Eletrobrás: por que rechaçar a privatização

Com robusta capacidade de estocar energia e sistema de transmissão que conecta o país, a estatal será essencial para a transição energética. Mas governo quer entregá-la a mãos privadas – e implodir chances de reconstruir o Brasil

Por Ronaldo Bicalho*, em Outras Palavras

A privatização da Eletrobras restringe de forma decisiva as possibilidades de acesso da sociedade brasileira à energia necessária ao seu desenvolvimento econômico e bem-estar.

Em um momento de profundas transformações no setor elétrico aqui e no mundo, a privatização da estatal elétrica brasileira aliena um conjunto de ativos decisivos para a redução dos custos da transição energética no país. Essa privatização irá jogar todos esses custos não só no colo da economia brasileira, reduzindo a sua competitividade, mas, principalmente, sobre os ombros das parcelas mais vulneráveis da nossa sociedade.

Para entender a magnitude dessa privatização é preciso compreender o que se passa no setor elétrico no mundo e no Brasil e a importância de determinados ativos que atualmente são controlados pela Eletrobras.

O setor elétrico no mundo atravessa uma quadra de mudanças profundas. Para essa atividade vital para o desenvolvimento econômico e para o bem-estar da sociedade, esse é o momento mais desafiador desde o seu nascimento no final do século XIX.

As restrições cada vez mais severas impostas ao uso dos combustíveis fósseis para fazer face à urgência da redução do aquecimento global impõem ao setor uma mudança de base de recursos naturais que tem drásticas implicações tecnológicas, econômicas, organizacionais, institucionais, políticas e sociais.

As energias renováveis e os combustíveis fósseis apresentam atributos técnicos e econômicos bastante distintos, sendo muito difícil considerá-los como substitutos próximos entre si. A intermitência, característica essencial desses fluxos aleatórios associados às renováveis, reduz radicalmente a previsibilidade e o controle dos insumos de geração. Em comparação com os combustíveis fósseis, que são estoques, as energias renováveis introduzem a necessidade de os sistemas elétricos desenvolverem uma flexibilidade gigantesca para fazer face a essa incerteza acerca da disponibilidade dos insumos.

Em função disso, a transição energética em direção a uma matriz limpa e renovável é um processo em aberto, pleno de incertezas, riscos econômicos e tensões sociais e políticas, que exige inovações radicais tanto no âmbito tecnológico e econômico quanto na esfera regulatória e político-institucional. Somente essas inovações podem gerar uma redução objetiva no trade-off que existe hoje entre o enfrentamento do aquecimento global e a garantia de acesso à energia. Concretamente, sem inovação não é possível diminuir os custos da transição e, com isso, avançar na marcha em direção às energias renováveis. Fora isso, o que sobra é a cada vez mais tensa e penosa gestão dos conflitos de interesses patrocinados pelas instituições. E haja instituições.

Embora a matriz elétrica brasileira seja renovável, a partir da nossa opção histórica pela hidroeletricidade, o país não está fora desse debate. Pelo contrário. Os mecanismos desenvolvidos para lidar com a intermitência da energia hidráulica foram se esgotando na medida em que a capacidade de estocagem dos nossos reservatórios não acompanhou o crescimento da demanda de energia. A construção cada vez mais comum de hidrelétricas sem reservatórios, principalmente na Amazônia, por razões técnicas, ambientais, sociais e políticas, fez com que crescesse a exposição do sistema ao risco hidrológico. Esse crescimento inviabilizou a manutenção da energia hidráulica como o pilar central e exclusivo da matriz elétrica brasileira (historicamente, as outras fontes foram apenas complementares), demandando uma mudança dessa matriz para enfrentar esse problema real e concreto do abastecimento elétrico do país.

Considerando que a ampliação significativa da participação das térmicas representa concretamente uma carbonização da matriz brasileira, em um movimento completamente extemporâneo quando se observa a descarbonização que ocorre no mundo hoje, o Brasil, para resolver o seu problema específico, terá que recorrer à mesma solução geral aplicada no mundo todo: ampliar fortemente a participação das novas energias renováveis (eólica e solar) na sua matriz elétrica.

