A partir de 11 depoimentos no documentário “Inspira”, jornalista tenta mostrar que tudo e todos estão conectados
Por Redação RBA
A cena se dá durante a Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, mas poderia ser hoje. Da tribuna, o jovem indígena Ailton Krenak, 34 anos à época, se dirige aos parlamentares enquanto espalha tinta no rosto: “Os senhores não poderão ficar alheios a mais essa agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um povo indígena”. Povo com seu jeito de viver e pensar, lembra, que nunca pôs em risco sequer os animais, quanto mais a vida de outros seres humanos.
Passadas três décadas e meia, o ambientalista, filósofo e líder indígena reflete. “Interessante que eu fui cultivando em mim essa fala, pacífica, sem intenção. (…) Se a gente continuar com essa violência toda em relação às paisagens constituídas – é o desenho da vida –, se a gente vai remover as montanhas, nós vamos ficar com quê, um buraco?”, questiona. “Tudo que move é sagrado, né?”, emenda Krenak, citando verso de Amor de Índio (Beto Guedes/Ronaldo Bastos), canção lembrada principalmente pela interpretação de Milton Nascimento. Atirando um pedregulho no rio, ele comenta: “A imagem da pedrinha fazendo círculos na água sugere que não tem uma transformação que se conclui. É movimento”.
Todos contados
Os pensamentos de Ailton Krenak, à beira do rio Doce, na Serra do Cipó, onde vive, em Redentor (MG), abrem Inspira, dirigido pela jornalista Patricia Travassos. O documentário foi lançado na noite dessa segunda-feira (6), na recém reaberta Cinemateca Brasileira, na zona sul de São Paulo, com alguns dos 11 entrevistados presentes. No dizer da autora, é um estímulo à reflexão sobre o outro. “Estamos todos conectados e, a partir da nossa consciência individual, somos capazes de impactar o pensamento coletivo.”
Na conversa com o líder indígena e pensador, surgiu a ideia de mostrar a água como uma espécie de fio condutor do filme, ao longo de quase uma hora e meia: mar, rio, chuva, nascente, tudo vira correnteza. E o compositor Lenine, na Urca, no Rio de Janeiro, surge justamente tocando e cantando Quede Água?:
Vejo o tempo que evapora
Meu automóvel novo mal se move
Enquanto no duro barro
No chão rachado da represa onde não chove
Surgem carcaças de carro
“Basicamente o núcleo familiar foi o grande fomentador na minha vida”, conta Lenine. Seu pai, José Geraldo, acreditava que a partir dos 8 anos de idade o ser humano deveria ser estimulado a fazer escolhas. “Sua mãe acredita que a melhor maneira de você se conectar com o divino é na missa. Papai acha que existem outras maneiras”, dizia. “A gente trocou pela música.” Ele se revela discípulo de Dorival Caymmi, o “maior compositor marinho” da história.
Ancestralidade e racismo
Por falar em Caymmi, a câmara se transporta para a Lagoa do Abaeté, na praia de Itapoã, em Salvador. É onde está o geógrafo e escritor Itamar Vieira Junior, autor de Torto Arado. Ancestralidade é um processo em construção e toda história é importante, lembra, ouvindo os cantos das lavadeiras. Seu livro, diz, fala em racismo estrutural, que a abolição não foi completa. “Que as pessoas ditas libertas naquele período não tiveram nenhum amparo para poder ter autonomia e governança sobre suas vidas, que elas precisaram viver errantes, trabalhando em lugares de maneira precarizada e sempre de maneira subalterna. Isso não foi modificado até os dias de hoje. Talvez a mestiçagem seja uma utopia futura do país.”
Mais água, agora do rio Pinheiros, em São Paulo. Nascido em Taboão da Serra, o humorista (e ex-bancário) Thiago Ventura atravessou a ponte e veio morar na capital. Ele fala da quebrada, das cotas, racismo, das origens. Depois dele, a influenciadora digital Paola Antonini, se exercitando à beira da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, conta como foi a primeira vez em que postou uma fotografia usando a prótese – aos 20 anos, perdeu a perna esquerda ao ser atropelada. Ela criou um instituto que ajuda crianças com deficiência.
Assim se sucedem as histórias, como a da atriz Clarice Niskier, em cartaz há quase 15 anos com a peça A Alma Imoral, entre vários outros trabalhos (“É um engano, no meu ponto de vista, achar que todo mundo pensando igual é o que vai preservar a humanidade (…). Cada um vai entendendo como que aquela obra coletiva pode ser feita com as várias visões de mundo, entendeu?”). Ou da física Marcia Barbosa, que desenvolveu tecnologia para transformar água do mar em potável, defensora da diversidade inclusive na ciência (“Sabe o que é entrar numa sala de aula e de 40 alunos só ter quatro mulheres, e nenhuma delas se formar contigo?”).
Camadas narrativas
O filme demorou quase dois anos para ser concluído, no meio da pandemia. As gravações, especificamente, foram feitas de maio a agosto do ano passado, em Salvador, Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte e também nas mineiras Resplendor e Betim. Também foram entrevistados a bailarina e cantora Flaira Ferro, os irmãos e grafiteiros Gustavo e Otávio (conhecidos como OSGEMEOS) e a médica da família e cantora Julia Rocha.
“Durante as gravações, a nossa história foi ganhando diferentes camadas narrativas. Partimos de personalidades inspiradoras, suas histórias individuais e os grandes temas que mais as inspiravam. Chegamos a um pensamento plural”, conta a diretora. “Queríamos conectar personagens diferentes, mas queríamos também que eles dialogassem e não fossem apresentados no documentário de forma blocada, separada. O maior desafio foi montar um quebra-cabeças que fizesse sentido em conjunto, sem deixar de valorizar a história individual de cada um.”