parentes isolados que dependem da proteção do Estado. Um Estado, como foi argumentado pelo representante do Brasil na ONU, negacionista”, lista o representante da Univaja ao Fórum Permanente.
Ângela Kaxuyana, da coordenação executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), segue na mesma linha ao destacar ser “vergonhosa a negação do Estado brasileiro, sobre a existência dos povos indígenas isolados na Amazônia”.
Ao longo dos doze dias do evento, as lideranças tiveram a oportunidade de denunciar a situação real que a população indígena vem sofrendo, em especial na Amazônia, e sobretudo, os povos indígenas isolados de recente contato. Na oportunidade, também foram relatados casos emblemáticos, como os dos povos Yanomami e Munduruku. No entanto, “mesmo depois da nossa fala, infelizmente o Estado continua negando”, lembrou a representante da Coiab.
O representante do Brasil ainda afirmou diante do UNPFII que a Constituição brasileira prevê a regularização do uso da água e da mineração em terras indígenas de acordo com a lei, ao referenciar o PL 191/2020, que trata de regularizar o uso dos recursos minerais, orgânicos e hídricos em terras indígenas, seguindo os princípios constitucionais. As lideranças refutaram a argumentação com novas denúncias ao órgão internacional de direitos humanos.
“Após a minha fala, o representante do Brasil aqui na ONU disse que todas as ações relacionadas à mineração ou empreendimentos estão seguindo as normas legais do Brasil. Isso é um absurdo”, afirma Tsitsina Xavante. Essa posição demonstra que “o Estado não reconhece os marcos regulatórios nacionais, não reconhece a Constituição, não reconhece os pactos internacionais no qual o Brasil é signatário. A economia não pode ser mais do que nosso direito à vida”, reforça.
A Univaja, organização que atua no Vale do Javari, onde há presença de povos isolados e/ou de livre contato, avalia que a aprovação do PL 191/2020, “pode causar a extinção, o genocídio dos parentes isolados” e destaca a importância de que os mecanismos da ONU, de controle e acompanhamento dos Direitos Humanos internacionais, acompanhem essa situação preocupante, de retrocessos no Brasil, lista Beto Marubo.
Ainda se referindo à proteção dos territórios tradicionais, o governo brasileiro assegurou ao Fórum Permanente da ONU que “a maior parte dos territórios tradicionalmente ocupados pelos indígenas já tem sido delimitada e regulamentada no Brasil. Porém, Ângela Kaxuyana denuncia que o Estado, ao afirmar que tem feito as ações de proteção, “novamente nega nosso direito de existência quanto povos indígenas”.
“Estamos aqui reafirmando que o Estado vem falando não é a realidade, nós, povos indígenas, sobretudo os indígenas de recente contato, isolados, estão sendo pressionados e assassinados neste exato momento, como tem ocorrido na Terra Indígena Yanomami, na Terra Indígena Piripkura e em vários outros territórios que tem povos indígenas isolados”, desmentiu a coordenadora da Coiab.
O representante do Brasil também afirmou que o país tem ratificado a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), e que segue comprometido a respeito. Ele também afirmou que o Brasil segue dedicado a implementar a Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas e o Documento Final da Conferência Mundial sobre Povos Indígenas. No entanto, as lideranças indígenas argumentam que pouco ou nada tem sido feito para que os direitos indígenas sejam assegurados pelo Estado brasileiro, que tem o dever de demarcar e proteger os territórios indígenas, como conta a Constituição de 1988.
Da mesma forma, ao afirmar que “diante da pandemia, o governo do Brasil tem aprovado um plano nacional para enfrentar a Covid entre os indígenas”. É importante destacar que a Articulação dos Povos Indígena do Brasil (APIB), em conjunto com outros seis partidos políticos (PSB, REDE, PSOL, PT, PDT e PCdoB), ingressou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709, para que o governo federal adote uma série de medidas para conter o contágio e a mortalidade por Covid-19 entre os povos indígenas frente à pandemia.
As organizações, indígenas e indigenistas presentes na UNPFII 21, esperam que as políticas indigenistas brasileiras e dos demais países amazônicos sejam revistas, exigindo dos Estados nacionais a reestruturação de seus respectivos sistemas de proteção territorial e da vida dos povos originários. Além disso, é esperado que o Fórum reforce aos organismos multilaterais a necessidade de leis internacionais mais abrangentes que garantam aos povos indígenas transfronteiriços, em particular aos povos isolados, o direito de continuar a ocupar os seus territórios tradicionais, indispensáveis para a sua sobrevivência física, social e cultural.
A cada sessão do Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas da Organização das Nações Unidas é entregue um relatório com recomendações oficiais para o Conselho, bem como para programas, fundos e agências da ONU, governos, organizações indígenas, sociedade civil, imprensa e setor privado.
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Registro da abertura do Fórum Permanente da ONU sobre questões indígenas, em 25 de abril de 2022. Foto: UN DESA/Predrag Vasić