E isso é algo extremamente positivo, quando se leva em conta que para esse enfrentamento, o Brasil detém recursos valiosos. Recursos que foram sendo adquiridos ao longo de toda a evolução da atividade elétrica no país.

Em primeiro lugar, o Brasil detém uma capacidade significativa de estocagem representada pelos reservatórios. O país pode armazenar mais de 40% da sua demanda de energia elétrica nos seus reservatórios.

Em segundo lugar, o Brasil tem as centrais mais rápidas e flexíveis, que são as hidrelétricas. As turbinas hidráulicas são aquelas que entram e saem de operação mais rápido e aumentam e reduzem a carga com mais facilidade.

Em terceiro lugar, o Brasil apresenta um sistema de transmissão que interconecta praticamente todo o país (isolado encontra-se apenas o estado de Roraima). Isso dá uma flexibilidade espacial crucial na integração de fontes intermitentes; em geral, dispersas, algumas vezes distantes da demanda (eólicas), comumente descentralizadas e rarefeitas (solar).

Em suma, a flexibilidade temporal (reservatórios e turbinas hidráulicas) e espacial (sistema de transmissão) que o sistema elétrico brasileiro possui coloca o país em uma posição única na transição energética, fazendo com que a transição brasileira possa ser menos custosa e tensa do que no resto do mundo; justamente em função de possuir esses ativos portadores de flexibilidade.

Praticamente metade desses ativos hoje está na mão do Estado. A Eletrobras controla mais da metade dos reservatórios, 45% das hidrelétricas e 47% da transmissão.

Portanto, o Estado brasileiro detém hoje recursos estratégicos para controlar os custos da transição energética brasileira, viabilizando uma entrada massiva de renováveis mediante a utilização desse conjunto de ativos de flexibilidade, sob uma perspectiva coletiva de redução de custos e garantia de acesso amplo à energia para a economia e para a sociedade.

A privatização da Eletrobras implica a transferência desse poder de flexibilidade integralmente para o setor privado. A partir daí, o controle da transição brasileira passa a seguir uma lógica privada. Desse modo, ao invés de usar as rendas associadas ao controle dessa flexibilidade (que vão além da simples renda hidráulica) para reduzir os custos econômicos e sociais da transição, essas rendas serão usadas para ampliar os ganhos individuais de um número restrito de agentes que irão controlar, de fato, esses ativos.

Cabe destacar que a privatização da Eletrobras deve ser vista em conjunto com a chamada modernização do setor elétrico brasileiro. Em adiantado estágio de tramitação no Congresso Nacional, a dita modernização muda radicalmente o modelo institucional tradicional do setor. Retomando a agenda liberal dos anos 1990, a chamada transição para o mercado propõe a liberalização do mercado elétrico, mediante a retirada das restrições à livre atuação da iniciativa privada existentes hoje nesse mercado carregado de especificidades. Essas restrições foram implementadas historicamente a partir do reconhecimento, de um lado, das especificidades do produto energia elétrica e do seu mercado, e, de outro, do caráter essencial dessa energia para o desenvolvimento econômico e para o conforto e o bem-estar da sociedade.

Sob a atrativa ideia da liberdade de escolha do consumidor, a chamada portabilidade, esconde-se o exercício de um forte poder de mercado pelos detentores dos ativos elétricos em um contexto regulatório muito mais frouxo do que aquele empregado tradicionalmente no setor. Desse modo, consuma-se o processo, iniciado nos anos 1990, de liberalização do espaço econômico representado pelo setor elétrico para um processo de forte acumulação de capital sem os “retrógrados” limites impostos a essa acumulação a partir de uma visão que historicamente privilegiou o acesso democrático à energia elétrica. Acesso este visto desde o final do século XIX como um sinônimo de modernidade e avanço do processo civilizatório. Portanto, o moderno no setor elétrico sempre foi o acesso à energia, e não a escolha do fornecedor dessa energia.

Nesse contexto, deve-se ter claro que a valorização dos ativos da Eletrobras privatizada se dará em um mercado liberalizado, no qual a apropriação privada das rendas da flexibilidade enfrentará restrições regulatórias muito menores do que as que enfrentaria em um mercado elétrico tradicional. Inclusive a possibilidade de gerir individualmente o risco hidrológico, que, sob a promessa do exercício da autonomia dos agentes, acoberta a gestão individual e privada dos reservatórios, que rompe com a histórica otimização centralizada do uso dos reservatórios, criada para auferir economias de escala, escopo e diversidade hidrológica sistêmicos, que fundou toda a construção do setor elétrico brasileiro.

