Vetos do Planalto descaracterizam projeto e favorecem corporações farmacêuticas. Congresso já adia por oito meses debate. Se restaurar lei original, Brasil pode tornar-se referência em produção de fármacos e vacinas no Sul global
Por Gabriela Leite, em Outra Saúde
A lei trata de uma emergência, mas não parece. No dia 28/4 foi adiada mais uma vez a sessão conjunta do Congresso Nacional que deveria discutir os vetos de Jair Bolsonaro ao projeto 12/2021. Caso aprovado em sua versão sem cortes, ele abrirá um precedente de relevância internacional: permitirá a quebra temporária de patentes de vacinas e medicamentos durante crises globais ou nacionais, ou em estado de calamidade pública. Pela regra constitucional, o limite para avaliação no Congresso é de 30 dias corridos. Mas já se passaram oito meses e meio desde que o Palácio do Planalto sancionou apenas parcialmente a proposta, deixando de fora dispositivos essenciais para a aplicação da lei. Uma matéria publicada no site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, questiona a demora e explica por que a interferência do presidente na lei, na prática, a desfigurou.
Foram seis vetos, ao todo. Seu sentido principal é impedir que a quebra de patentes venha acompanhada da transferência de conhecimento e do fornecimento de insumos de medicamentos e vacinas ao país. Isso significa que, caso a nova legislação leve ao licenciamento compulsório de uma patente, a indústria brasileira terá de descobrir sozinha como produzir o insumo – processo que atrasa muito a resolução da crise. Um desafio que a África do Sul topou enfrentar ao buscar reproduzir a vacina da Moderna em seus laboratórios. Teve sucesso, com ajuda de cientistas do mundo inteiro e até da OMS (Organização Mundial da Saúde), mas não foi nada fácil – e nem deveria ser preciso.
Outro dispositivo vetado por Bolsonaro ajuda a concentrar poder nas mãos do presidente. Previa-se que a quebra de patentes poderia ser autorizada também através de lei aprovada no Congresso, modificando a regra atual que permite apenas ao Poder Executivo fazê-lo. O processo, dessa maneira, é mais lento – e não condiz com o que se espera de uma emergência, mais uma vez.
A demora para a discussão dos vetos foi tanta que surgiu o risco de que a garantia da quebra de patentes, se vier, chegue tarde demais. É semelhante ao que acontece na Organização Mundial do Comércio (OMC) desde 2020, quando a África do Sul e a Índia propuseram um acordo amplo de suspensão de direitos de propriedade intelectual, mas que está sendo duramente combatido pelos países do Norte global e pela indústria farmacêutica. Caso a quebra de patentes seja aprovada no Brasil, poderá servir de exemplo mundial de defesa da saúde – papel que Bolsonaro não mostra qualquer interesse em representar.
Mas será tarde demais? Especialistas ouvidos pela Poli afirmam que não. Embora a pandemia esteja mais controlada hoje do que em qualquer outro momento desde março de 2020, está claro que ela não foi superada. Ainda morrem em torno de cem brasileiros por dia por causa da covid. Os fármacos que estão despontando – como o molnupiravir, que será produzido pela Fiocruz – podem salvar vidas e diminuir a pressão em hospitais, durante ondas maiores de contágios. Por isso, a quebra de patentes de insumos e vacinas continua muito necessária, e é preciso lutar por ela.
Há ainda um outro motivo para exercer pressão social para a aprovação da lei – ou mesmo uma mais abrangente que essa. O Brasil poderá tornar-se referência em produção de vacinas, caso tenha acesso às tecnologias. Ajudará a combater o apartheid vacinal que deixa tantas populações desprotegidas. Imporá uma derrota exemplar ao poder oligopólico da Big Pharma.
Mas o Palácio do Planalto não quer. E os deputados e senadores, embora hesitem em contrariar uma medida de enorme apelo social, temem o oligopólio global dos laboratórios.