Pistoleiros invadem e incendeiam casas em Anapu, no Pará

Os invasores, encapuzados e armados, disseram às famílias do Lote 96 da Gleba Bacajá que eram da polícia e que estavam ali para uma “reintegração de posse”. Justiça desmentiu existência de ordem para reintegração

Por Cicero Pedrosa Neto, em Amazônia Real

Belém (PA) – Duas casas de famílias da comunidade Lote 96 da Gleba Bacajá foram invadidas e incendiadas por cerca de dez pistoleiros encapuzados e fortemente armados, por volta das 11h desta quarta-feira (11), no município de Anapu, no sudoeste do Pará. As famílias, que foram expulsas das casas, ficaram cerca de uma hora e meia  sob a mira dos pistoleiros, enquanto tentavam salvar seus pertences. Apesar da violência, não houve registro de feridos.

Segundo testemunhas ouvidas pela Amazônia Real, o ataque aconteceu na fronteira entre uma área de litígio há vários anos e que já foi destinada à reforma agrária pela União e uma fazenda que era requerida pelo fazendeiro Antônio Borges Peixoto, morto em abril deste ano. A fazenda está em terras públicas.

Em áudio enviado à reportagem, uma mulher disse em prantos que chegou a questionar os homens sobre o mandado judicial da suposta reintegração de posse. “Eu pedi o mandado e ele me mostrou a arma dele e aí ficou amedrontando a gente”, ela contou. “Revirou a casa inteira e tocou fogo em tudo, tudo. Não tem mais nada lá dentro”.

As testemunhas disseram que os pistoleiros invadiram a comunidade em duas picapes de cor prata, modelos Triton e Hilux, cortando os arames farpados das cercas da fazenda. Ao chegar nas casas, anunciaram que eram da polícia e que estavam ali para uma “reintegração de posse”, avisando que as famílias tinham 20 minutos para desocupar os imóveis.

Em nota, o Ministério Público Federal (MPF), em Belém,  informou que apura o caso e que a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal foram acionadas para “que tomem medidas no local com urgência, diante da gravidade das denúncias, com o objetivo de resguardar a integridade física dos moradores e a apuração dos fatos”.

O juiz Antônio Fernandes de Carvalho Vilar, da Vara Agrária de Altamira, expediu um despacho negando qualquer determinação de reintegração de posse pela Justiça. Leia mais no final deste texto.

A principal liderança da comunidade do Lote 96, Erasmo Teófilo, pediu em áudio pelas redes sociais ajuda e proteção dos órgãos de segurança. Ele afirmou que uma das casas incendiadas é de Roniele da Conceição Brito, 25 anos, que vive na comunidade com o marido e o filho pequeno.

“Os meninos chegaram perto para filmar e eles [os pistoleiros] quebraram o celular; meteram a arma neles e quebraram o celular”, disse Erasmo, desesperado. O líder é alvo constante de ameaças de morte e há anos denuncia a grilagem de terras e a ação de pistoleiros em Anapu.

É a terceira vez que a família de Roniele perde a moradia. A última foi em 2021, conforme ela contou à Amazônia Real. Ela e o marido, Lucival Fernandes, tinham ido à farmácia e, quando voltaram, encontraram a casa posta ao chão. “Quando a gente chegou em casa estava só o ‘limpão’, eles tinham metido um trator e jogado a casa para um baixão que tinha perto. Também entupiram o poço”. Após o ocorrido, a família recebeu ajuda de outros colonos para a reconstrução da casa, agora incendiada mais uma vez neste novo atentado. 

Roniele contou à reportagem os momentos de angústia que viveu enquanto ela e a família assistiam, sem defesa, a ação dos pistoleiros. “Eles chegaram dizendo que eram da polícia, revistando meu marido, perguntando se a gente tinha arma e dizendo que a gente tinha que sair dali, que eles estavam fazendo uma reintegração de posse e que iam queimar barraco por barraco do Lote 96”, contou. Segundo Roniele, ao tentar gravar o que estava acontecendo, um dos homens tomou seu celular e apagou todos os arquivos do aparelho.

“Eles me expulsaram da minha própria casa. É muito triste, a gente constrói os sonhos da gente pra ver depois ser destruído no fogo”, lamentou a moradora.

A Amazônia Real não conseguiu localizar o homem identificado como José Garcia, que também teve a casa incendiada na ação dos pistoleiros. Segundo as testemunhas, duas viaturas da Polícia Militar foram à comunidade Lote 96 da Gleba Bacajá e chegaram a encontrar os pistoleiros. Os policiais, conforme os relatos, teriam se retirado em seguida sem efetuar nenhuma prisão. 

A reportagem procurou a Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Pará (Segup) para saber quais ações estavam sendo empreendidas para a apuração dos fatos e proteção das famílias do Lote 96. A Segup respondeu que o caso é “de competência dos órgãos federais, pois é uma área de responsabilidade da União”, mas que “equipes das Polícias Militar e Civil já estão no município para dar apoio e agir dentro de suas atribuições”.

Pedidos de proteção

Após tomar conhecimento do atentado, a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) encaminhou um pedido urgente de proteção das 54 famílias que vivem no Lote 96 da Gleba Bacajá, em Anapu.

“Diante da gravidade da denúncia, solicitamos que sejam tomadas as medidas cabíveis ao caso, com envio de força policial que prenda e atue em flagrante as pessoas responsáveis por tais ataques, sejam pistoleiros, ou fazendeiros”, diz o documento encaminhado ao gabinete do secretário de Segurança Pública, Ualame Machado.

Diante da possibilidade de uma ofensiva direta à liderança Erasmo Teófilo, que é cadeirante e vive com a esposa, os quatro filhos e os pais na comunidade, o Ministério Público Federal, por meio do procurador Gilberto Batista Navaes Filho, solicitou à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Pará a intensificação de rondas policiais na região do conflito, visando a proteção da liderança e de sua família. 

Erasmo é conhecido mundialmente por sua atuação em favor dos direitos humanos e dos povos da floresta. Em Anapu, atua diretamente na defesa da permanência e manutenção da posse das famílias que vivem no Lote 96. 

Juiz nega reintegração de posse

Em despacho expedido na noite desta quarta-feira, o juiz Antônio Fernandes de Carvalho Vilar, da Vara Agrária de Altamira, afirmou que não há nenhuma decisão de reintegração de posse que tenha sido autorizada pela Justiça.

“(…) não há qualquer ordem exarada por este juízo autorizando o cumprimento da ordem de reintegração (…) Ademais, ainda que assim não fosse, do mesmo modo estaria suspensa qualquer ordem de reintegração em razão da medida cautelar deferida na ADPF 828”, diz o juiz no documento, ressaltando a supsensão de qualquer reintegração de posse no Brasil durante a pandemia de Covid-19, tendo por base Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 828).

O juiz também determinou uma inspeção judicial na área, marcada para o dia 25 deste mês, e requisitou a presença da polícia na área enquanto durar o conflito. 

Apesar dos movimentos dos órgãos judiciais, Erasmo Teófilo disse à Amazônia Real por telefone que não há nenhuma viatura da polícia no local e que os pistoleiros permanecem “entocados no mato”.

“A gente já pediu até pelo amor de  Deus pra alguém acudir e até agora nada. A polícia que veio já foi e deixou nós aqui”, disse. 

A imagem acima mostra uma das casas das famílias de assentados que foi incendiada (Foto: Reprodução vídeo Whatsapp)

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