É justamente sobre a gestão privada e individual desses reservatórios privatizados que repousam as gigantescas possibilidades de ganhos para os agentes econômicos que apoiam a dobradinha privatização/modernização.

Não é gratuita, portanto, a forte presença de bancos, corretoras e comercializadoras de energia à frente do lobby da privatização/modernização. Esses seriam aqueles agentes que não só detêm a hegemonia da formulação e implementação da agenda setorial hoje no país, como também são aqueles que mais têm a ganhar com a gourmetização da energia elétrica e a gentrificação do mercado elétrico no país.

Nesse sentido, a privatização da Eletrobras, somada à liberalização do mercado elétrico, implode qualquer possibilidade de usar a transição energética como alavanca para a recuperação econômica e social do país, transferindo uma gigantesca parte da renda associada à flexibilidade dos ativos da empresa para as mãos privadas. Flexibilidade essa que poderia ser usada para gerar crescimento, renda, emprego e bem-estar para a sociedade brasileira.

*É engenheiro químico e doutor em Economia pela UFRJ. Trabalha como pesquisador do IE-UFRJ e suas áreas de interesse são a política energética e as transformações estruturais do setor de energia.

Comments (1)

  1. A REDUÇÃO SUSTENTÁVEL DAS TARIFAS DE ENERGIA SÓ É POSSÍVEL COM A CONCORRÊNCIA!
    A matriz energética centralizada é um modelo que, como o petróleo, está agonizando.
    ELETROBRÁS É SEU SÍMBOLO!
    Foi criado por dois magnatas, um inventor outro,mega banqueiro: Thomas Edison e Pierpont Morgan , do Morgan Ciyy Bank.
    Tesla tentou lutar contra , com suas invenções mas, foi roubado e lacrado! Criaram até a figura do cientista louco para desconstruir sua reputação.
    A disseminação da matriz descentralizada de energia, com geração de biomassa, termosolar, painéis solares, eólica, marés, etc, fará com que a energia elétrica desabe seus custos.
    As novas baterias mais baratas farão com que a geração offgrid, sem uso da rede, fique cada vez mais barata, mais acessível.
    Tesla já está alugando seus conteineres de bateria nos EUA , acumulando o excesso de energia de dia e devolvendo à noite.
    Cidades em SP e no Sul já instalam usinas de energia da pirrólise do lixo que geram energia, gasolina, diesel e lubrificantes.
    E elimina a poluição dos chorumes nos aterros.
    Cálculos preliminares de engenheiros concluem que somente o lago de furnas, 4.400 km2 coberto de placas solares GERARIA 66O MIL MW IGUAL A 5 VEZES TODO NOSSO PARQUE ELÉTRICO.
    Cálculos preliminares apontam que a injeção de água em caldeiras vulcãnicas, como fazem na Islândia, geraria energia para milhares de anos de nossa civilização.
    Levantamento da Eletrobrás concluiu QUE SÓ A BAHIA TEM 66 MILHÕES DE KW/HORA DE ENERGIA EÓLICA A SE EXPLORAR. Metade de toda nossa energia elétrica instalada hoje.
    O Brasil tem 880 milhões de kw de energia eólica disponível, 7 vezes todo nosso consumo.
    Soménte uma pequena parte é usada.
    O que temos de vigiar de perto são os legisladores ladrões para que não criem leis cartoriais, proibindo que geremos nossa própria energia.
    País da Europa que se diz socialista mas, são ratos de banqueiros, estimulou a energia solar garantindo que iria comprar mas, após 61.000 famílias se endividarem, roubaram toda sua energia sem indenizá-los. Obrigaram a fornecer de graça ao governo e os levaram à falência.
    CUIDADO COM FALSOS SOCIALISTAS DA OPEN SOCIETY E PUXADINHOS!
    Muitos partidos falsa esquerda seguem avestes FDP.
    Fingem de socialistas mas devem o r… e pescoço a banqueiros

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